Soraia, Lilian e eu nos instalamos no tapete do meu quarto assim que chegamos do tour pela farmácia com as tais aspirinas da ressaca e alguns pacotes de batata. Soraia jogou a fita com o tal filme para refletir que havia escolhido perto do VHS, e ao invés de começarmos a sessão cinema colocamos no som o disco "Live Through This" do Hole para tocar.- Courtney Love, que mulher! – Suspirou Lilian. – Eu ficaria com ela várias vezes.
- Vaca, matou o Kurt Cobain. – Respondeu Soraia de volta. – Não sabia que você curtia mulher.
- Gosto é de aumentar minhas chances de pegar alguém em mais cinquenta por cento. E ela não matou ninguém. – Lilian rebateu negando com a cabeça e esboçando um certo desdém no olhar.
Levantei e tranquei a porta do quarto antes que alguém da minha família entrasse de supetão e escutasse nossas conversas proibidas para adultos. Acendi um incenso perto da fresta rente ao chão e peguei um dos cigarros do pacote comprado no dia anterior.
- Cara, sua mãe é foda. Ela não reclama se você fuma. – Disse Soraia séria como uma esfinge já estendendo o braço na minha direção para ganhar o dela.
- Quem disse? – Dei de ombros e continuei - Você acha que eu acendi esse incenso, por que? Vamos dividir esse cigarro, não tenho dinheiro para comprar um monte de maços. O que acontece, na verdade, é que gosto de pensar que meus pais não sabem.
- Eles sabem de tudo, Cecília. Sim, sempre sabem. – Respondeu Soraia, pegando o cigarro da minha mão e suspirando como se recordasse uma memória antiga. - Quando eu transei pela primeira vez minha mãe descobriu no outro dia.
- Como? – Lilian quase gritou a pergunta, boquiaberta. Olhos brilhando de curiosidade.
- Sei lá. – Disse Soraia, recuperando o cigarro do revezamento de bocas e dando uma tragada, continuou, - ela veio com uma história, na hora do almoço, olha só que viagem, de que havia sonhado que eu não era mais virgem e que eu estava grávida. Umas ideias nada a ver como se eu, em plenos anos noventa, não tivesse sido apresentada a camisinha, depois da loucura da AIDS da última década. E o louco da história, vocês nem imaginam! Foi um dia depois que eu transei com Henrique.
- Com Henrique? – Eu disse, pegando o cigarro de volta.
- É.
- Henrique, Henrique? – Lilian quase levantou do chão para fofocar.
- Sim, Lilian. O vizinho de Cecília. Esse mesmo, - e apontou em direção a parede - que se a gente puxar a cortina, vemos a janela do quarto dele.
- Nem quero mais cigarro nenhum, que estou até tonta. E como foi?
- Ah, a gente saiu de um rock qualquer, e estávamos ficando pela segunda vez. Como estávamos perto lá de casa e minha mãe estava viajando no dia, rolou.
- Simples, assim? – Perguntei, apagando o cigarro na sola do tênis e enrolando a guimba numa folha de caderno jogada no chão.
- Simples assim. – Soraia deu de ombros.
- E doeu? – Perguntei com a curiosidade aumentando.
- Nossa, muita coisa. – Soraia começou a rir da recordação. - Eu disse que se ele tirasse de lá antes de terminar tudo direitinho, ele nunca mais encostaria em mim, e como ele era virgem também, tudo durou uns cinco minutos. Fiquei pensando: mas é só isso?
- E depois? – Lilian rebateu.
- Depois nada. Não transei com mais ninguém. Não fiquei mais com ele porque não tivemos chance e é isso aí. O que importa meninas, é que eu já escolhi o próximo sortudo. E é o seu irmão, Cecília.
- E ele já sabe disso? – Disse e caímos na risada.
Eu pouco me importava com a vida sexual de qualquer um dos meus dois irmãos, uma vez que, eu nem conseguia dar seguimento a minha. Suspirei abrindo um dos pacotes de batata, e jogando outros para as meninas.
- Sabe o que mais sinto falta de Bernardo? – Desabafei – nossa amizade...
- Então essa relação estava uma merda mesmo!
- Não Soraia, você que é uma idiota. – E me lembrei porque, embora, eu gostasse dela mantinha uma certa distância.
Bernardo e eu havíamos crescido juntos, pela amizade que ele cultivava desde a infância com meu irmão. Assim, ele vivia pela minha casa e vez ou outra eu ia até a dele na companhia de Pedro ou Miguel, que também tinha entrado no grupo.
Hoje, parece bobo, mas um dia estávamos assistindo televisão na sala da minha casa. Eu sentava num sofá bem grande em formato de L, que dava para umas cinco pessoas sentarem, não havia a menor necessidade de alguém ficar grudado. Eu, com meus quatorze anos, tinha um livro de biologia nas mãos e deveria estar estudando quando o clipe de "Under the Bridge" do Red Hot Chilli Peppers começou a tocar. Bernardo estava passando pela sala, indo em direção ao quarto dos meus irmãos, mas parou e sentou ao meu lado. Eu achei muito esquisito, aquele sofá tão imenso e ele ali, tão perto. Me empertiguei no sofá, e meu coração começou a bater forte. As imagens da televisão ficaram turvas pois eu passei a tentar olha-lo com meu canto de olho, com medo de estar sendo observada. Bernardo parecia super interessado na televisão. Sempre muito centrado em si, confiante.
- Legal, né? - Eu disse quando acabou a música para quebrar o gelo.
O programa da televisão emendou na música "Black" do "Pearl Jam". Bernardo recostou e disse:
- Sabe, eu comprei esse CD há uns meses. Você tá a fim de escutar comigo? Ou eu posso gravar uma mix tape, sei lá...
- Não, não, eu escuto com você... - Disse tentando não soar meio desesperada.
Ele deu um sorriso de canto de boca e foi até mim. Pronto. Nos beijamos. Não era meu primeiro beijo, mas era a segunda pessoa que eu beijava. E foi de uma surpresa absurda. Depois, ficamos meses tentando nos entender, e compreender o que era aquilo que acontecia entre duas pessoas que se conheciam desde a infância. Até eu contar para todo mundo foi muito complicado.
Retornei de minhas lembranças e continuei explicando as meninas.
- Além disso, tem tudo o que amamos juntos. Todas as primeiras vezes que tivemos: a primeira vez que ficamos bêbados, que fumamos, que dormimos abraçados, as músicas que ouvimos, os CDs, os livros, os filmes. O que vou fazer sem meu melhor amigo? – E senti a angústia do término, me invadindo mais forte dessa vez.
- Cecilia, mas você que terminou. – Lilian colocou a mão no meu ombro, para me apoiar.
- Sim, eu terminei porque não quero perder a amizade dele e não sei como dizer que tenho esse medo.
- Mas porque isso aconteceria?
Soraia estava deitada no tapete me olhando atenta e talvez pensando em algo para ajudar a resolver a situação. Continuei:
- Eu acho que não gostava mais da seriedade do nosso namoro. Cara, ele está com vinte e um anos. Eu ainda preste a terminar o terceiro ano, tentando uma vaga em alguma faculdade pública no ano que vem, ou tentar algo que eu ainda não sei nem o que é. É inevitável que a gente termine em algum momento. Como eu vou transar com alguém, que além de deixar de ser meu amigo quando isso acontecer, nunca mais vai falar comigo e vai levar embora todas as lembranças desses anos? Eu não quero transar com alguém que pode terminar comigo e deixar de seu melhor amigo. – Esfreguei o rosto confusa.
Soraia sentou-se de repente, olhos esbugalhados, cabelo despenteado, como se tivesse tido uma ideia brilhante para resolver todo o problema.
- Isso pede uma cerveja. Preciso ver se o álcool me ajuda a decodificar melhor isso aí. Lilian, vamos passar na sua casa para você se arrumar, depois na minha. Cecília, vai tomar banho. Vamos sair, agora!
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Garota Azeda
Genç KurguGarota Azeda é a história de Cecília, que assim como você, já amou pela primeira vez e achou que essa pessoa era o melhor amigo que podia ter. Cecília é uma jovem mulher de 18 anos que está vivendo a adolescência nos anos 90. Antes dos smartphones...