O Diário de Hanz Finkler

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TRECHO DO DIÁRIO DE HANZ SOBRE HELENA

Durante as sessões, que devo dizer, não foram poucas devido ao que eu passei, a doutora, talvez madame, não não não, lady deve encaixar melhor, eu já a chamo assim, sendo sincero, eu cheguei assustado demais para pensar no que aquela mulher parecia, ela não é um anjo, até porque eu acredito apenas que demônios existem no mundo depois do que vi, mas se eles existissem, se anjos existem, ela seria o mais próximo de um anjo da guarda de certa forma, ela me ouviu, tanto em momentos de lágrimas, quando na fúria e no medo, e como eu senti medo, ainda me pergunto como ela ouviu,  monolítico, mas mesmo assim, tão serena, eu só vi pessoas dessa forma morrendo por aí ultimamente, fico feliz que não seja o caso, apesar de que acho que ela é diferente, os olhos, sim, são os olhos, eles carregam uma cor amarela, um amarelo ouro profundo, mas é triste, eu apenas sinto tristeza vindo deles, eu não me atrevo a saber do passado dela, até por que já descobri que não vou poder avançar mais do que apenas um paciente e amigo, eu espero que um dia ela possa se abrir como eu faço aqui, uma sombra circunda lady Boushierd, uma sombra escura, ela leva uma marca profunda, tão profunda como os monstros que vivem no fundo da terra, e tão assustadora quanto aqueles que lançam cânticos para as profundezas, eu sinto pena dela, ambos carregamos demônios, mas acho que apenas os meus estão sumindo.

···

Ao acordar parecia que eu tinha levado uma surra, pensei que a única coisa que me surrava assim era a vida, triste, porém um pensamento cômico. Preparei um café forte, detesto café com todas as minhas forças, mas para acordar servia, afinal, foi uma noite horrível, fazia tempo que não tinha um sonho que me tirasse o sono, eu já estou acostumada com meus pesadelos, mas aquele me parecia tão vivo. 

— Acho que eu preciso de um psicólogo.

Ri com minhas palavras, me arrumar não era um trabalho tão difícil, eu moro sozinha, sempre deixo a casa organizada, então é acordar, separar os papéis que iria precisar no dia, dar uma olhada na agenda, me vestir e tudo certo, só que a noite mal dormida me deixou lenta, parece que todos os meus afazeres são um pesar, mas eu preciso trabalhar, necessito do meu mundo por alguns minutos.

Com tudo pronto, finalmente pronto no caso, consegui sair de casa, a passos de uma tartaruga fui pelas ruas, aquela senhora que sempre está varrendo a calçada perto da minha casa, hoje eu não a vi, o que me causou desconforto, uma quebra de rotina estranha, já que não falei bom dia como sempre faço, continuei meu caminho, passei pela floricultura, o estabelecimento  trouxe a lembrança das margaridas que Hanz me deu, parei de caminhar, não faria mal comprar flores para alegrar o consultório e Lady Minerva iria gostar bastante. Na própria frente da loja havia algumas flores bem bonitas, dálias eram as minhas favoritas.

 Na própria frente da loja havia algumas flores bem bonitas, dálias eram as minhas favoritas

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— São para algum pretendente?

A voz era familiar, veio de trás de mim, mas não foi o suficiente para me assustar, me virei calmamente, colocando as mãos nos bolsos, um homem loiro, barba por fazer, olhos verdes, alto, acho que 1,80 cm (um metro e oitenta centímetros) de altura, terno com um casaco por cima, chapéu fedora, hoje pelo menos ele estava arrumado, porque ontem a camiseta toda amarrotada me dizia outra coisa, ergui uma sobrancelha e ele continuou a falar.

— Eu estava a caminho do seu escritório, meu parceiro está me esperando lá, queríamos ter uma outra… —

— Rech não é? Acho que Niklaus Rech. — O interrompi na mesma hora. — Conseguiram o mandato? —

Uma adolescente saiu de dentro da floricultura, um pouco menor que eu, toda sorridente, um vestido de mangas longas branco com um avental canguru marrom, aquele com um bolso na frente, com certeza viu a conversa de lá de dentro e como eu já estou parada a um tempo aqui na frente escolhendo as flores, deve ter vindo agilizar a compra.

— Senhorita vai levar alguma dessas flores? — Ela tinha um sorriso branco, brilhante, aquele que mostrava toda sua juventude.

— Pode escolher algumas dálias? Cinco delas e vermelhas, por favor.

A menina voltou para a loja e me virei para Niklaus, ele tirou o chapéu, dando um suspiro, aquilo me pareceu um sinal de cansaço ou ele estava buscando paciência.

— Senhorita Boushierd, eu sinto muito pelo meu colega ontem, essa investigação tem nos dado trabalho. —

— Não me respondeu. — Minha voz ficou mais rouca e firme, como uma cobrança.

A jovem veio me trazendo um buquê, cinco dálias enroladas em um papel branco com uma fita vermelha para combinar, dei o dinheiro para a menina, agradeci com um sorriso, acenando com a cabeça e me coloquei a caminhar, se Niklaus está indo para o meu escritório ele com certeza vai me seguir.

— Não. — Ele apertou os lábios, como se esperasse uma resposta negativa minha, mas continuei andando e ele como eu previ, foi ao meu lado. — Mas, vimos que Hanz tinha um apreço grande pela senhorita, ele confiava em você. —

— Óbvio, eu era psicóloga dele. —

—  Sim, por isso precisamos dos relatos dele, das suas anotações, se tem alguém que pode nos ajudar é a senhora. — Sério que ele estava tentando me convencer? 

Neguei com a cabeça, dando um riso forçado.

— Herr Niklaus, você parece ser uma pessoa boa, assim como seu parceiro, mas infelizmente, não posso simplesmente dar minha anotações para vocês, eu já expliquei isso e quer um conselho? —

Ele me olhou curioso, colocando o chapéu novamente na cabeça, aqueles homens não eram pessoas ruins, o amigo dele poderia ser estressado, mas eu não sabia da metade da vida deles, eu sou a última pessoa no mundo que deveria julgar o comportamento de alguém.

— Quando você cava fundo um buraco, você pode achar um corpo, uma maldição ou um tesouro, vocês estão cavando fundo demais e podem descobrir coisas que não gostam. — Fiz uma pausa, eu podia ver a esquina da rua que fica meu consultório, eu ainda teria que enfrentar o amigo dele. — Hanz era meu paciente, era uma pessoa incrível, eu sei que o que aconteceu com ele não foi suicídio, eu não erro em meus diagnóstico, mas se ele me escondia coisas, eu já não posso te ajudar, ele só me contava o que ele queria que eu soubesse. —

Queria muito que Hanz tivesse me falado mais, em algum lugar, no fundo da minha mente, eu me arrependo de não ter aceitado os convites dele, de não ter o ouvido de forma mais íntima, longe das paredes brancas do meu escritório,  longe de Minerva, mesmo que isso significasse passar o tratamento dele para outra pessoa, assim Hanz ainda estivesse me trazendo margaridas. Meu coração apertou, eu já tinha perdido uma pessoa, já tinha perdido o amor da minha vida, se eu tivesse me envolvido com Hanz, eu não aguentaria outra perda.

Ao virar a esquina vi o parceiro dele, Vlad Klein, ele tinha um pacote embrulhado em um papel marrom nas mãos, era retangular, mas não era um mandato, o curto caminho de quatro casa foi feito em silêncio, acho que devo ter colocado Niklaus para pensar, ele não me retrucou.

— Guten Morgen, fräulein Boushierd. — Klein me cumprimentou, ele também estava de terno, casaco, apenas não usava o chapéu, um distintivo preso no lado esquerdo do tecido da roupa. — Pelo jeito Rech foi mais rápido, já devem ter conversado. —

— Guten morgen, herr Klein. — Respondi da forma mais calma possível. — Sim e continuando o que estava dizendo para Rech, Hanz só me deixou saber o que eu precisava, não tenho informações relevantes para vocês. —

— Eu trouxe uma coisa para a senhorita, acho que como o atendia, seria bom ler o que está escrito aqui. — Klein estendeu o pacote para mim. — É o diário de Hanz Finkler. —

Segurei o pacote com a mão livre, será que eu queria saber o que está escrito ali? Eu já carrego um diário, tenho mesmo que levar outro, apertei tanto o pacote que a folha que o embrulhava rasgou levemente, tive uma vontade enorme de gritar e jogar essa responsabilidade para longe. Os olhos de Rech e Klein estavam sobre mim, eles comentaram sobre crianças desaparecidas, onde Hanz tinha se metido?

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