A brisa cortante da noite atravessava as ruas desertas enquanto eu caminhava em direção à casa do detetive Rech. Era um daqueles momentos em que o frio parece penetrar a pele e alcançar os ossos, mas o que me deixava verdadeiramente gelada era a memória dos oficiais nazistas que haviam visitado minha casa mais cedo. Küster, o marido da minha secretária, era um deles, e seu sorriso cordial tinha me deixado inquieta. Eu sabia que aquele encontro mais parecia uma ameaça disfarçada, parei um pouco antes, queria ler em segurança, o pouco que consegui notei que ele descreveu algumas experiências, principalmente com crianças, eles diziam que era oferecidos doces, mas notei que não era a mesma coisa com todos, principalmente gêmeos, era um interesse estranho, pelo que Hanz descreveu, algumas nunca mais foram vistas… Era melhor continuar a andar.
Enquanto atravessava o caminho iluminado fracamente pelas luzes das lamparinas, o diário de Hanz pulsava em meu braço. Aquelas páginas, repletas de histórias de dor e sofrimento, eram um lembrete constante de que há verdades que merecem ser descobertas, mesmo que elas venham acompanhadas de sombras que desejo esquecer. Hanz não mereceu um destino como o que teve, e eu, como sua psicóloga, ainda me perguntava se eu poderia ter feito algo a mais por ele.
Busquei na memória a última sessão, as respostas evasivas que ele me deu, e como a expressão em seu rosto mudara quando ele mencionou algo que estava oculto sob a superfície. Ele falava sobre os horrores que enfrentara em Auschwitz, e eu, envolvida no meu papel de terapeuta, não consegui ver a profundidade da angústia que ele escondia. Ao abrir o diário, o que encontrei foram as descrições de experiências inimagináveis.
Cheguei à casa de Rech, o coração acelerando à medida que me aproximei da porta. Bati algumas vezes, e a ansiedade se transformava em um receio palpável. O pensamento de que o passado – meu noivo, sua morte, tudo o que havia acontecido – poderia voltar a assombrar-me me deixava quase paralisada. Mas não havia tempo para hesitar; as crianças, os gêmeos desaparecidos, as filhas de Klein, as mortes misteriosas – tudo isso exigia uma resposta.
Rech abriu a porta, seu rosto iluminado pela luz suave que vinha de dentro. Havia algo reconfortante em sua presença, uma determinação que emanava dele como um farol em meio à escuridão. No entanto, eu não podia ignorar o brilho em seus olhos, uma mistura de preocupação e... algo mais? Um interesse que parecia ir além da investigação.
— Helena! — Exclamou ele, abrindo um sorriso que suaviza a rigidez da situação. — Venha, entre.
Entrei, sentindo o calor da casa e o perfume de café fresco no ar. Isso me lembrou o lar, um lugar de segurança. Mas tudo parecia um eco distante enquanto eu segurava o diário.
— Eu preciso falar com você sobre os oficiais que vieram até mim — comecei, a voz tremendo ligeiramente. Rech me observou com atenção, sua expressão mudando para uma seriedade que correspondia ao peso da minha revelação.
— O que aconteceu? — Sua voz era profunda, firme. — Eles foram muito invasivos?
— Sim — respondi, tentando não me perder na lembrança do seu olhar calculista. — Um deles era Küster. Ele é marido da minha secretária. Ela deve ter ouvido a nossa conversa, eles querem o diário de Hanz. O que vocês descobriram sobre a investigação?
Rech hesitou por um momento, seu olhar perdido em algum lugar entre as memórias e as implicações daquilo que queríamos desvendar. — Temos encontrado conexões sobre experiências com crianças gêmeas. As mortes não são acidentais — ele me contou, o tom grave na sua voz a deixando mais clara.
Um eco tão brutal de meu próprio passado. A relação que me ligava ao culto havia se manifestado naquela história toda e eu sentia a angústia retornando. Uma dor antiga, um desejo por justiça que nunca foi satisfeito.
— O diário de Hanz menciona experiências… Mas não terminei de ler. — eu disse, quase em sussurros. As palavras saltaram de mim como se quisessem escapar. — Ele sabia demais. A morte dele foi dada como suicídio, mas… eu não consigo aceitar isso.
Rech, percebendo a angústia em minha voz, deu um passo à frente. — Eu também não consigo. Preciso que você me confie tudo, Helena. Cada detalhe que você tem, cada pensamento — sua mão encontrou a minha, um gesto de solidariedade que me trouxe alguma paz.
Àquela altura, a conexão entre nós parecia mais forte do que a simples parceria entre detetive e psicóloga. As sombras do meu passado e do presente começaram a se entrelaçar, formando um tecido complexo de histórias inacabadas e segredos ocultos. Eu sabia que estávamos em um caminho perigoso, um caminho que poderia levar não apenas à verdade sobre Hanz e os gêmeos desaparecidos, mas também a revelações sobre o que realmente havia acontecido em minha própria vida.
— Você não tem ideia do que está se envolvendo — continuei, a voz mais firme agora. — Esses oficiais não estão aqui apenas para uma investigação. Eles estão protegendo algo muito maior. As experiências podem significar algo impensável.
Rech me observou atentamente, seu olhar fixo nas minhas palavras como se estivesse tentando decifrar um enigma. A tensão entre nós crescia, e eu sabia que os segredos que eu guardava podiam desenhar o destino de muitos.
— Então, precisamos agir rápido — ele decidiu, a determinação voltando a brilhar em seus olhos. — Vou reunir minha equipe. Não podemos nos dar ao luxo de hesitar. Se eles estão procurando por você, isso significa que você tem algo que eles não querem que seja revelado. E eu não deixarei que você caia nas mãos deles.
— Mas e os gêmeos? — perguntei, já me sentindo envolvida numa rede de pura adrenalina e medo. — Precisamos resgatá-los antes que seja tarde demais.
A menção das crianças fez Rech acenar com a cabeça. Ele se levantou, dirigindo-se a uma mesa onde papéis estavam espalhados. Ao se inclinar sobre eles, a luz da lamparina iluminou seu rosto de maneira a destacar as marcas de preocupação e determinação.
— Estamos trabalhando em algumas pistas sobre as últimas aparições deles. Acreditamos que estavam sendo mantidos em um lugar isolado. Mas, Helena, precisamos que você se mantenha em segurança. Você é uma testemunha essencial e, se eles perceberem o que você sabe, não hesitarão em agir.
A ideia de entrar em oculto me fazia sentir vulnerável. O perigo parecia se fechar ao nosso redor. Mas a ideia de crianças inocentes – gêmeos que poderiam estar passando pelo mesmo terror que Hanz havia enfrentado – acendia um fogo em meu interior.
— Não posso ficar de braços cruzados enquanto isso acontece! — protestei, minha voz subindo em intensidade. — O que Hanz passou não pode ser em vão. Ele confiou em mim e eu falhei. Não posso permitir que o mesmo aconteça com essas crianças.
Rech me encarou, a luta interna visível em seu semblante. Ele sabia que, ao se juntar a mim nessa jornada, caminhávamos sobre uma corda bamba. Uma parte dele queria me proteger, enquanto a outra entendia que minha determinação era vital.
— Então, se é assim, precisamos de um plano. Vamos reunir as informações que temos e começar a agir. Mas você precisa prometer que não irá se aventurar sozinha. Esteja sempre atenta a qualquer movimento.
Aceitei seu olhar penetrante e assenti. Havíamos estabelecido um pacto silencioso naquele momento. Com a força do passado emergindo das sombras, estávamos prestes a confrontar não apenas os horrores de Mengele, mas também os ecos tortuosos do nosso próprio passado, que nos insistiam em não permanecer em silêncio.
À medida que a noite se aprofundava e as estrelas brilhavam no céu, eu sentia a conexão entre nós se reforçando. O que começava como uma busca por respostas se tornava um caminho de colaboração, e juntos estávamos prontos para enfrentar o que fosse necessário para trazer à luz as verdades que estavam escondidas nas trevas.
Com o diário de Hanz em mãos, a narrativa da dor e resistência pulsava em meu sangue, e a determinação de salvar aqueles que ainda podiam ser resgatados acendia uma chama de esperança em meio ao caos. Chegou a hora de agir, e eu não estava disposta a recuar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Os Gritos de Helena
ParanormalA história é baseada nos contos de H.P. Lovecraft e de Edgar Allan Poe, nesse primeiro conto vamos conhecer Helena Boushierd, uma psicóloga de 30 anos que teve sua vida bagunçada graças a forças maiores que ela nem ao menos conhece.