A casa da Raposa

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Caderninho vermelho,
 
      As semanas em Avonlea agora parecem muito mais atarefadas quando se tem onde escrever sobre, mas não  pense que estou reclamando, amo cada dever que a Senhorita Stacey nos passa, bem, talvez não ame tanto os de matemática, mas amo aprender coisas novas, e minha professora sempre tem coisas incríveis para ensinar, as tarefas em Green Gables também me dão um ótimo senso de responsabilidade, e eu absolutamente amo o nosso clube de histórias.

      Mas não posso dizer que está tudo perfeitamente bem, sinto falta de meu amigo Cole, acho que ele está com raiva de mim, é o único motivo plausível para a falta de resposta a minha última carta, acho que pedi demais dele, há algumas semanas encontrei com sua mãe no caminho para as classes dominicais, na verdade foi ela que me encontrou, viu meus cabelos ruivos e perguntou se era Anne, a melhor amiga de seu filho, fiquei honrada com o título, é claro que Cole é meu melhor amigo, mas saber que eu, entre todas as doces e gentis garotas de toda aquela cidade, era eu quem recebia tamanha designação, foi uma sensação extraordinária, mas ela parecia triste, me perguntou se ele  estava realmente bem.
        Cole mandava, não com muita frequência, cartas à família contando como estava, o realmente na sua frase me fez sentir sua dor, Cole não tinha o costume de abrir seus sentimentos para a família, ela estava realmente preocupada, então assim que cheguei em casa mandei uma carta ao meu melhor amigo, pedindo que viesse, visitasse sua mãe e que confrontasse sua família, agora, semanas sem resposta, receio que tenha falado de mais e Cole esteja bravo comigo.

         Tentei me distrair o máximo possível disso, o projeto da casinha da minha raposa conseguiu isso, ela ficou tão linda, caderninho, Jerry fez a maior parte, Ruby recusou a se sujar de argila, disse que sua mãe a mataria, e se isso soasse muito dramático, nunca mais a deixaria falar conosco, lembrei de Marilla,  de quando descobriu a minha ¨Aventura amarela¨.
         Ela tinha ido visitar Rachel, então aproveitei para lavar o vestido, tinha recém colocado na água quando Marilla voltou pelo bolo da senhora Lynde, quando viu as manchas o choque foi tremendo que derrubou o doce no chão, de joelhos implorei que me perdoasse, recitando os mais magníficos versículos de perdão que conhecia e ela, com toda a calma do mundo, me pediu para levantar dizendo para consertar o vestido antes que voltasse e usaria mesmo que não estivesse manchado, agradeci por sua compreensão e quando eu fui limpar o resto de bolo Marilla não deixou disse que como foi ela a responsável, ela limparia e que também era uma lição para mim, tinham algumas manchas claras quando terminei, mas tudo bem, não era um vestido importante, não iria pra igreja ou a alguma festa com ele, talvez na escola algum dia, talvez Josie rissem de mim e alguns alunos menos desagradáveis a acompanhariam, mas não me incomodaria, olharia para Gilbert com um sorriso cúmplice e aceitaria meu destino como se deve ser.
No dia seguinte, depois da aula, Marilla pareceu com um vestido, era um belíssimo tom de azul escuro, disse que era de uma das filhas de Rachel, que me perdoe caderninho, não lembro seu nome, ela afirmou que precisava de mais um vestido, eu adorei, não tinha nenhum babado, laço ou mangas bufantes, mas adorei, me lembrava aos que Marilla fazia para mim, o que me fez amá-lo mais ainda, tenho a leve impressão de que ficou ruborizada quando disse isso, uma tarde escolhendo qual iria usar para a reunião do clube de histórias, os comparei, eram muito similares, alguns dias depois varrendo perto de sua máquina de costura, encontrei um retalho, o mesmo tecido do meu vestido, foi então entendi caderninho, assim que a vi, abracei forte a verdadeira autora do meu vestido, Marilla não entendeu o porquê, apenas me abraçou de volta, agradeci pelo vestido, ela tentou negar, mas percebeu que eu sabia então disse que não significava que iria jogar fora o antigo e teria que usar mesmo assim.
     Então talvez Ruby esteja exagerando, não que a senhora Gilles seja que nem Marilla, acho que nem existe alguém como Marilla, mas acredito que as vezes nossas famílias podem nos surpreender, foi o caso de Diana, se alguém me dissesse que a Senhora Barry se aborrece com nosso clube, eu não ficaria exatamente surpresa, então quando  pediu para se sentar conosco durante nossa reunião, ficamos apreensivas, com medo de que não gostasse de nossas histórias, achasse bobagem e desencorajasse as meninas, quando pediu para Diana ler algum conto próprio, percebi sua respiração mais pesada e como gaguejou de início, era uma história simplista, inspirada pelo Arcadismo, Diana gosta de se inspirar em uma escola específica. Ao contrário do que esperávamos, a senhora Barry ouvia maravilhada, como se ouvisse a criação da própria Bíblia, no final disse que a Tia Josephine contou que eram boas, mas não esperava tanto. O deleite de Diana foi algo encantador de se ver, não parou de sorrir o resto do dia, fiquei muito feliz pela minha amiga.
 
         Assim que a casinha ficou pronta passamos o resto da tarde esperando a raposa chegar, volta e meia Jerry e Diana trocavam rápidos diálogos, algumas palavras em francês, ficamos bastante tempo ali, parados em silêncio só esperando ela chegar, queríamos ver sua reação, se gostaria, se entraria, se transformaria aquela simples casinha feita por um bando de crianças, seu lar.
 Ruby estava impaciente, não aguentava mais esperar, eu a entendia, mas queria tanto vê-la, foi Diana quem disse para Ruby ficar quieta, se não assustaria a raposa, ela reclamou das ¨conversas francesas¨, e as duas começaram a discutir, Jerry e eu tentamos apaziguar a situação, Ruby disse que eu quem deveria estar mais incomodada, nunca ficava quieta, acabei entrando na discussão, entendo que estava irritada, mas porque tinha que me envolver? Acho que no calor do momento acabei chamando a de mimada, acostumada a ter tudo na mão e não podia esperar, o que me arrependo profundamente, mas acho que ela não ouviu, estávamos as três falando ao mesmo tempo. 
Foi Jerry quem nos trouxe de volta a realidade, e, quando nos viramos para a casinha, a raposa já estava lá dentro, deitada olhando para nós, começamos a rir muito, acho que não sou capaz de descrever aquela sensação calorosa, estar lá, rir com meus amigos, 
Acomodada sob o teto coberto de palha ela nos encarava como se fossemos loucas, Diana abraçou Ruby de lado e ela com o outro braço me puxou para perto também, nos desculpamos umas com as outras, me senti grata pelas minhas amigas, Jerry não sabia muito bem o que fazer, revezava em olhar para o chão e para o céu, eu  agradeci pela sua ajuda, quis escrever mais sobre esse dia, mas cheguei tão cansada, me arrependo, se tivesse escrito teria mais detalhes para contar.
        No dia seguinte por uma das ideias mais estúpidas que tive em meus longos anos de vida, resolvi levar meu caderninho, que dizer levá-lo até a minha raposa, queria poder descrevê-la o mais detalhado possível, para nunca esquecer, nem tive tempo, as meninas já estavam lá quando cheguei, Diana, Ruby, Jane e Tillie, consegui te esconder antes que lhe vissem, não foi por vergonha caderninho, juro que se fosse só Diana teria mostrado sem acanho, mas estavam todas lá, e se a curiosidade não lhes bastassem e lessem sobre a minha vida? A ideia ainda me incomoda muito.
        Ruby falava com muito orgulho da nossa casinha, então não me incomodei por ser a que menos ajudou e ainda sim ser quem exibi-la, logo se cansaram e ela nos convidou pra uma tarde de chá nos Gilles, quando fez o convite eu e Diana tivemos uma crise de risos, as meninas não entenderam muito hem, mas eu e Diana sim, é bom poder rir de uma situação tão horrenda no passado, enquanto não olhavam te escondi no telhado da casinha. Aquela foi uma tarde perfeita, conversamos sobre tantas coisa rimos tanto, a tarde perfeita para antecipar uma noite trágica.

         Fui caminhando saltitante até em Green Gables, lembro como estava leve até aquele momento, até encontrar Jerry na porta de casa, quanto mais me aproximava, melhor podia ver a tristeza em seu olhar, senti um frio na espinha, ele me entregou meu caderninho, ou melhor você, caderninho, e olhou para mim, perguntou se eu tinha vergonha dele, se o achava idiota, fiquei confusa, lembrava de ter escrito sobre ele, das aulas, mas eram coisas boas, vendo a minha confusão ele abriu meu caderninho e leu com um pouco de dificuldade; 
  "ela até pediu para conhecer Jerry, o que confesso que me assusta um pouco, quer dizer. E se ele der alguma gafe ou dizer algo errado? Ela pode pensar que eu não o ensinei direito e se decepcionar comigo."
Senti tanta vergonha, principalmente porque não me reconheci naquelas palavras, não é assim que eu penso do Jerry. Eu quis sentir raiva por ele invadir a minha privacidade, quis muito, mas tudo que me atingiu foi o arrependimento, eu tentei explicar que não era para ele ler, que não era para magoá-lo. Ele perguntou se então tudo bem falar mal de alguém se essa pessoa não souber.  Não respondi, não sabia o que responder. Antes de sair ele disse que nunca tinha pedido a minha ajuda, que nunca quis as minhas aulas.

        Acho que nunca pensei que as minhas palavras podiam atingir alguém tanto como as dos outros me atingem. Naquela noite quase não dormi, fiquei remoendo a conversa, tive um péssimo dia seguinte com direito a muitas perguntas das meninas, nunca passei uma classe de aula tão terrível, quero dizer, nunca tive uma aula tão terrível com a senhorita Stacy. 
       Depois da aula ela veio até mim, perguntou se estava bem, pela falta de interesse na aula, apenas disse que não dormi direito a noite, se soubesse o que fiz, talvez não gostasse mais de mim, eu mesma não gosto, ela sorriu e disse que, quando não consegue dormir toma um copo de leite quente, sempre funciona, sorri pelo fato da senhorita Stacy querer me ajudar, mesmo sem merecer.
        Não sei em que pé anda nossa relação atualmente, depois daquilo nossas conversas se resumiram em Bons Dias e, apenas na presença de Matthew, uma tarde o mesmo me pediu para pegar um balde no estábulo, estava quebrado na alça e Matthew queria concerta-lo, fui cruzando os dedos para que Jerry não estivesse lá, e pela minha sorte, claro que estava, mas continuou trabalhando como se não eu existisse, o que tenho que admitir doeu um pouco, tentei reparar qualquer coisa para não pensar demais, o som dos animais; do que poderiam estar falando? A lousa ainda estava lá, quebrada nos cantos como a cicatriz de um primeiro encontro. A palha me lembrava o conto do Rumpelstiltskin e como demorei meses pra aprender a escrever seu nome, no orfanato procurava qualquer pedaço de papel que pudesse escrever, uma vez furtei a sacola do pão só para recitar os versos de Shakespeare, a inspetora ficou furiosa quando descobriu, percebi que estava indo para um lado perigoso das minhas memórias, então foquei em pegar o balde, procurei em todos os lados mas nada, logo Jerry se irritou com minha presença e pediu, não muito educadamente devo mencionar, que lhe deixasse em paz, expliquei que estava única e exclusivamente porque Matthew pediu, ele ficou quieto, mas como é impaciente, dois segundos depois já estava reclamando de novo.
Afirmei que não achava o maldito balde e ele, apenas para me ver longe, me ajudou a procurar. Se os animais pudessem falar, seriam testemunhas do meu esforço, tanto para ficar rodando o celeiro que nem barata tonta, como para ficar ouvindo os suspiros julgadores de Jerry a cada movimento meu.
         Num dado momento ele parou de suspirar, apenas ficou quieto, e trocamos um rápido diálogo, que vou tentar reproduzi-lo com a maior verossimilhança.
Anne: Me desculpa. Eu não quis escrever aquilo.
Jerry: Mas escreveu.
Anne: Não é verdade, eu nem sei porque escrevi aquilo.
(Silêncio)
Jerry: Acho que ficou com ciúmes.
Anne: Ciúmes?
Jerry: É, descobriu que tem outro gênio em Green Gables.
Ele disse me um tom brincalhão, eu ri e concordei. Não sei se fizemos as pazes, mas agora já conseguia respirar perto dele.

         Obrigada por me ouvir aqui, outro dia lhe conto sobre as aulas de culinária que Marilla tem me dado,

Cordialmente, Anne de Green Gables

O Caderninho vermelho de Anne Shirley Onde histórias criam vida. Descubra agora