A visita surpresa

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Caderninho vermelho,

      Era uma quarta preguiçosa, o céu estava limpo, perfeito para passear no campo com as minhas amigas, estávamos brincando de cabra cega, foi muito divertido, Tillie tinha quase um talento em nos localizar, ao contrário de Ruby, que passa mais tempo no chão que atrás de nós, estávamos apenas as quatro, Jane tinha algum compromisso com a família e de acordo com Josie, estava muito velha para brincadeiras idiotas e infantis. Em algum momento Diana disse que era minha vez, mesmo sem ter sido pega, o que achei um pouco injusto, mas com todas meninas incentivando, tive que acatar, fiquei irritada porque de início elas não disseram nada, só ouvia alguns passos, senti mãos tapando meus olhos por cima da tenda, fiquei confusa, sabia que não eram as meninas e não sabia quem mais poderia ser, segurei naquelas mãos, eram familiares, e seu timbre no "Adivinha quem é", mais ainda, perdi a paciência e joguei minhas mãos para trás tentando tatear o rosto desconhecido, ele me soltou e disse que não sabia brincar, foi aí caderninho, que o reconheci, reclamando da minha impaciência, tirei a venda e vi meu melhor amigo parado, olhando para mim, não preciso comentar que corri e o abracei forte, quase não o deixando falar, disse para sentarmos no chão, para ficarmos mais cômodos, mas ele não quis sujar as roupas que Tia Josephine tinha comprado, ficamos em pé mesmo, ele pediu desculpas por não responder minha carta, passou dias pensando sobre e disse que eu estava certa, que tinha que ter a sua família, que estava sendo covarde, e pediu que fosse com ele, para apoiá-lo. Não se fiquei mais em choque por ele estar aqui ou por estar certa. Qual parece mais improvável?

      A senhora Mackenzie tinha quatro filhos, sendo Cole o mais velho, dois pequenos e um de colo, o senhor Mackenzie trabalha na lavoura o dia inteiro e a menina que ajudava a cuidar da casa tinha saído, então me ofereci para cuidar das crianças enquanto conversavam, foi uma terrível ideia, em algum momento o bebê começou a chorar e foi como se tudo estivesse escurecido, lembrei da senhora Hermond e seus oito filhos, lembrei dos choros e gritos, foram os berros, as broncas os castigos, fui transportada para aquele eterno pesadelo só acordei quando aquele menino foi tirado dos meus braços, a mãe do Cole me olhava incrédula, não a julgo, seu filho estava ali chorando eu parada sem fazer nada, não me ofendi, fui olhada assim a vida inteira, mas doeu quando o meu melhor amigo me olhou assim, como se não me reconhecesse, senti o ar sair dos meu pulmões e tive outra péssima ideia, corri, queria fugir daqueles olhares, daquelas crianças, queria fugir do meu passado. 

        Como eu disse não foi uma boa ideia, apenas sai do terreno da fazenda, já com a cabeça doendo e os pulmões queimando, deitei no chão sentindo que desmaiaria, tive que me forçar a acalmar, Cole apareceu e deitou do meu lado, não se importando em sujar as roupas caras, não disse nada, apenas ficou do meu lado, esteve lá o tempo todo.

         Voltei a respirar normalmente, ainda deitado ele contou da conversa com a mãe, ela pediu desculpas, por não ver que sofria, por não notar o silêncio, o braço quebrado, se desculpou por serem pais ausentes, e ele a perdoou, pediu desculpas por não dizer que sofria, por mentir que ia à escola, por ir embora com a tia Josephine, mas não revelou o segredo, não tinha coragem para contar e nem eles para entender, tentei dizer a ele que às vezes nossas famílias podem nos surpreender com a compreensão, mas não ajudou, ele não estava pronto, mas vi que estava mais leve e me senti orgulhosa porque em nenhum momento ele se desculpou por ser diferente.

        Cole me levou até em casa, afirmei que não precisava, mas insistiu, queria garantir que não tivesse outra crise, se despediu da mãe e dos irmãos, e enquanto olhava para aquelas crianças tive medo. E se nunca fosse capaz de cuidar de uma criança de novo? Acho que pode ser uma criança me deixou desacostumada. Nunca seria capaz de ser mãe?

       Fomos pelo caminho do Lago das águas cintilantes, ele contava sobre as aulas de arte, as coisas que aprendeu a esculpir, a euforia que sentiu, a sua grande animação foi cortada quando viu uma família se aproximando, fiquei preocupada, ele parecia paralisado, mais branco que o normal, parecia que nem notava a minha existência, foi quando os reconheci, os Andrew´s. Acompanhados de seus pais estavam Jane, Prissy e claro, o ser mais desprezível do universo, Billy. Fiquei tão preocupada, Cole estava muito branco ao mesmo tempo ficava vermelho, seu olhar travado, olhei para sua mão trêmula enquanto fechava o punho, eles se aproximavam, mas demoraram para nos reconhecer, vi a surpresa no rosto de Jane e Prissy, as duas foram legais, nos abraçaram e disseram como era bom vê lo, acredito que para manter a educação pela presença paterna Billy não fez nada, ficou parado ali como se não fosse a motor principal dos problemas de Cole, a senhora Andrew foi gentil por assim dizer, sorriu, perguntou se estávamos bem e convidou para um lanche algum dia, o que certamente nunca irá acontecer, posso estimar Jane e Prissy de todo coração, mas nunca pisaria na casa de Billy Andrews, Cole não respondeu nada, apenas reagiu conforme a situação, abraçou as meninas de volta, sorriu para a senhora Andrews e correspondeu o aceno do senhor Andrews, precisa tirar meu amigo de lá antes que alguma coisa muito ruim acontecesse, disse que estávamos atrasados e seguimos o caminho, que foi bem silencioso depois desse encontro. 
 
        Marilla quase brigou comigo pelo horário, quase, porque quando viu Cole abriu um sorriso, sorriso que devo ressaltar, ela não abre quando me vê. Preparou um chocolate quente, que também não prepara só quando eu estou e pediu que Matthew o deixasse em casa. Antes de sair abracei ele como se nunca mais fosse vê-lo, como senti tanta falta do meu amigo.
  
        Apesar de ter sérios motivos para estar furiosa, Cole cismou nessa ideia estapafúrdia que Gilbert gosta de mim, no último dia, fez questão de me buscar na escola, estava conversando com as minhas amigas, quase não notando a existência do Blythe quando o mesmo perguntou para todas nós, sem olhar para uma direção específica, a data de hoje, Cole apareceu não lhe ocorreu ideia melhor que elogiar minha aparência, ah caderninho, não imagina como eu fiquei vermelha, e ele ainda teve a audácia de perguntar para Gilbert se concordava a opinão, o que ele fez, mas qualquer pessoa minimamente decente faria o mesmo, considerada a situação atual, acredito que Gilbert nunca mais me chamaria de , a palavra com c. Juro que manti toda a calma e apenas agradeci o elogio mal intencionado. Ruby queria dizer alguma coisa, abria e fechava a boca, mas no fim apenas sorriu. Caderninho, me explique como Gilbert Blythe tem o menor interesse em mim tento Ruby Gilles tão apaixonada por ele? Fiz a mesma pergunta a Cole e ele só respondeu que o coração não obedece a nada, se obedecesse ele não seria do jeito que era.
 
       Parando pra pensar agora, Cole insistiu em me buscar, ele insistiu em ir na escola, ele sabia que Billy estaria lá, mas não teve medo, a vida com a tia Josephine estava fazendo bem, por sorte não o encontramos depois da aula, acredito que foi fazer alguma coisa que garotos rudes fazem, a Senhorita Stacy deu o maior sorriso quando o viu, perguntou se estava bem, como estavam as coisas, fiquei encantada, quando for professora quero ser quem ela, que se preocupa com os alunos, mesmo que já não  façam parte de sua turma. A despedida na estação foi triste, mas não chorei, abracei Cole e ele bagunçou meu cabelo, disse para que o visitasse logo. Ve-lo partir foi uma sensação esquisita, a tristeza da despedida lutava com a alegria do encontro, talvez seja o preço a pagar por amar alguém.

       Contei a Diana sobre talvez nunca ter filhos, para ela fora  a coisa mais absurda que já ouvira na vida, não a julgo, Diana é exatamente o tipo de garota que foi criada para isso, usei Marilla e Tia Jô como exemplo mas ela rebateu comigo e Cole, crianças que adotaram e agora são muito felizes juntos, ouvi as queixas da Senhora Barry com Minnie May, ela colocava alguma coisa na boca, questionei para Diana se ela aguentaria cuidar de várias chorando e gritando, a senhora Hammond não era feliz.
   
        Diana disse que seria diferente, Minnie May era mimada, não criaria os filhos assim, então me veio outra dúvida, é se não os criasse direito e fossem como Billy ou Josie, não suportaria, Diana disse que isso não importava muito, eu tive uma infância difícil e mesmo assim era uma criança boa, inteligente e imaginativa, apesar de não concordar plenamente com ela, fiquei comovida por ela me ver dessa maneira, fizemos um combinado, iríamos ser vizinhas para sempre,  apoiar uma a outra, toda vez que tivesse algum problema ela viria, ela seria a Tia Diana para meus filhos e eu seria a Tia Anne para os dela, isso não resolveu muito o meu problema, mas é tão bom saber que sempre teria Diana.
  
       Perguntei a Marilla se ela se arrependia de não ter tido filhos, ela disse que as coisas acontecerem como tinha que ser, não tinha como mudar, eu insisti mas a resposta foi a mesma. Marilla sempre foi meio fechada, uma vez, a senhorita Stacy me pediu para recitar o poema de Mary, a rainha dos escoceses, ah caderninho, a alegria não cabia dentro de mim então coloquei toda a minha alma naquele poema, Marilla reagiu como se fosse uma coisa cotidiana, recitar poemas o dia todo, imagine que encantadora profissão, as pessoas que leem poemas todo dia devem ser muito sábias e realizadas, apesar que o poema de Mary era muito trágico, a miséria de sua vida, a saudade dos que amava, talvez lê-lo todo dia nao fosse uma boa ideia, o melhor seria ler só algumas vezes para lembrar o quanto sou sortuda.

       A noite antes de dormir Marilla foi no meu quarto, senti sua presença durante a minha oração, mas não parei, se parasse Marilla brigaria comigo por ser desrespeitosa e não queria ser desrespeitosa, ela sentou na minha cama perguntou se a minha questão hereditária, era uma dúvida se ela tinha se arrependido de ter me adotado, eu  pensei explicar a situação, realmente pensei, mas queria muito ouvir o que iria dizer; ela disse que não, que não se arrependia nem por um minuto, que não imagina mais Green Gables sem a minha presença, acho que pela primeira vez não reclamei da falta de imaginação de Marília. A abracei forte e ela me colocou para dormir, dormi tranquila, me sentindo amada, no trecho do poema da rainha quando fala dos amigos que a amaram tão verdadeiramente, pensei em Matthew e Marilla.

     Agora chegou a hora da sublime notícia, talvez a notícia que mais queria contar, a mais magnífica das notícias, ontem à tarde Mary e Sebastian vieram aqui, Gilbert estava ajudando no consultório medico, foi a primeira coisa que Bash disse quando me viu, antes mesmo de dar bom dia, acho que é porque ele ainda se sente desconfortável vindo aqui, Mary estava quieta, pediu para sentar ao seu lado, no momento fiquei nervosa, tentando lembrar se tinha feito algo errado. Ela disse que tinha algo importante para dizer, comecei a maquinar tudo que pudesse dar errado, talvez tivessem resolvido ir embora, talvez ele não tivesse se acostumado com o frio, quem sabe iriam todos para Trinidad, fiquei tão assustada, Mary pegou minha mão e colocou em sua barriga, achei que ia dizer que tinha alguma doença, então ela disse " Anne, é o nosso bebê".
 
      A minha cara de surpresa deve ter sido engraçada porque Mary e Bash riram da minha reação, Sebastian disse que será a filhinha dele, Mary respondeu que ele cismou nessa ideia, e que se não parar vai mimar demais a criança e Sebastian disse que, sendo filha de Mary, não tinha como não ser a criança mais incrível do mundo.

       Eles se olharam como se não notassem a minha presença, como se o mundo inteiro parasse apenas para se olharem e eu, vendo aquela pequena família crescendo, pensei que, não sei, talvez ter filhos não fosse uma coisa necessariamente ruim.

       Enfim caderninho, é o que é queria contar, prometo tentar não desaparecer de novo, tenho que contar da festa que terá sábado na casa de Sophie Slone.

                                                                     Cordialmente Anne de Green Gables

O Caderninho vermelho de Anne Shirley Onde histórias criam vida. Descubra agora