Faz calor. A vida anda irritante. Angustiante. Sufocante. Falta para a vida a vontade de viver. O surto é inerente ao nosso tempo presente. Eu só gostaria de mandar todas as pessoas irem para a casa do caralho, e que eu pudesse ter um dia de paz, para fazer tudo que aprecio ou para, simplesmente, existir sem ter que fazer ação alguma.
Preciso preencher um contrato com uma grande empresa do ramo de petróleo e gás, para ontem. Faz meses que estou prospectando e nutrindo os decisores. É um saco, eu odeio esse trabalho, mas foi a oportunidade que a tal da vida me deu. Saio do meu quarto, desço as escadas, corro para a minha pasta de arquivos, que fica na sala. Preciso fazer isso logo, já estão enchendo o meu saco. Ando sem olhar para onde, piso em falso e caio no chão. Consegui virar a tempo de não bater meu nariz direto no mármore gelado.
Não me levantei de imediato. Algo me fez ficar parado, sem me mexer. Estava deitado de costas para cima e parte de mim reclamava da dor da queda, mas a outra parte se sentia feliz de sentir algo além de estresse e insatisfação. Como o chão estava frio. Era reconfortante. Ali eu me senti seguro como nunca antes. Não é necessário se equilibrar com os pés na corda bamba do acaso quando você está estirado por completo no chão. Não há mais risco de queda, até porque ela já aconteceu, não é mesmo? Decidi curtir a estadia.
Depois de um tempo, que não consigo identificar quanto que se passou, se foram minutos ou horas, eu me senti conectado com o chão, como se eu sentisse suas entranhas, seu interior profundo. Debaixo do piso e do concreto, a terra carrega tantas histórias que o meu mundinho corporativo chega a ser insignificante. Pra falar a verdade, lembrei que é essa mesma empresa de petróleo e gás que perfura o mais íntimo da terra, tirando dela a força a sua história. Como podemos ser negligentes quando queremos. Talvez o queiramos a todo o momento.
Dormi. Foi uma das melhores sonecas que eu tive em tempos. O chão, agora menos frio, foi extremamente acolhedor, e com ele eu dividi meus sonhos, e ele os seus. Acordei, na verdade, porque ouvi meu telefone tocando lá no andar de cima. Tocou primeiro uma, depois duas, depois continuou a tocar incessantemente. Porém, eu simplesmente não conseguia ligar, eu estava num estado tão bom que não poderia ser quebrado com esse barulhinho persistente. Nada mais importava. Eu nunca tive tanta paz.

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Desalinhos e Tormentos
Short StoryDesalinhos e Tormentos traz uma coletânea de contos que podem identificar a maioria dos leitores: jovens perdidos na vida e que sentem que tudo está errado, inclusive com eles próprios. A humanidade é louca, repleta de contradições, e a nova geração...