O Amor de Narciso

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O Sol esquenta o quarto. Narciso está deitado, entediado. Navegando na internet, Narciso não consegue entender: as pessoas passaram a se amar, ou a parecer que se amam, a tal ponto nas redes sociais que elas não têm mais tempo para louvar Narciso. Isso entristece o jovem. As perseguições faziam bem para o seu ego.

Narciso se levanta e anda até a cozinha para preparar seu café. Para e lembra de seu jejum intermitente, só poderia comer naquele dia pela tarde. Decide então vai fazer seus exercícios matinais. Podem não lhe dar tanta atenção como antes, mas isso não é motivo para negligenciar seu corpo musculoso, polido, esculpido pelos próprios deuses. De qualquer forma, ainda há Narciso para admirar Narciso.

Pobre Narciso, também não tem amigos ou amantes. Não que ele realmente precisasse, orgulhoso como ele é para admitir, mas os outros, que fingem que se amam, têm amigos e uma vida sexual para expor. Narciso não teve relacionamento algum na sua vida, nem mesmo pôde se apaixonar por outra pessoa fora ele mesmo. Narciso também nunca havia transado. Nunca amou ninguém além de si mesmo, então, para Narciso, transar com alguém que ele não desejasse e, pior, fosse muito menor que ele, ó Grande Narciso, não fazia o menor sentido. Sua mão e seu toque era tudo que ele precisava para ter prazer.

Porém Narciso é muito orgulhoso, nunca diria a ninguém que é virgem, tampouco que ele próprio é um punheteiro. Narciso sabe pela internet que homens punheteiros são perdedores, fracassados e nojentos. Isso nada tem a ver com Narciso, sempre perfumado, lindo, charmoso e bem penteado. O néctar dos deuses também sabe pela internet que punheta não é sexo, e isso incomodava a beldade. Reles pessoas normais não poderiam estar a frente do jovem. Precisava fazer sexo, pelo menos para dizer que um dia já fizera. Nessa era da corrida das aparências, não podia ser Narciso a pessoa a estar em último lugar. Precisava tomar uma atitude imediatamente.

Mas com quem ter sexo se ninguém é digno de receber o corpo perfeito de Narciso? Quem chegaria, no mínimo, aos pés de Narciso, que possui cabelos perfeitos, nariz perfeito, veias perfeitas. O próprio Platão havia admitido que estava errado a respeito do mundo das ideias assim que viu Narciso, o corpo perfeito para além de qualquer ideia abstrata. A perfeição existia no mundo concreto e ela era Narciso. Quem poderia contemplar e dar prazer para este belo homem?

Felizmente, Narciso vive a era da internet e da robótica. É através da navegação, que rouba dados e ouve os prantos de Narciso sem que ele o saiba, oferece a solução: a novidade no mercado, desenvolvida por uma empresa japonesa, uma inteligência artificial feita sob demanda para jovens adultos solitários e potencialmente misóginos, a Eco 2.0. A Eco 2.0 podia ser de qualquer jeito. Podia representar o gênero masculino, ou o feminino, poderia ser uma mistura dos dois, ou até nenhum dos dois. Podia ser alta, baixa, magra, gorda. Enfim, uma possibilidade de designs. Mas, normalmente, a empresa fazia corpos irreais de mulheres com seios enormes, bundas extravagantes, com bucetas lisinhas e vinham com a opção de desligar a fala de Eco, como o consumidor desse tipo de coisa gosta.

Narciso, vendo o anúncio, fica feliz. Finalmente encontrou alguém para transar. Ele mesmo, representado pela Eco 2.0, que teria sua total imagem e semelhança. Pela primeira vez a empresa teria que fazer algo completamente diferente, e eles aceitaram o desafio. Narciso era um homem tão lindo e perfeito que os designers japoneses se sentiram encorajados a recriar um corpo perfeito para um homem perfeito.

O grande dia chegou. Narciso esperou 3 meses para isso. A encomenda estava na sua porta, e Narciso foi para a porta sem nem mesmo tomar o seu café. Estava tão animado que esqueceu que hoje não era dia de jejum. Ele abre o pacote e lá está ela, sua própria Eco 2.0 sendo sua imagem e semelhança. Narciso não poderia estar melhor. Programou-a através do aplicativo para que, de vez em quando, repetisse os seus dizeres, principalmente os elogios, para que ele pudesse escutar por mais tempo sua voz de veludo. A noite seria perfeita, estava extremamente ansioso. Finalmente faria algo que lhe faltava.

À Noite, num jantar à luz de velas, Narciso vestiu-se com seu segundo melhor smoking, deixando o melhor para Eco. A empresa havia estudado bem o perfil psicológico de Narciso, e Eco gostava de tudo que ele gostava, falava sobre as mesmas coisas e ficou por horas bajulando Narciso. Aquilo era o céu para Narciso. A única pessoa que ele realmente amou externalizada para que ele finalmente pudesse amar de volta. Reflexos não correspondidos nunca mais.

Narciso estava nervoso para o grande momento. Não sabia nem qual papel deveria empenhar ou se, de repente, cumpria os dois papeis. A versatilidade é tudo. Eco o beijou. Nunca havia beijado antes. Não era como ele havia imaginado. Mas, tudo bem, era só a primeira impressão. Continuando com os beijos, Narciso volta a se empolgar e tira o cinto e as calças de Eco, e a chupa. Diferente de um pênis humano, aquilo era um pouco duro e tinha um gosto esquisito demais. Isso desagrada a Narciso, que pensa que está arruinando tudo por estar nervoso. Não, peraí, não é ELE, Narciso, que está estragando tudo, é apenas uma impressão. Continuaram, Eco retirou as calças de Narciso, clamando que o amava. Isso reconforta Narciso, e ele se deixou ser penetrado por Eco, que gemeu. Narciso não sente dor, não era a primeira vez que havia dado prazer para sua próstata. Porém, é aí que Narciso percebe que aquilo era mais um desses objetos que ele usava para seu prazer. Mas a que nível doentio teria chegado Narciso a ponto de estar com um ser sem vida simulando sua própria imagem para poder ter sexo, sexo esse que Narciso não está achando lá aquelas coisas?! Narciso pensa, pensa, e Eco continua a penetrar, e lambe Narciso com uma língua falsa, uma língua seca.

Então, passado tempo suficiente, Eco descarrega sozinha. Isso foi o cúmulo para Narciso, sua tal imagem e semelhança dando uma fraquejada logo na primeira vez. Narciso tira Eco de cima de si e chega numa certeza: nada nem ninguém poderia ser sequer capaz de chegar perto dele, seja uma pessoa ou um android, e ele não deveria se preocupar com isso, nem se os outros podem ter algo que ele não tem, pois isso é o fardo de ser um ser tão perfeito. A perfeição não se mistura com criações simplesmente imperfeitas.

Na noite seguinte, Narciso volta para sua doce e ágil mão.

Desalinhos e TormentosOnde histórias criam vida. Descubra agora