Descarrilho

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Ah, que dia! Um belo dia para caminhar, sentir o sol tocar a pele, e dar aquela crocância boa de um bronzeado sem protetor solar. Benício sai para caminhar quase todo dia. Aposentado já há alguns anos, mantém o hábito de acordar cedo, ir na padaria e pegar a primeira fornada de pães, cumprimentar o seu Carlos e, depois, ir no jornaleiro pegar a boa do dia. O velho hábito de ler jornal impresso. Só Benício mesmo. O senhor volta para casa, deixa os pães e vai para seu lugar de leitura, que são nos trilhos de uma estação de trem que nunca chegou a ser finalizada. Benício era maquinista de trem.

Pode-se pensar "pra que precisa de alguém para um conduzir trem? Só vai pra frente ou pra trás". Mas, em algum momento, esse emprego foi necessário. Agora não mais. Tudo está ficando automatizado. Benício tinha dado sorte, se aposentou antes de perder o emprego para a máquina. Seus colegas não tiveram a mesma sorte, e sabe-se lá o que fazem hoje além de entrarem em greve. Benício sempre fora apaixonado por trens, por trilhos e estações. Vinha de uma época em que isso era uma promessa, o futuro chegando. Benício, quando criança (sim, alguém com o nome de Benício já foi criança um dia) via tudo isso com muito bom humor, e queria um dia ser o condutor do futuro da nação. Infelizmente, o futuro mal começou e acabou naquela mesma cidade, com poucas estações e pouca relevância. Já tiraram de Benício o papel de grande importância.

Agora, imagine o tamanho da frustração de Benício. Tinha um potencial muito promissor, fracassou e fora esquecido, substituído. No passado, desenrolaram-se outras coisas que interessavam mais a outros setores desse grande Brasil. Tudo bem, é o jogo dos negócios, ganha quem tem mais poder e influência. Mas agora, agora querem eliminar a classe de Benício, querem inutilizar seus irmãos para o resto da vida, vão se desfazer dos maquinistas. Assim como os filhos de Benício o fizeram, assim como os amigos, e assim como aquela pinga, que a empresa mudou a receita, e que não tem mais o mesmo sabor.

Benício chega na antiga estação e senta no seu banquinho, que fica perto das paredes já todas grafitadas. Hoje seria um dia particular, em que sairia a notícia sobre como andava a greve dos maquinistas de trem, que eram contra a automatização de seus trabalhos, que estava acontecendo pouco a pouco na cidade. Benício abre seu jornal e lê o pronunciamento do governador: "Na história desse estado, nunca, em nenhuma situação, prometemos trens e nunca prometemos empregos nas estações. Nós seguimos a lógica do mercado, e no mercado não há espaço para maquinistas de trem. Que coisa de maluco. Trens sempre andaram sozinhos. Procurem outra coisa como emprego e parem de pedir esmola por uma coisa que nunca existiu". Benício chora, ele não consegue entender. Ele viveu, tem dentro dele todas as memórias de anos de trabalho duro, e negam que ele tenha vivido tais histórias. Reinventam o passado para fazer do debate uma luta por narrativas ocultas e obscuras. No processo, a história de Benício é apagada, e então matam Benício. Ou melhor, Benício na verdade não morreu, pois nunca sequer existiu.

Desalinhos e TormentosOnde histórias criam vida. Descubra agora