Destinada

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O sonho era maravilhoso.

Eu corria pela floresta, o vento frio soprava pela pelagem densa e branca do meu corpo selvagem, a terra tremia por onde eu pisava, assim como a água cantava enquanto se derramava.

E há o som deles, correndo em desespero, alertas a um perigo persistente e natural. É apenas mais um ciclo, apenas mais uma vez, a natureza cumprindo seu objetivo.

No sonho eu sou loba e como uma mãe carinhosa a floresta me acolhe assim que começo a correr, a música silenciosa do sacrifício cantando e retumbando por meu sangue, os cervos correndo, impulsionados pelo pânico conjunto, em sua própria dança de vida ou morte.

Então ele emerge, uma forma negra como a sombra de um carvalho antigo, seus olhos como o sol me queimam profundamente, o significado do seu olhar é simples como o respirar, ele apenas aponta para a presa.Meu instinto queima diante da sua ordem, meu sangue canta com a ação automática do meu corpo, e nós lutamos, lado a lado, por vida, por morte, por restituição.

Simples assim, a morte deixa de ter o significado de antes, não temo mais, agora eu faço parte dela, do seu propósito maior, pegar e depois devolver.

Dessa vez, não sou eu quem mata, eu apenas faço a armadilha para o cervo indicado, é Sam quem o mata, cravando seus dentes no pescoço do animal, imobilizando ele sobre o solo até que pare de se debater, a vida escorrendo dos seus olhos assim como a água escorre pelo riacho. Quando se afasta, ele faz um sinal de oferenda, como se estivesse demonstrando mais uma vez, que a partir daquele momento, eu estava percorrendo um caminho muito curto e cuidadoso que significava coisas infinitas, mas principalmente a aceitação que eu almejava com tanto ardor.

Eu me alimento e faço sinal para que se junte a mim.

Assim que terminamos, esperamos pelo sinal da floresta, assim que devolvemos os restos mortais do animal a terra, o retumbar vem, o deleite do sangue derramado com permissão nos mostra o caminho de volta para casa.

Aceita

Meus olhos se abrem sonolentos, o sonho se dispersando numa letargia vagarosa, meu corpo se estica preguiçosamente, os músculos se soltando e expandindo por baixo da pele, há esse frescor no ar, o frio se mantém persistente lá fora, serpenteando em toda a extensão da janela, procurando uma forma de se apresentar no ambiente. O cheiro de terra entra por meu nariz e meus olhos procuram ao redor pela fonte, olho cautelosa para as minhas mãos, e meu corpo esfria instantaneamente, aguçando minha visão, me deixando rapidamente ver as pequenas partículas de terra e musgo por baixo das minhas unhas, suspiro aliviada quando o frio vai embora e dá lugar ao calor, normal e constante.

Não foi um sonho, foi real...

Suspiro suavemente e encaro o teto sentindo os cantos da minha boca se inclinarem tímidos para cima, não tinha sido uma comemoração de todo, era mais como um gesto de acordo, uma promessa de paz incitada por meu mentor lobo.

Meu sorriso se liberta acanhado, a sensação é estranha e libertadora, estar feliz era uma coisa com a qual precisava me familiarizar, as lembranças do dia anterior são agridoces, processar elas deveria ser a coisa mais lenta a se fazer, era bom prolongar todas as expectativas, ainda posso sentir minhas presas afundarem na carne macia, ou o sangue manchando minha boca, o pelo úmido da chuva, meu estômago quente de satisfação.

É bom demais.

A parte mais detestável, no entanto, tinha sido logo após nos alimentarmos, quando voltamos correndo mais uma vez, e logo em seguida na clareira quando Sam fez o sinal de que ia se afastar, se escondendo atrás das árvores, quando ele voltou do arbusto não era mais lobo, era homem, e estava vestido em um short jeans que provavelmente foi uma calça um dia.

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