Capítulo 29 - Manto e Meias

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Julie organiza sua roupa horas antes. Lembrou que teria de comprar mais dois pares de meia-calça, porque Jimmy havia pegado e rasgado sem pena as que ela costumava usar nos shows.

Arrumando-se para sair, Daniel bate na porta.

- Finalmente aprendeu a bater na porta antes de entrar.

- O que eu posso dizer? Demoro pra me acostumar com esses detalhes – O cacheado passo a passo vai andando até ela. – Essa música, ainda não tinha ouvido.

- Martim que me mostrou a banda. Se chama Ghost of The Robot.

- Que gracinha – Brinca

- Bem-humorado, no caso de vocês.

- Eu vou ter que sair pra comprar meia-calça.

- Quer que eu te acompanhe?

- Eu ia te pedir o oposto. Fica de olho no Pedrinho pra mim? Sabe lá onde o Martim e Félix se meteram.

- Certo. Te vejo depois. – Ela lhe dá um beijinho na bochecha.

...

Julie

As lojas estão prestes a fechar, claro, feriado. Para minha sorte, a minha favorita ainda está aberta. Passo pelas vendedoras, cumprimento-as. Ignoro os corredores dos quais não estou interessada. Ah, lá estão, minhas meias, depois de pagar, óbvio. Escolho as cores.

Há alguém próximo, uma garota de cabelos loiros. Nossa, ela parece absorta. Acho que está há dois minutos olhando a mesma blusa. Não acredito, é a Thalita! Está um pouco mais simples vestida. Não só a roupa, o jeito. Não profere nem um: "essa loja está mal frequentada". Nenhuma de nós é a mesma.

Shizuko havia contado para mim e Bia que Thalita parecia mais irritada do que nunca, e sabia do porquê, uma das garotas que andava com ela descobriu ser a tia favorita, que fazia todas suas vontades, está terrivelmente doente. Não se sabe do que, afinal, ela continua tentando manter a pose mais serena possível, mesmo nesse momento.

O ambiente da loja continua preenchido por músicas da atualidade em um volume considerado tolerável, como comumente acontece. Sou tirada do meu pensamento pela aproximação de alguém, não lembro dessa atendente, talvez seja uma nova. Sobrou apenas eu e Thalita na loja. O que é estranho, poderia jurar que havia mais duas pessoas além das três atendentes.

As luzes acima da nossa cabeça piscam. Eu espero ser problema elétrico, mas tenho quase certeza que não é. As portas são fechadas, de súbito e raivosamente. Thalita olha espantada para mim. Não sei dizer se por me notar ou pelo momento. Pode ser os dois, sem problemas.

- Precisam de ajuda? – É o que a mulher diz. Eu não creio que essa alteração grotesca tenha a ver com fumar, e os olhos totalmente vidrados. As órbitas!

- O QUE DIABOS? – Thalita entra em desespero. Sem me dar conta, a estou puxando para longe daquele ser, em direção a qualquer lugar que possa nos deixar protegidas.

No nosso caminho, cabides são jogados em nós. É ela quem os arremessa. Eu nem sei de onde tirei essa rapidez nas pernas, caramba. NÃO ACREDITO. Acabei de desviar de um grande manequim masculino, reflexos incríveis para alguém que não acertou quase uma semana de coreografias de dança.

- Meu deus, garota! Eu nem posso ficar no mesmo ambiente que você que minha sorte já muda.

- Cala a boca, Thalita! Continua correndo.

Em um minuto nos enfiamos nos provadores nos fundos da loja.

Ainda há barulho lá fora, são passos. É estranho ela não ter vindo nessa parte.

...

- Então, Pedrinho. Essa é sua nova invenção. – Com os braços cruzados, Daniel observa o garoto no seu minilaboratório.

- Cobertor invisível.

- Isso parece coisa daquele filme que você viu com o Martim e o Félix. Não seria plágio?

- Trata-se de uma inspiração.

- Sei. E como funcionaria? – Poderia ser o tédio, mas Daniel está mesmo ficando interessado.

- Bem, eu estou testando uma substância, que ao entrar em contato com o tecido, irá se transformá-lo, não refletindo as cores e tornando-o invisível.

- Parece bem ambicioso, mesmo para você.

- Eu quero saber como é ter essa vantagem de vocês.

- Nem tudo é um mar de rosas.

- Fácil falar quando você não tem que enfrentar algum idiota da escola.

- Ah, então esse é o problema. – Sensibilizado, Daniel pondera. Pediria para Félix e Martim acompanharem o garoto, só para garantir.

- É, mas eu dou um jeito.

- Hum. E se você acabar perdendo, como vai encontrar? – Aponta para o tecido em sua frente.

- Eu...ainda tô trabalhando nisso.

...

Julie

Eu deveria estar presa com a pessoa que mais me odeia?

- Ah, por favor, garota, você não é a pessoa que eu mais odeio, a fila é grande. – Thalita responde e eu me toco de que não pensei, falei aquilo em voz baixa. Ouço um barulho de teclas, ela está mexendo no celular, eu também tento. A música nos autofalantes nos dá cobertura.

- Que ótimo! Uma louca nos prende na loja e aqui não tem sinal!

- Vamos usar o que tivermos pra sair.

- Querida, aqui dentro só tem cabides.

- Vamos usar nosso peso contra ela. – Espero que ela tenha entendido. Esperamos que chegue perto e contamos até três. Nós nos jogamos na vendedora, bom que ela vai ficar com as dores do impacto. Com algumas roupas, nós a amarramos. Antes de sairmos, eu pego as meias que havia escolhido e deixo dinheiro no caixa. Em seguida, com certa dificuldade abrimos as portas. Na frente, sem ninguém por perto nos cumprimentamos, em silêncio. E quando estou me virando, ela diz.

- Você é muito esquisita, Julie.

- Não tanto quanto você. – Ela não parece nenhum pouco irritada ou incomodada comigo, o que é novidade. Eu não preciso ligar pra polícia, ela já vai fazer isso. Tenho certeza que o que foi feito não é humano.

...

Daniel já está com pena de Pedrinho. É o terceiro líquido da invisibilidade que não funcionava. Vendo a decepção do garoto, ele tenta algo. Quando o pequeno cientista não nota, toca no manto, e aos poucos ele fica translúcido, até finalmente sumir.

- Demais!

- Você foi fantástico, Pedrinho! – A empolgação que estava no ar é interrompida, com o baque da porta. Julie chama pelo fantasma.

- Você... – ela inicia e para ao perceber o irmão. Leva o fantasma para a edícula.

- Aconteceu alguma coisa? A vendedora jogou as meias em você? – O cacheado brinca para quebrar o gelo.

- Acertou em cheio.

- Ela... – A expressão do guitarrista era incredulidade.

- Na verdade foram uns cabides e um manequim. – Balançou a cabeça tentando se concentrar – A questão é, tem alguma coisa que vocês não estão me contando. Essas coisas habilidades novas, como estão fazendo isso? Qual o objetivo? Já tem bastante coisa estranha acontecendo. Eu preciso saber o que é.

Daniel colocou a mão na nuca, suspirou, sabia que era o momento de contar.

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