Capítulo 17

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A garganta estava apertada, ainda. Mas não com o gosto de sangue.

Meu peito doía com cada soluço, e alguém estava atrás de mim, os braços apertados sobre meus ombros em um abraço. Não sentia mais nada concreto além daquilo... e de alguma forma soube que era Liliane, apesar de nem conseguir me concentrar o bastante na voz baixa em meu ouvido.

Sophia. Do que pude reclamar em Gerundium? Ela sim estava entre pessoas que queriam sua ruína.

- Aysha, inspira – finalmente entendi algo do que Liliane dizia. Ela contou num ritmo estranho, depois me mandou expirar de novo. Repetidas vezes, até que eu conseguisse pensar de forma ordenada, até que eu não sentisse a cada segundo que estava perto de morrer.

Abri os olhos, finalmente. Ainda chovia lá fora, mas a luz fraca do alvorecer me permitiu ver Isis com o olhar preocupado. Por uns instantes, ninguém falou nada. E nem consegui pensar em nada para falar. Eu já havia matado antes... sentido o gosto de sangue, saído de batalhas com o cabelo encharcado e pingando de sangue. Mas nada se comparou ao terror de sentir a mandíbula de uma pessoa entre meus dentes, cada osso se partindo como bolachas sob meu aperto. Respirei fundo de novo, e de novo. Achei que me perguntariam o que aconteceu, afinal quase sonho algum é apenas uma besteira por aqui. Sempre há um significado, lembro-me de minha mãe falando claramente disso. O meu foi uma visão, possivelmente de agora mesmo em Agripia.

Isis pareceu se cansar de ficar sentada, e também se deitou do meu lado. Não demorou a cochilar. Senti Liliane estabilizar a respiração e cair em sono profundo. Inspirei o cheiro delas até adormecer novamente, relaxada e profundamente até amanhecer efetivamente.

Liliane foi a primeira a levantar, e já que dormiu meio que me abraçando, acabei por despertar na mesma hora. Isis foi a terceira, mas não demorou muito. À medida que elas foram juntando as coisas delas, contei para elas o que aconteceu, como se fosse nada, torcendo para que elas não me olhassem diretamente enquanto eu narrasse. Mas obviamente elas deram toda a devida importância...

- Não é a primeira vez – Isis disse, baixo. Mas pareceu dar-se conta de que não tinha nos dito a informação completa, e foi acrescentando: - O próprio rei tentou, na primeira vez que Sophia apareceu com as roupas da mãe. Como somos vizinhos, não demorou que chegasse até Rapsia que o rei tinha tentado matar a filha com as próprias mãos. As coisas em Agripia são bem diferentes – ela comentou, vasculhando as gavetas e armários do quarto com Liliane. – É literalmente o lugar com o conjunto de leis mais extenso, e também um dos últimos a seguir as próprias normas.

- Sim – Liliane concordou com ênfase. – Sabia que quando um homem desonra uma mulher, gera filhos e não casa com ela, por lei ele tem que ser enforcado e a mulher recebe assistência da Coroa?

Isis riu, e quando saímos do quarto, o assunto morreu. Encontramos com os meninos, que aparentaram ter uma boa noite de sono. Não demoramos a retornar ao nosso trajeto, de volta à floresta densa. O café da manhã foi rápido e silencioso. O ar ainda estava úmido, e o cheiro de terra molhada davam à manhã todos os requisitos possíveis para ser perfeita para se estar na cama. Ou simplesmente em casa. Mas que casa, Aysha?, me perguntei. Fingi para mim mesma que balançar a cabeça era o suficiente para afastar a dúvida, e continuamos a caminhar. Dentro de dois dias, provavelmente conseguiríamos já ter saído do território gestarense e entrado em Artasoyo. Essa era a média, mas não o ideal. Não com o Solstício se aproximando. Se conseguir ficar viva, talvez possa aproveitar a tãoestimada virada de ano de Artasoyo, que o grupo mencionou ser tão linda. Isso se não houver tempo para voltar a Gerundium, e aproveitar com meus pais. Um nó apertou novamente no meu peito.

- Ei – Kahvon me puxou pelo cotovelo. Estava distraída demais e não percebi que o grupo tinha parado, e segui caminhando alguns metros sozinha. Em outras circunstâncias, essa distração poderia ter custado minha vida. Pisquei e respirei fundo, me preparando para dar meia volta. – Não dormiu bem?

Concordei com a cabeça, coçando os olhos, apesar de ser mentira. Não tinha energia para explicar isso para mais alguém. Não agora.

- Combinamos de nos dividir, para procurar almoço – Isis quem informou. Resisti ao impulso de olhar para o relógio. Já passou tanto tempo assim?

- Tudo bem – disse.

Kahvon e Isis foram para um lado, e eu, Jordan e Lili para outro. Depois, nos dividimos ainda mais na floresta, nos misturando aos sons da natureza para encontrar alimento para eles. Respirei fundo uma única vez antes de pegar a Lâmina. A chuva recomeçou a cair, e uns fracos trovões soavam longe. Tentei entrar em contato com minha parte élfica, me conectar com a floresta como Isis falou, mas não consegui. Talvez caçar não seja exatamente o que a floresta mais goste de ver e contribuir. E nem eu, mas tem 4 pessoas com fome viajando comigo.

Toda a água em que eu me ensopei, da chuva, irremediavelmente me lembra do mar de sangue da visão, na noite anterior. Se durante a viagem, termos que passar por Agripia, e eu ter que entrar em contato com Sophia, não sei de conseguiria fingir que não vi nada. Mas uma parte de mim queria isso: vê-la pessoalmente, oferecer ajuda – se quisesse, obviamente.

Meus sentidos se aguçaram quando me senti ser observada. Olhei em volta, mas nada. Ninguém. Só o barulho da chuva fraca e dos trovões distantes. E se eu tiver me afastado demais do grupo? Minha cabeça hoje não está funcionando tão bem.

Encontrei o par de olhos. O esquilo se sentara na grama para me observar. Quantos sermões minha mãe já teria me dado ao longo desse dia, se estivesse aqui? Antes que eu fizesse menção de me mover, o pequeno animal começou a se aproximar de mim. Deixei que chegasse mais perto, para que eu atacasse depois. Ele não parecia ter a intenção de me atacar.

Seus olhos brilhavam do que pareceu ser curiosidade à medida que chegava mais perto, caminhando pela grama encharcada.

Mas o brilho assumiu outra tonalidade. Seus olhos começaram a brilhar em azul. Um azul extremamente claro, de um segundo para o outro. Está enfeitiçado?

Me agachei, guardando a Lâmina, e aproximei a mão devagar para pegá-lo...

A flecha atravessou sua cabeça a alguns centímetros de meus olhos e mãos. Sufoquei o grito de susto e levantei as mãos, pronta para me defender com magia, mas Liliane apareceu, com o arco em uma das mãos.

- Não ia matá-lo? – ela perguntou, quase estranhando. – Desculpa pelo susto. Viemos ver se estava bem, se afastou demais do combinado.

Só consegui murmurar um pedido de desculpas e pegar o animal ensanguentado.

- Então vamos? – ela me estendeu a mão, que agarrei com a minha mão sem sangue. Seus olhos se demoraram em mim, solidários, mas me senti nua conforme ela lia no meu rosto o que eu estava sentindo. Confio nela o bastante para crer que só está lendo minhas expressões. – Agripia é assim desde o princípio. Piorou, com o rei atual, mas é a essência de lá. Já pensamos em trazê-la para Gerundium, mas o pai negou. É extremamente doloroso, mas ela não tem saída, Ays. Fugir é complicado, se refugiar mais ainda.

- O pai dela não vai recuar – era para ser uma pergunta, mas saiu como uma afirmação. Da mesma forma, Liliane assentiu. Apertei os lábios, e balancei a cabeça. – Mas...

- Estou interrompendo alguma coisa? – Isis perguntou com um sorriso malicioso. Liliane largou minha mão em milésimos de segundo. – Acho que tivemos mais sorte. - Isis sacudiu o corpo de um ganso selvagem sem a cabeça. – Os meninos estão armando a fogueira.

Depois deu as costas, andando sem fazer menção de nos convidar. Liliane parecia tão constrangida quanto eu e nem olhou para mim antes de ir atrás da rapsiana.

Entre Sereias - O Portal Submundano [Livro II]Onde histórias criam vida. Descubra agora