Capítulo 1

16 4 0
                                    

O suor, minhas roupas grudando... e a sede me fizeram levantar mais cedo. O sol nasceria daqui a vinte ou trinta minutos, ao que parece, pois apesar de apertar os olhos, não consegui ver os números no relógio, não com as asas de Kane bloqueando a luz. Levantei devagar para não acordar ninguém e levei uma muda de roupas e um arco e flechas

A caminhada até a cachoeira sempre me lembra um dia específico, e por mais assustada que eu estivesse, daria tudo para refazer aquela trilha, com os saltos pendurados entre os dedos, o vestido tubinho preto me impedindo de correr, a maquiagem borrada da chuva, as mãos cortadas por conta do vidro.

O céu estava começando a ficar arroxeado quando finalmente cheguei até a cachoeira, me despi e tirei as poucas tranças do cabelo... no início da manhã me haveria outra oportunidade de fazê-las novamente: na reunião, quando fica chato o bastante. Mas ainda assim prefiro uma posição sem nome, às vezes com e às vezes sem importância, do que uma coroa. Mergulho no rio e deixo tudo ao meu redor ser só azul escuro. Uns cardumes desviam o caminho, dão meia volta, ou prosseguem normalmente quando me veem. Hoje não seria o dia de azar deles... hoje é dia de cervo. Me permiti afundar e não demorou até que sentisse as pedras, a areia, o limo, e os vários traços de ouro que nunca permaneceriam assim intocados no outro mundo. Puxei uma corrente para me levar até a superfície quando meu fôlego já estava se esvaindo. Dei de cara com o céu laranja e o sol a nascer... já era hora de começar meu dia. Pus o que devia ser uma camisa primeiro, mas já me acostumei, devido ao calor que aqui sempre faz. E não é como se importasse o que eu visto por aqui... na verdade não há ninguém para ligar além de mim, mas apesar disso, minhas partes íntimas ainda me são uma questão. Além do mais, penso olhando para aquela mesma rocha que "aterrissamos" há dois anos e pouco, ainda tenho uma esperança dela reaparecer e me tirar daqui... uma sociedade para eu me reacostumar. Minha barriga e meus ombros fica à mostra enquanto o tecido branco se cruza na frente e atrás. Isso e essa saia nada simétrica foi o que me foi trazido – na verdade só apareceu – junto com pouquíssimas mudas de roupa, dois coldres que já perdi há muito tempo - um eu já perdi faz tempo -, armas de emergência e o relógio de meu pai que funciona com a luz do sol. Nunca usei os sapatos, mas ainda estão guardados. Peguei o arco e atravessei-o no meu tronco, pendurando-o junto com a aljava e comecei a subir na primeira árvore.

Os bichos ainda não se acostumaram comigo caçando. Os dragões não caçam desse lado denso da floresta, onde as árvores crescem tão juntas e são tão altas, e suas copas e os arbustos no chão são tão densos, que seria impossível eles se deslocarem para caçar tão sutilmente. Essencialmente quando eles (nós) fazem de tudo para isso aqui não se transformar no mundo dos Humanos, fazendo das árvores inestimáveis. A madeira estava seca sob meu pés, num grosso galho a quase cinco metros do chão. O primeiro cervo apareceu, o pelo chocolate brilhando nos primeiros raios de sol da manhã e os chifres já ameaçando cair, para que outros crescessem no lugar até a próxima estação... mas não viria a acontecer.

A flecha passou pela sua testa, seus gritos assustando os pássaros nas copas até que seu corpo caísse. Agitei a mão na sua direção mentalizando a praça principal e o corpo sumiu. Sobrara apenas a flecha ensanguentada. Aquele provavelmente serviria para alimentar o filhote de Kane. Uma cerva apareceu, mas pelo tamanho da barriga, julguei estar prenha. Não encostaria nela, mas sim na outra fêmea que surgiu ao seu lado. A cautela no seu andar... sabe que tem algo errado, e procura pelo macho. Se aproxima devagar de onde está a flecha, e assim que a encontra e sente seu cheiro, o olhar se guia para mim, que já estava com outra posicionada. Mas não acertei. A primeira vez em muito tempo que acontece. As cervas saem correndo, e me jogo da árvore. Sinto cada centímetro de terra debaixo das minhas unhas quando aterrisso agachada e corro a toda velocidade... outros mais dez eram necessários. O Conselho é o primeiro a se levantar, e o café da manhã geralmente só é lhe servido, e não caçado por eles. Apesar de achar idiotice, sabendo que o resto do povo caça para suas próprias famílias, para seus clãs, seus filhos... não é um tarefa difícil para eles, que nasceram com garras, alguns com dentes maiores que a lâmina da minha espada. Não o faço por eles, nem por mesura, nem porque já se acostumaram, e sim porque o meu espirito já havia se acostumado com isso e como favor. A cerva caiu como eu caí na simulação que meus pais faziam. Me vi quase chegando na linha e a flecha de mentira que minha mãe acertara na minha perna, mas a cerva estava na vida real, e caiu urrando, sangrando. O treinamento pode não ter sido para eu acabar aqui matando animais, o esforço de meus pais era para que eu não fosse caçada, e sim caçasse.

Entre Sereias - O Portal Submundano [Livro II]Onde histórias criam vida. Descubra agora