Apesar de ter respirado fundo diversas vezes, a raiva não abrandava. Ah, como é ridículo. Mesmo que Karl tivesse percebido, ele obviamente não ligaria. Ou se divertiria junto. Engoli um gole de vinho e parei por uns segundos encarando o copo, respirando fundo para registrar minha impaciência. O guarda não se tocou.
Então ergui meus olhos, devolvendo o desdém e o julgamento, encarando-o de cima até embaixo como se fosse uma atração de circo. A julgar pela idade e pela minha falta de reconhecimento, ele não deve ter mais de dois meses servindo aqui. Pela reação dele também. Seu olhar se desviou para o chão, vermelho após emitir um desculpa, alteza sem som. Registrei uma nota mental para me livrar dele ainda essa semana. Me voltando para o jantar, me deparei com o olhar preocupado de minha mãe. Mesmo depois que gesticulei para que não se preocupasse, ela se demorou a seguir comendo.
Meu pai, na ponta da mesa, percebeu o desconforto repentino entre nós duas e rapidamente seus lábios se tensionaram numa linha fina e sua testa se franziu. Claro que sabia o que era.
- Algum problema? - ele perguntou. Claramente com a voz mais incomodada do que deveria. Talvez mais incomodado do que eu deveria estar.
- Não, meu pai - respondi torcendo para que meu notasse pelo menos um pouco da acidez em minha voz.
Meu comportamento era motivo se sua irritação frequentemente. O fato me deixava desapontada, no mínimo. Principalmente ao ver Karl, ao meu lado, sempre comendo - provavelmente bem pior - que nem um animal. Queria que esse fosse o pior traço dele. Os outros se mostravam tão podres quanto, cada um com um baú de podridões diferentes.
- Ótimo, queria fazer um anúncio a você, aos seus irmãos e aos demais presente. - Toda a vez que falava desse modo, minha vontade de estapeá-lo aumentava em dez vezes. Nem considera a presença de minha mãe. Os poucos Líderes presentes também pararam de comer, assim como meus irmãos, e prestaram atenção. - Filipe - evitei estremecer ao ouvir o nome. Odeio que me chame assim. Todos sabem que me incomoda, me irrita e me constrange. Ao longo dos anos, tive que aprender diariamente a controlar minhas reações, até que só não fizesse nada mais que um olhar indiferente. Mostrar a esse ninho de ratos o que me incomoda não vale à pena, nem faz com que se situem a ponto de pararem. - não fará mais parte do Conselho de Guerra, nem terá mais acesso às informações e arquivos das reuniões. As missões de espionagem também não estará mais ao alcance de seu conhecimento. Está expulso.
Apenas assenti e fiz de tudo para não me remexer na cadeira ou tirar um cacho solto do penteado dos olhos. Ninguém questionou. Não se pode questionar o soberano. Incrível como as outras Classes conseguem, na medida do possível, governar melhor que nós. Talvez o fato de não termos ganhado poderes ao nascer faça com que qualquer resquício de poder, mesmo que não seja mágico ou sobrenatural, nos deixe tão irredutíveis. Em Gerundium, essa mesma prepotência os levou a milênios de guerra.
Mas ainda assim, tentei decifrar o motivo da minha expulsão. Não seria falta de competência, traição ou vazamento de informações.
O Conselho, toda a Liderança e o próprio Conselho de Guerra é formado apenas por homens há muitos anos, antes mesmo de meu pai ou o pai dele ter nascido. Então será que finalmente me reconheceu? Claro que é uma regra desprezível, mas até que enfim ele me reconheceu.
Agora meu maior desafio é controlar o sorriso... ele só me chamou de Felipe para por conta da presença de todos. Poderei me juntar à minha mãe durante o dia, ter damas de companhia.
- Você não entendeu - Flavus quem me tirou das minhas fantasias. O herdeiro do trono estava sentado do lado esquerdo de meu pai, na mesma fileira que eu, depois de Karl e Eduard. Ronan, o caçula, estava depois de mim. - O rei deserdou você.
Não posso, de forma alguma, dizer que minha mãe não ficou mais surpresa que eu. Me aprumei e olhei para meus irmãos. Todos já sabiam.
- Posso saber quando tomaram essa decisão?
- Fará suas refeições no quarto, - meu pai ignorou minha pergunta, obviamente. Ditar as regras era mais a praia dele. - não virá às festas com convidados de fora e nem se apresentará como meu filho. Será um membro qualquer da corte, então deverá ser grato por não jogarmos você na rua.
Assenti, de novo. Não aguento mais.
Ronan sorria ao meu lado. Soltei o garfo e a faca por precaução e pedi licença para me retirar. Tentei lançar à minha mãe um olhar de que tudo ficaria bem, mas vê-la destruída acabou com minha postura, e realmente saí e fui direto para o quarto.
Meu pai já tentou me matar com as próprias mãos uma vez... o que o impediria de mandar alguém fazê-lo, agora que passarei a maior parte dos meus dias aqui? Ninguém investigará se eu morrer envenenada, se meu quarto incendiar enquanto durmo ou algo assim.
Uma carta surgiu à minha frente, flutuando ao redor de gotículas douradas e prata. Imagino quem seja o rementente. Mandaria que lhe enviassem a resposta diretamente, antes que a notícia sobre mim se espalhe pelo palácio. Minhas coisas com certeza começarão a ser monitoradas e controladas. Meu peito dançou um pouquinho, com uma esperança que eu não sabia explicar de onde ou como vinha.
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Entre Sereias - O Portal Submundano [Livro II]
FantasyAs crenças de Ayslanne e Arthur de que teriam uma vida de paz longe de Gerundium foram por água abaixo quando descobriram que teriam uma menina. Cientes dos perigos que o outro mundo estava enfrentando, das invasões e confrontos, da intenção de Leil...