Desespero me atravessou quando tentei mover meus braços e pernas, e simplesmente não consegui. Pareciam amarrados, mas não senti cordas, ou correntes...
Quando abri novamente meus olhos, ainda estava escuro. Mas não reconheci o lugar.
Com certeza não é a pousada em que dormi, e ninguém mais está aqui. É um corredor vazio, com dois guardas de cada lado, olhando ansiosamente para mim. Só notei que meu corpo na verdade não era meu corpo quando a ponta da língua bifurcada entrou em meu campo de visão. Não sou eu a controlar, nem eu quem escolhi me mexê-la.
A criatura em questão, no controle do corpo, rastejou pelo corredor. Ninguém impediu que transitasse, provavelmente por medo. Passando pelos guardas, só consegui notar uma chama em cada um de seus ombros, gravadas em preto.
No outro corredor, dois homens conversavam. Ambos tinham roupas sacerdotais e conversavam rapidamente e com aparente irritação.
- O rei vai tomar as próprias providências, não esqueça dessas palavras – o primeiro disse. A barba branca estava presa com fios de ouro. – É o filho com menos influência, mas ainda assim é um dos filhos do rei. Deve se comportar como tal...
- Ninguém o aceitaria para casamento no exterior. Pelos deuses, já pensou você casando sua filha com uma figura daquelas? – o segundo falou, fazendo graça. Eles caíram em uma risada maldosa. – O rei falou com você? – ele diminuiu o tom de voz, mas a minha aproximação silenciosa fez com que não interrompessem a conversa conforme ouvia o resto.
- Sim. Um mercenário do deserto está esperando pelo príncipe Philipe no quarto exatamente agora. Deve estar saindo do harém, e quando deitar... – aí ele parou, olhando para mim. O segundo homem da conversa também. – A serpente dele. Podemos arranjar um destino para ela depois de hoje.
- Minha mãe faria uma poqueca excelente, se quiser uma ideia.
Então é uma serpente... pertencente à Sophia. Se o animal compreendeu, eu jamais saberia dizer. Mas continuou a rastejar tranquilamente pelo corredor até que eles sumissem de vista, depois abandonou a graciosidade e praticamente voou pelos corredores. Subiu escadas, sibilou para quem fazia menção de contê-la... até que chegamos numa torre. Uma mulher subia na nossa frente, na escada que parecia ser a última. Ela passou para o lado da mulher, e um sorriso radiante tomou sua face.
- Jade – cumprimentou. – Aonde estava, ouro meu? Te procurei por todos os lugares.
A serpente pareceu corresponder ao carinho. A dona fez menção de pegá-la, mas Jade continuou a rastejar na frente, parando na frente de uma porta. A mulher achou engraçado, mas só eu podia sentir o quanto a ira de Jade crescia, e tinha medo. Ela parou, por um instante, olhando para o bichinho de estimação. Seu sorriso sumiu.
- Tem alguma coisa errada, não tem? – ela sussurrou, engolindo em seco. Depois destrancou a porta, mas ficou para trás. Jade entrou em disparada no cômodo, passando debaixo da cômoda, da cama, atrás de uma estande de livros. O animal fervia com a sede de sangue. Até que, de trás da própria estante viu o homem. Metade do seu rosto estava coberto por um lenço vermelho, e aproveitava a sombra de uma pilastra para se esconder. Não parecia prestes a atacar, mas a mão estava em um adaga na cintura, pronto para quase qualquer coisa...
Ele não tinha visto Jade. A serpente disparou de trás do móvel, e quando me dei conta, já tinha desferido quatro botes seguidos. Sangue espirrava nos olhos da serpente, na boca, nas narinas. O mercenário não teve tempo de gritar antes que sua garganta também fosse um alvo. Ela também se enrolou nele rapidamente... senti cada um de seus ossos quebrando conforme eram espremidos. Tive vontade de gritar e chorar, mas nada consegui. Só queria acordar. Acordar. Acordar. O único grito audível era o de Sophia, ainda na porta do quarto. Ela sim estava em lágrimas.
Quando um grupo de guardas apareceu, Jade saiu de perto do mercenário. Já morto. Que Sophia estava em choque, era inegável. Mas o olhar de gratidão que lançou à serpente não me passou despercebido.
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Entre Sereias - O Portal Submundano [Livro II]
FantasíaAs crenças de Ayslanne e Arthur de que teriam uma vida de paz longe de Gerundium foram por água abaixo quando descobriram que teriam uma menina. Cientes dos perigos que o outro mundo estava enfrentando, das invasões e confrontos, da intenção de Leil...