[1] Um Fim de Mundo Qualquer

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Costumava ser um povo colérico, formado por habitantes de uma realidade sanguínea que fazia arder os olhos

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Costumava ser um povo colérico, formado por habitantes de uma realidade sanguínea que fazia arder os olhos. Perceba: falo no pretérito porque era assim que viviam, já não vivem mais. Ainda era cedo quando a notícia, que fingia ser fleumática, chegou até eles e ameaçou tingir aquele pequeno mundo com os melancólicos legados da humanidade.

Evocavam os seus próprios deuses e os seus próprios mortos em desespero. Não haviam feito nada daquilo. Não mereciam nada daquilo. Mas pagariam por tudo aquilo. Naquele dia, a previsão do tempo anunciou o fim daquele microverso. Injusto? Certamente. Irremediável? Àquela altura, sim.

Silenciosa e criminosa, a humanidade sabia bem o que se passava com aqueles sujeitos e só conseguia lamentar pela perda, declarando uma dor desatinada que não chegava nem perto de doer de verdade. Poesia? Não, apenas apenas indiferença. Quando aquele lapso teve fim, valeu a pena avisar ao jornal como era triste toda aquela perda. Definitivamente, caía muitíssimo bem aos olhos de quem quer que passasse olhando por ali. Sempre dizem que mentira tem perna curta e, para toda aquela gente que sobrou para chorar "crocodilianamente" pela catástrofe, não poderia existir notícia mais agradável que essa. Para eles, anular a verdade que lhes vilaniza é fácil, carregar inverdades junto ao peito torna tudo ainda mais simples. Exclamam, então:

— Um brinde aos diminutos membros inferiores dessa fabulação coletiva que esconde tão bem nossos erros! 

Diante desse universo em que muitos pagam pelo erro de poucos, pergunto-me se o destino acha mesmo que a ironia é algo tão legal. Parece apenas injusto, infundado, inexequível. Por que um apocalipse exclusivo para eles? Não eram piores, não eram melhores, não eram relevantes. Eram pequenos e eram azarados. Tantos lugares propícios ao desastre e foi justamente sobre eles que pairou a destruição pela qual não tinham qualquer culpa.

Afastada de todo esse caos que busca disfarçar evidências e esconder culpados, naquele dia, a ruína anunciada daquele lugarejo determinou o fim para tantas e tantos inocentes. Claro, não apenas para eles. Afinal, pessoas culpadas estão sempre à espreita do bem e foi nessa peleja dual que tudo aconteceu. Alguns tiveram sorte; outros, não. As sequelas foram distintas, mas passaram a assombrar a humanidade secretamente desde então. 

Aquela manhã havia começado sonolenta, com o maior dos astros escondido pela preguiçosa névoa que não cedia espaço para qualquer brilho, mesmo que afável. Calejados pela própria rotina, os componentes de uma família qualquer acordavam cedo para que pudessem assistir às próprias vidas acontecerem vagarosamente. Como poderia ser diferente? Moravam em uma casa qualquer, localizada em uma esquina qualquer, contemplados por uma vida qualquer. Mesmo que morna, porém, contentavam-se em aceitar aquela vidinha besta. Alguns deles até deliravam ao pensar sobre uma outra existência que não fosse tão ordinária mas, apesar disso, não desejavam um fim tão crepitante para tudo aquilo que conheciam. 

Reunidos à mesa para dar início ao novo dia, quase todos pensavam sobre o próprio umbigo e todas as coisas que o orbitavam. A exceção era o pai que, como outro qualquer, distraia-se com as boas e as más novas. Algum milionário tornou-se ainda mais milionário. Mais uma espécie entrou para as estatísticas e para os livros de História. A Terra continua à beira de um colapso nervoso. Nenhuma novidade foi ouvida até que o grande aviso foi dado, mudando rotas e destinos. Por um breve instante, todos pararam para ouvir a voz do prefeito comunicar a derrocada que se aproximava deles e que iria encerrar aquele dia cansado e cansativo com chave de ouro. 

O prefeito pediu calma e serenidade, avisou que aquele era mesmo o fim e assegurou que nada poderia ser feito para barrar o inevitável. Depois do recado solene, disseram tê-lo visto arrumando as bagagens em um carro e partindo em retirada, jamais morreria feito um indigente qualquer ali. Os sujeitos que pagavam o salário dele, por outro lado, sequer tiveram escolhas. Acataram com desagrado aquele futuro imposto sem que merecessem tamanho castigo e pagaram com juros as dívidas que homens usurpadores, preenchidos pela humanidade que tanto lhes causa orgulho, adquiriram perante o macroverso que habitam. 

Ao ouvir as notícias de sua própria desgraça, a família miserável nada fez. Não havia ali nenhuma novidade para aquelas pessoas, sempre foram capachos de outrem para que não morressem de fome. Enxergaram, naquela partida, uma forma de fugir da realidade que os matava lentamente. As crianças não questionaram, os pais não se indignaram, as mães não se assombraram. Todas aquelas linhagens quaisquer apenas aceitaram o fardo e terminaram de viver conforme fariam em um outro dia de menos estarrecimento. Sabiam o quanto eram insignificantes para o restante do mundo; reconheciam que não adiantaria clamar por justiça; entendiam que torcer pela clemência de terceiros era perda de tempo.

Esgotada, a mãe — talvez uma Maria, uma Mafalda, uma Madalena — assumiu a posição encarcerada de todos os dias. Mecanicamente, varreu a casa. Habilmente, cozinhou aquilo que nunca seria deglutido. Pontualmente, recolheu do varal as roupas cloradas que secavam. Acima de sua cabeça, o céu ameaçava despencar a qualquer instante. 

Sem pesar e sem pensar. Os dias da mulher costumavam ser sempre assim. Como um robô cheio de engrenagens descompensadas, ela vivia um constante piloto automático. Não tinha estudo, não tinha vontade e não tinha apoio. Estava à margem e não se preocupava com isso, afinal, todos por ali também estavam com ela. 

Impotente, o pai — talvez um José, um João, um Jairo — dirigiu-se até o centro da multidão com suas preciosas quinquilharias. Timidamente, anunciou produtos a preços reduzidos. Espontaneamente, cedeu mais descontos para os conhecidos. Tristemente, contou o dinheiro que lucrara. Sobre o chapéu encardido que adornava sua cabeça, as nuvens zuniam com selvageria. 

Trabalhava como vendedor desde sempre, ofício que aprendeu com o pai, que aprendeu com o avô, que tinha morrido de fadiga há alguns anos. Não era a melhor das profissões, não gostava daquilo e, quando ainda era criança, sonhava com uma coisa diferente para o próprio futuro. Queria ter seguido por outro caminho, na verdade, queria ter sido livre para escolher como conduziria a vida através daquele mundo. Fez planos para ser professor, mas jogou todos eles fora quando deu início à sua família. Era jovem quando tudo aconteceu e roubou a preciosa adolescência, interrompeu as aulas que frequentava à tarde e entregou-se exclusivamente ao trabalho que era uma tradição entre aqueles que o criaram. 

Ficou eternamente assim, sem estudo e sem estrutura. Pretendia ser uma figura paterna diferente daquela com a qual conviveu, mas não foi capaz de fazer isso. Ainda que no começo da maturidade desejasse profundamente oferecer o amparo com o qual nunca foi capaz de contar, o amargor da existência alterou rapidamente os planos sobre os quais refletia. Não havia motivos para supor que os próprios filhos romperiam esse ciclo perpétuo, aquilo não aconteceria tão facilmente naquela encarnação. Talvez fossem prodígios invisibilizados, mas já não importava, morreriam como insignificantes paupérrimos. 

Angustiadas, as duas crianças — conhecidas por todos apenas como filhos daquele casal — choraram a caminho da escola. Não que fossem fracas ou estivessem desacostumadas com as durezas cotidianas que as cercavam. Mas, diferentemente dos progenitores, ainda eram esperançosas e conseguiam projetar um futuro brilhante à distância de um fechar de olhos. O menino e a menina rezavam para que nunca precisassem ser como os pais, com corações tão ressecados pela realidade penosa. Apesar das circunstâncias, ainda amavam aquele homem e aquela mulher que haviam lhes concebido. Mas sabiam que ambos não eram modelos ideais de uma existência digna. Portanto, optavam pela ignorância toda vez que tinha início aquela lamúria sobre o sabor árido ao qual todos os que ali moravam estavam destinados. Caso fosse mesmo verdade, preferiam fazer daquela uma questão porvindoura. Em cima de suas mentes turbulentas, os corpos celestes repudiavam a tragédia anunciada.

A essa altura, sobre esses sujeitos nota-se claramente: não eram uma família memorável, não fizeram nada que garantisse qualquer mérito, não receberam homenagens quando o fim derradeiro os alcançou. Morreram no anonimato, largados à própria sorte, abandonados por tantos outros que depois choraram sem nada sentir. Eles não foram ninguém e, simultaneamente, foram todos que poderiam ser. Dignos de nota ou não, é fato que eles não foram sujeitos isolados que padeceram como nunca antes fora visto. Não, esse tipo é um velho conhecido para absolutamente qualquer um, vítimas do mundo como qualquer outro fulano que perambula por aí, torcendo para que a sorte nunca vá gazetear.

Quando a noite chegou, partiram todos. Premiados com o legado fleumático daqueles que varrem o planeta como se o amanhã fosse uma mera palavra, todos aqueles infelizes inomináveis assistiram vir abaixo aquele esquecível pedaço de mundo que um dia suportou todo a cólera do ser humano, predador sanguinário que vende o próprio lar em troca de uns supérfluos prazeres que roubam a melancolia do ser. 

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⏰ Última atualização: Jul 22, 2021 ⏰

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