Aliada

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Acordei completamente recuperada, tracei a fina cicatriz rosada. Não precisei esfregar os olhos para entender se era sonho, a tatuagem pinicava, uma coceira incessante que não passava. Inspirei o ar dentro da tenda e sabia que ele estava ali sem precisar procurar, ele percebeu que não estava mais oculto então suas sombras dançaram sobre minha cabeça levantei o braço tentando alcançar uma.
- Você não é alguém de quem se ganha a confiança, não é mesmo? Passou a noite toda aí?
Sentei-me para olhar o encantador de sombras, ele estava sentado numa poltrona atrás da cabeceira da cama, girava uma pequena adaga nos dedos esguios e cheios de cicatrizes, suas mãos e parte dos braços estavam repletos delas, percebi com terror que era de queimaduras, estremeci ao imaginá-lo recebendo-as.
- Lave-se e vista algo, temos uma reunião.
Foi tudo o que disse sem ao menos me olhar. Assenti para suas costas, não esperava um lindo Bom Dia, ou Como se Sente? Mas a frieza cutucou uma parte em mim que nem sabia existir. Me limpei com a água que estava nos baldes, esfreguei tanto a pele que parecia ter sido arranhada por milhares de minúsculos espinhos, precisava me livrar do cheiro de Hybern de tudo dele.
Minhas roupas estavam esfarrapadas, lama, sangue, suor e todo tipo de sujeira que pude arrastar durante a fuga. Vesti uma túnica bege que estava aos pés da cama quando levantei, arrumei a peça e voltei para tenda. Todos os olhares da noite anterior me receberam, junto a tantos outros igualmente poderosos, respirei fundo.
- Luz, conte o que precisamos.
Foi o único pedido que a grã-senhora fez, assenti. Olhei para todos ao redor, a coceira estava no meu braço novamente, encarei Azriel e passei a mão envolta da tatuagem abaixo do tecido e apertei.
- Obrigada, por terem me acolhido, nunca imaginei que alguém o fizesse.
Prendi a respiração, já havia experimentado a dor e a vergonha de milhares formas, mas em meu peito algo parecia diferente, o grão-senhor fez um aceno para que eu prosseguisse.
- Não sou o bichinho de Hybern como muitos aqui acreditam, sou uma sem corte, órfã sem vestígios da origem. Não se deem o trabalho de tentar, já fiz e deu em nada. não lembro de pais, irmãos, ou qualquer família. A maldita General de Hybern achou que dar crianças de presente a um psicopata seria de bom grado.
Não adiantava fugir, era minha história e não mudaria, tomei novo folego e recomecei.
- Fui a única criança que Hybern escolheu, então jogou as outras para que seus cães infernais as despedaçassem.
- Quanta sorte ser a escolhida do Rei.
Não reconheci a dona da voz, o cheiro era diferente uma criatura presa num corpo tão pequeno e ainda assim parecia tão letal. Balancei a cabeça em negativa, eu queria sorrir, mas não tinha nada em mim que quisesse demonstrar força, quando já estava tão cansada de lutar.
- Não há um dia sequer em que não desejo ser uma daquelas crianças, sua dor e agonia acabaram logo. A minha? Hybern viu em mim algo que nem mesmo Amarantha conseguiu, algo que o fez me esconder. Fui sua escrava por 97 anos, matei em seu nome, fiz coisas que não me garantem o Paraíso, mas eu já vivia no inferno mesmo. Depois que minha magia despertou ele me forçou aos extremos, o vento norte sempre trazia coisas sussurradas, as vezes cheiros, maresia e limões. Coisas com as quais eu só sonhei. Fui brutalizada de tantas formas que nem sei nomear, e a cada tentativa de fuga os castigos pioravam, até que um dia desisti. Desisti porque Hybern colocou a ordem de que eu seria caçada por seus homens e não importava o que fizessem comigo nem em quantos pedaços eu seria quebrada, seria devolvida a ele e remontada.
As mulheres na tenda se agitaram e me lançavam olhares de pena, quis gritar que não queria a pena delas, queria a morte do Rei, minha liberdade. Cerrei os punhos na lateral do corpo, as unhas entrando na carne.
- No pior dos castigos, Hybern se esforçou tanto que apenas me deixar inconsciente não foi o suficiente e no ritual de castigar e ser jogada em uma cela imunda no Castelo de Ossos Marfim, não consegui me recuperar sozinha. Então ele temeu perder seu maior investimento, mandou que um curandeiro fosse me visitar, e o curandeiro assim como todos os serviçais dele sentiam nojo e um ódio profundo por mim. Antes de fazer o que foi enviado para fazer o curandeiro tinha suas próprias ideias.
Puxei a gola da túnica e mostrei a cicatriz redonda que marcava minha omoplata.
- Naquele dia a outra face do meu poder se mostrou, assim que ele me tocou, minha cura foi tomada dele a força, não nego que tive prazer em vê-lo definhar, virar ossos e pó enquanto me restabelecia, Hybern presenciou a magnitude dos meus poderes e lançou o encanto em que sua vida está ligada à minha. E que me impede de matar ele ou seus homens.
Alguns olhares pareceram tentados, Mor e Azriel trocaram palavras baixas, puxei a túnica e exibi o acordo.
- O mestre espião tem o direito de fazer o que muitos aqui desejam, mas não irá funcionar. Já tentei de todas as formas acabar com minha vida ou a droga do encantamento que Hybern tem sobre mim, ou o caldeirão não quer mesmo que eu morra, e ele não morre se eu morrer, acreditem descobri de formas bem difíceis.
- Então qual o motivo para tudo isso? Essa história triste...
Encarei o homem que pareceu desdenhar de mim.
- Por que eu sou a arma dele, porque não voltarei a viver sob ameaças e medo, não preferem ter alguém com tanto poder desse lado?
Tantos pares de olhos me encarando, o ar se tornava cada vez mais difícil de respirar.
- Grão-senhor Helion, quebre esse laço que permite que Hybern viva através dos meus poderes.
Estava à beira de um colapso, não houve espaço para reação quando alcancei uma adaga na panturrilha de Cassian e a apontei contra meu peito.
- Se não irão ajudar, me matem! Não posso voltar aquele lugar, sinto ele farejando, seus homens me caçando, só acabem de vez com isso?
Meus olhos buscaram por qualquer ajuda, Cassian parecia assustado coloquei a adaga em sua mão junto a uma esfera "Por favor", ignorei a plateia, seus olhos foram até seu grão-senhor.
- Por favor!
Pedi uma última vez antes dos meus joelhos falharem, sombras me sustentaram e me mantiveram em pé, enquanto Azriel caminhava até mim, de costas para a mesa dos grão-senhores ele se pôs a minha frente, o rosto impassível, nenhuma demonstração de estar afetado, nenhuma mudança na respiração ou nos batimentos cardíacos.
- Sou eu quem detém o acordo, não a matarei e ninguém irá tocá-la sem que antes passe por mim.
Sua voz estava fria como na primeira vez em que ouvira, mas a promessa nela era o que fazia tudo ser real, pisquei algumas vezes para ele, antes que ele se virasse para mesa e me desse as costas. Suas asas enormes eram esculpidas em músculos e veios grossos, contive um impulso de tocá-las, eram imponentes e estavam bem ali diante de mim. Pouco depois Mor, a pequena grã-feérica que atendia por Amren, os grão-senhores da Noturna e Cassian se posicionaram a minha frente, me afastei um passo para entender o que faziam.
- A reunião acabou, Luz está sob a proteção da Corte Noturna e antes que desencadeiem uma guerra interna, lembre-se de quem é o verdadeiro inimigo.
A dispensa de Rhysand causou agitação, apenas Helion ficou e olhando por cima do ombro de Azriel lançou-me uma piscadela.
- Irei estudar o livro e quando tiver alguma coisa, te procuro.
Suas palavras iluminaram um sentimento que eu a muito havia esquecido, esperança e o peso de senti-la novamente tirou-me as forças necessárias para me manter em pé, cai sob os joelhos e me permiti sentir, lagrimas que a muito eu escondia, a máscara de fortaleza que usei pelos últimos anos caiu comigo. Quando Mor e a grã-senhora se colocaram ao meu lado apoiando meus braços eu soluçava e olhava para elas com gratidão, nunca havia sido aparada, sempre fui eu mesma para minhas próprias dores, não imaginei que conseguiria me sentir segura, não conseguia nem reconhecer o sentimento.
- Cassian, Azriel e eu vamos buscar informações, Mor e Feyre ficam com Luz.
Rhysand falou então desapareceu em escuridão e estrelas, ele saltara. E pelo poder que o trio emanava sabia que não era o salto que eu fazia, eles deviam estar a quilômetros de distância. Mor abriu um sorriso que eu podia jurar iluminou a tenda.
- Agora entre nós, mulheres! Você é forte, levante-se e iremos encarar o que vier.
Olhei para grã-senhora ainda ajoelhada ao meu lado, assenti.

A Corte de Sombra e LuzOnde histórias criam vida. Descubra agora