Capítulo 2- Gurguguma

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Boa leitura 🍃

Ainda com as minhas pernas tremendo, sento debaixo de uma arvore. Aquela mulher foi muito bondosa ao me conceder um pouco de sua refeição, eu sei que tudo que ela tem deveria ser para próprio consumo, seu e de sua família, que não tem condições algumas, mas tive que aceitar, ainda não sei como as coisas estão funcionando atualmente, e nem ao menos quando vou conseguir comer novamente.

Como o pedaço de pão que tem um sabor indecifrável, mas é incrivelmente bom, com certeza não foi feito por humanos. Penso em tudo que aconteceu até agora, parece loucura, mas infelizmente é real, e eu vou ter que me acostumar com esse fato. Fiquei sabendo que eles têm um rei e uma rainha, certamente são tão traiçoeiros quanto os seus súditos, o que é de se esperar.

Tudo que queria nesse momento é o carinho de minha mãe e minha casa, minha vida de volta, apenas isso, mas é como dizem '' só valorizamos quando perdemos.'' Essa frase nunca fez tanto sentido.

Termino de comer e levanto, vendo a vila agora distante, dou um pequeno aceno a família que me ajudou e eles retribuem. Ando por entre as arvores, que agora foram triplicadas, os feéricos têm cuidado da natureza, esse é o único ponto positivo.

Pretendo andar até achar um lugar melhor para ficar, não sei o quanto isso vai demorar, mas espero estar viva até lá.

♧♧♧

Andei por duas ou três horas, ou quem sabe quatro? Não tenho uma ideia clara de onde vou agora, mas sei que preciso saber mais, saber mais sobre esse atual mundo e decidir como lidar com ele. Se eu conversasse com algum deles, poderia saber como reverter a barganha que minha mãe fez? Talvez, mas as chances são poucas e a uma alta probabilidade de piorar a situação, agora eu preciso descobrir como ser tão diligente quanto eles.

Continuo andando e encontro um rio, a água é limpa e cristalina e os peixes nadam abertamente, decido parar um pouco para descansar e tomo um pouco da água, que é como eu imaginava, fresca e boa. Sento na beirada do morro e olho o mundo envolta. Como a vida é engraçada, como as coisas podem mudar de uma hora para outra... ou devo dizer, como podem mudar tanto em cinco anos. Agora tenho vinte e um anos e tenho que agir como tal, perdi parte da minha adolescência, mas o que importa? Já ficou para trás. A partir de agora tenho que ser astuta para sobreviver sozinha, mas a ideia me assusta. Vou tentar encontrar meus pais, nem que seja a última coisa que eu faça. Continuo observando atentamente a paisagem.

Vejo algo se mexer nas profundezas do rio. A criatura sobe até a beira da água, parece ser uma sereia, sua beleza também é hipnotizante e os seus traços são fortes, ela me olha e me instiga a correr. Ando mais rápido, até estar distante de qualquer coisa que possa ser mística, por incrível que pareça, ainda fico surpresa com certos acontecimentos.

Corro até estar longe o bastante para não conseguir ver o rio. Preciso me apressar, está escurecendo e eu não tenho onde passar a noite, passa-la na floresta não é uma ideia promissora, com certeza não é uma opção.

♧♧♧

Tento me aquecer, a noite chega e o frio se estabelece como nunca. Minhas roupas são de tecido fino e carrego apenas um pedaço de pão que sobrou do meu lanche da tarde. Tremo dos pés à cabeça e baforo um jato de ar quente em minhas mãos, afim de esquenta-las o máximo que posso. Nunca estive em contato direto com o frio extremo, em minha cidadezinha o calor era predominante, mesmo no inverno tão pouco sentíamos necessidade de um casaco ou outro.

Sento na ponta de uma arvore, assim como horas atras. Desse ponto da floresta, já não vejo qualquer ser vivo a um tempo. Esfrego minhas mãos e começo a questionar a ideia de comer meu último pedaço de pão neste momento. Mas não posso come-lo agora! E se eu não arranjar qualquer alimento nos próximos dias? Esse pedaço de pão é a única coisa que tenho, e mais, já comi hoje, não é necessário comer mais uma vez. Pondero as palavras em alto e bom som, quem sabe meu estomago escuta?

Fico atenta a floresta e vejo algo resplender. Será que estou tendo alucinações? Acho que não, estou bem de saúde, não posso afirmar, mas apesar do frio e da fome, estou de acordo com as minhas faculdades mentais.

Me esforço afim de enxergar bem e vejo que o reluz é uma fruta. É a minha salvação! Pulo de alegria e tento comemorar em silencio. Com diligencia, me aproximo e me estico ao máximo. A fruta demora a cair, mas depois de algumas cutucadas, finalmente chega ao chão.

Pego-a e vejo a cor brilhante, vermelho sangue, como maçã do amor! Dou uma mordida desesperadamente generosa e aproveito o sabor doce e inebriante. A sensação é de se estar flutuando em uma onda de prazer, como mel o açúcar penetra as minhas veias, me dando a sensação instantânea de felicidade, uma felicidade que jamais senti antes, mas logo acaba e dá lugar ao agonizante nó na garganta. Sinto meu corpo bater contra o chão e meus sentidos se aguçarem, minha cabeça começa a girar e eu perco o controle sobre minha movimentação. Tento engatinhar até um lago cheio d'água, mas tudo que recebo é o chão duro, coberto por terra. Estou alucinando! Não se deixe levar, não se deixe levar! Falo a mim mesma, mas os meus músculos não me obedecem mais. Volto ao dia do acidente, minha mãe me chamando e a visão vermelha sangue, assim como a fruta. Não estou no local do acidente, estou na floresta e minha mãe está aqui também, em algum lugar e eu vou encontrá-la.

-Você está sozinha Viviene. -Alguém fala em meu encalço. -Não se pode contar com a sorte! -A voz hedionda continua. Eu corro, o mais rápido que posso, mas a sensação de estar sendo enforcada é mais forte.

-Viviene! Viviene! Não me deixe filha. -É a voz de minha mãe.

-Estou aqui mãe! Jamais irei deixa-la, seja por onde está, vou encontra-la, eu prometo. -Digo entre soluços.

-Viviene! Viviene!

Escuto ela chamando meu nome continuamente, até sua voz se dissolver em gritos agudos. Tampo os ouvidos e lagrimas escorrem sobre minhas mãos e meus braços, não, espera, é sangue! O sangue se espalha sobre meu corpo, me cobrindo e então não consigo mais gritar, não consigo dizer uma única palavra.

♧♧♧

Levanto repentinamente em um solavanco e um suspiro, como se estivesse me afogando no mar de lembranças, a respiração descompensada.

-Onde estou? Não se atrevam a chegar perto. -Grito e os ameaço com um galho, que antes estava preso no embrionado de meus cabelos. Mas não há ninguém! Não há ninguém no que parece ser um chalé e nem pistas de como vim parar aqui, apenas eu e a fogueira quente e fumacenta.

Fito o local que é de apenas um cômodo, um sofá no qual estava deitada, um balcão e alguns itens de cozinha, armários pretos e cintilantes, e um banheiro.

Então o que eu vivi não era real? Continuo nesse mundo cheio de criaturas, porém não vi minha mãe na floresta, muito menos me afoguei em litros de sangue.

Olho mais uma vez para o sofá, um pedaço de papel grudado em seu entorno me intriga, pego o papel e o leio atentamente.

Deve ser mais diligente quanto a suas ações, nunca pegue uma gurguguma no meio da floresta e coma, elas causam fortes alucinações e te deixam submissa a qualquer um.

Então foi a fruta. Como eu posso ter sido tão irresponsável a ponto de comer qualquer coisa que a floresta me fornece, nem sempre são coisas boas, eu deveria imaginar. Me xingo baixo por ser tão desatenta e paro quando me dou conta que alguém me salvou, perigo duplo, como diz no bilhete, eu poderia ter ficado submissa a qualquer um.

Olho para o lado e vejo uma mulher com uma afeição atordoada. Dou um pequeno pulo de susto, eu estava sozinha a segundos. Um assombro me toma conta quando logo percebo que é um espelho e sou eu quem está sendo refletida, uma mulher, agora sou uma e esqueci desse pequeno detalhe que é de tanta importância para mim. A fase "garota" passou. Apesar de não estar particularmente limpa, meu rosto mudou e meu corpo também, então é essa a mudança que senti quando acordei. Me olho atentamente. Os cabelos escuros e a pele torneada e um pouco suja de terra, os olhos atentos como os de uma leoa e o corpo relaxado como uma desocupada. Meus lábios estão vermelhos de frio e o tremor é inevitável.

Agora preciso fugir daqui, a uma possibilidade da pessoa que me salvou voltar e mudar de ideia sobre me deixar intacta? 

Espero que tenham gostado 💞
Até o próximo.😎

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