— Ela vai ficar bem?
A pergunta ociosa foi ouvida em algum lugar do subconsciente dela, fazendo-a registrá-la de maneira apagada e distante, ainda que seu significado lhe escapasse. A voz era familiar, no entanto, e Felicia lutou para reconhecê-la. Felizmente, outra pessoa se responsabilizou por responder. Uma voz masculina, profunda, limpa, com tons levemente indolentes; uma voz que fez com que os leves dedos do medo descessem por suas costas, de modo que ela se sentiu tentada a se curvar em posição fetal para se esconder deles.
— Não se preocupe, Zahra. E uma combinação de cansaço e mudança de temperatura, eu acho, unidos a muita comida calórica e um estômago vazio. Agora você sabe por que sua mãe a proíbe de fazer essas dietas de emagrecimento ridículas.
— Felicia não precisa emagrecer — objetou Zahra. — Ela está tão pálida, Raschid. Você não acha que devemos chamar um médico?
Raschid! Agora se lembrava! Felicia abriu os olhos, piscando para a luz elétrica, fazendo força para que a escuridão que a circundava desaparecesse e lutando para se sentar. Ela estava em seu quarto, reconheceu ao menos isso, por fim, e Umm Faisal estava ansiosa à porta de entrada, enquanto Zahra e Raschid permaneciam ao lado da cama.
— Não preciso de médico — falou Felicia, desconcertada, quando os três pares de olhos se concentraram nela.
— Você voltou a si! — exclamou Zahra, agradecida. — Nós todos estávamos preocupados. O que diríamos a Faisal se tivesse ficado doente?
— Tenho certeza de que Faisal concordaria quando digo que a srta. Gordon deveria nos falar que estava se sentindo mal — interrompeu Raschid com antipatia. — Zahra, encontre uma das empregadas e peça para que traga suco de fruta para nossa paciente. Depois de seu longo voo, ela está provavelmente desidratada. E, talvez, um comprimido para dormir ajude a srta. Gordon a ter uma boa noite de sono, não é, Fátima? Ninguém nunca lhe disse que viagens de avião podem ser extremamente desidratantes? — perguntou Raschid com severidade, enquanto a irmã e a sobrinha corriam para fazer o que ele pedira. Felicia fechou os olhos, virando o rosto para a parede, arrasada por ouvir o sarcasmo dele. — Ainda está me odiando, srta. Gordon? Inteligente da sua parte não tentar negar isso. Seus olhos brilham de uma maneira muito desconcertante quando você está com raiva, mas é melhor não deixar minha irmã os ver. Ela vem de uma geração que acredita inteiramente na absoluta supremacia dos homens.
— Então você deve ser um atraso! — murmurou Felicia imprudentemente, entredentes, e ficou chocada quando, sem aviso, os dedos de Raschid pegaram seu queixo, forçando-a a virar o rosto, de modo que se viu obrigada a encarar o escrutínio frio dele.
— O que aconteceu com suas boas intenções? — satirizou ele, rude. — Não tínhamos concordado que, pelo bem de Faisal, você deveria procurar a minha aprovação, ou é tola o suficiente para acreditar que essa é a maneira de fazer isso? Permita-me desiludi-la. Não continue com esse desafio tolo e sem sentido. Não sou conhecido por minha paciência, srta. Gordon, mas também não sou o monstro que você imagina. Faisal é um jovem bastante rico e mimado. Sou o tutor dele... uma maneira de pagar por meus pecados! E, embora não possa impedi-lo de se casar com quem bem quiser, tenho como adiar esse casamento, se não me convencer de que é a melhor coisa para ele. Se você realmente busca a felicidade dele, deve entender o sentido do que estou dizendo.
— Por que é tão difícil para você aceitar que a felicidade dele se encontra
ao meu lado? — perguntou Felicia, trêmula, determinada a sustentar a ferocidade do olhar dele. — Você me fala de razão e sensibilidade e, no entanto, me condena antes mesmo de conhecer qualquer coisa a meu respeito. Quer admita isso ou não, você não deseja que Faisal se case comigo. E, no entanto, por quê? Com que direito toma para si a tarefa de escolher por ele? Você não me conhece. Como pode dizer que não seremos felizes?
— Pff! Ou você é uma idiota ou uma tola teimosa, srta. Gordon. Faisal é muçulmano, árabe, com tudo o que a palavra inclui. Você é britânica. Mesmo hoje, os dois mundos permanecem distantes. O casamento com Faisal a tornaria posse dele, tanto quanto o carro ou a casa que ele possui.
— Talvez seja exatamente o que eu quero — respondeu Felicia, recusando-se a desistir.
A expressão de Raschid era de sarcasmo.
— Talvez você queira que ele possua seu corpo, srta. Gordon — afirmou Raschid —, mas, como vai descobrir caso se case com Faisal, ele vai possuir seu corpo e sua alma.
— Pensei que as mulheres não tivessem alma — comentou Felicia com muita imprudência. — Pensei que fossem apenas objetos para divertir os homens; carregadoras de crianças. Você não me assusta ao dizer essas coisas. Se acredita honestamente que a mulher é um ser inferior, por que permitiu que Zahra cursasse universidade?
— Não estamos falando de minhas crenças, srta. Gordon — lembrou ele com frieza —, mas das do meu sobrinho. Não se engane. Apesar dos pontos de vista ocidentalizados que ele demonstra exteriormente, Faisal é tão conservador quanto o pai e o avô. Talvez não exija que você cubra o corpo e o rosto ou fique em reclusão, mas não vai admitir nem por um momento que a esposa dele, a posse dele, se recuse a entender que ele é superior.
Os ouvidos de Raschid, mais atentos que os dela, perceberam o som de passos na escada e ele franziu o rosto como que para avisá-la. Um rubor manchou as faces previamente pálidas de Felicia. Ela estava com tanta raiva que tremia sob o olhar suave de Raschid.
— Esse não é o lugar nem a hora para discutirmos esses assuntos — falou ele. — Devemos falar sobre isso de novo quando você houver descansado, mas lhe aviso que nada do que disse até agora me convenceu de que fará Faisal feliz. O casamento é uma coisa séria, srta. Gordon, não é algo com o qual se deva concordar num piscar de olhos.
— Como é que você sabe? — murmurou amargamente Felicia, quando Zahra entrou. — Você nunca se casou, não foi?
Ele se virou de costas, ignorando a provocação dela e, quando foi embora, Zahra olhou nervosamente a porta se fechar.
— Felicia, você estava brigando com Raschid, não estava? — sussurrou ela.
— Acho que você pode imaginar o motivo. Ele não quer que me case com Faisal — falou Felicia sombriamente, levada pela necessidade de fazer uma confi-dencia a alguém.
— Eu sei — admitiu Zahra. — Ele falou disso comigo. Você não deve se irritar, Felicia, é só que Faisal... — Ela ficou vermelha, claramente envergonhada. — Bom, você não é a primeira garota por quem Faisal acredita estar apaixonado e tio Raschid só está ansioso para proteger minha mãe. Ela não entende esse tipo de coisa. Para ela, noivado é tão sagrado quanto um casamento e é por isso que tio Raschid não vai permitir que você noive com Faisal até ter certeza de que o casamento de vocês será feliz.
Em outras circunstâncias, Felicia talvez houvesse visto sabedoria naquelas palavras, mas a crítica implícita de Raschid alimentava sua raiva, fazendo com que Zahra a olhasse com preocupação crescente, enquanto um rubor queimava suas bochechas.
— Você deve ter paciência — acalmou-a Zahra. — Raschid vai ceder com o tempo, tenho certeza disso. Você deve ter siyasa.
— Siyasa? O que é isso? — perguntou Felicia, intrigada.
Zahra riu.
— É o que na Inglaterra vocês chamariam de tato, mas um pouco mais que isso! É a arte de conseguir o que se quer sem irritar o outro.
— E óbvio que seu tio não me acha digna de siyasa — reclamou Felicia. —Eu honestamente acredito que ele quer me humilhar!
Zahra soltou um som chocado e reprovador.
— Ele jamais seria tão indelicado com um hóspede — afirmou ela com firmeza. — Só está ansioso pela minha mãe. Quer protegê-la apenas. O casamento é um passo muito grande...
— Foi o que seu tio estava me dizendo — concordou Felicia ironicamente. — Ele parece ser um verdadeiro expert no assunto, embora não seja casado.
— Isso porque a noiva dele morreu — explicou Zahra em voz baixa. — Era costume antigo que a mulher noivasse com o primo de primeiro grau. Essa prática foi adotada pelo pai de Raschid, de forma que Raschid é irmão de minha mãe, mas ele também era primo de meu pai.
Era tudo muito difícil para Felicia entender, já que estava com a cabeça
doendo, mas ela fez o melhor possível.
— Raschid é, claro, meio-irmão da minha mãe — continuou Zahra. — Ele era filho da segunda esposa do meu avô. É por isso que professa sua religião e nós, não. Faisal deve ter-lhe dito isso, não?
— Ele disse que a avó de seu tio era inglesa e cristã — admitiu Felicia, curiosa, apesar de sua antipatia pelo tio de Faisal.
— Sim, é isso mesmo — concordou Zahra. — Os avós de Raschid se conheceram no deserto, quando ele a salvou de uma tempestade de areia. Eles se apaixonaram e, já que o avô de Raschid era o chefe de sua família, estava livre para se casar com quem escolhesse. Foi para ela que ele construiu a casa no oásis, porque, apesar do amor deles, às vezes ela sentia falta de sua antiga vida entre seu próprio povo. A mãe de Raschid foi o único filho que tiveram e ela foi a segunda esposa de meu avô. Foi por isso que Raschid se tornou cristão. E uma história romântica, não é?
Felicia disse que sim.
— Acho que Raschid não vai se casar agora — brincou Zahra. — Acho que ele gosta muito da vida de solteiro. — Ela abriu um sorriso para Felicia. — Minha mãe está constantemente submetendo uma ou outra garota à aprovação dele, mas Raschid sempre encontra uma desculpa.
— Outro exemplo de siyasa? — comentou Felicia com secura, piscando os olhos quando Zahra bateu palmas e riu.
— Vou adorar ter você aqui conosco, Felicia. Pobre do Raschid! Ele não vai conseguir ficar contra você durante muito tempo, especialmente quando Faisal vier para casa. Minha mãe sempre o mimou terrivelmente e acho que ela não objetaria se ele tivesse quatro esposas inglesas!
Umm Faisal talvez não, pensou Felicia, cansada, mas ela certamente objetaria. Fechou os olhos, tentando relaxar e diminuir a tensão dos músculos, mas as feições sombrias e sardônicas de Raschid voltavam a sua mente e se interpunham entre a dor de cabeça e a paz que almejava.
Por fim, ela agradeceu pelo fato de Umm Faisal ter entrado no quarto para levar sua filha tagarela embora, deixar um copo de suco fresco para sua hóspede e o prometido comprimido para dormir.
Foi a figura desconhecida da empregada passando pela janela na ponta dos pés que acabou por acordar Felicia. Ela abriu os olhos, desorientada e se perguntando onde estava. Então os eventos do dia anterior voltaram a sua mente. Claro! Estava no Kuwait, entregue à tarefa aparentemente impossível de tentar
persuadir o sheik Raschid a aceitá-la em sua família.
A empregada abriu as janelas com um sorriso tímido, mas, em resposta às perguntas de Felicia, apenas abanou a cabeça e deixou o quarto, reaparecendo al-guns minutos depois com Umm Faisal.
— Então, você está sentindo melhor? — exclamou a mulher mais velha em seu inglês carregado, abrindo um sorriso caloroso para a hóspede. — Isso é bom. Zahra foi para a universidade, mas deixou uma mensagem para dizer que vai se encontrar com você na Cidade do Kuwait ainda hoje, mais tarde. Ali vai levá-la de carro e esperar por você.
— Zahra foi embora? — Felicia se sentou e olhou para o relógio. Como é que podiam ser onze horas da manhã? Quando começou a pedir desculpas, cons-trangida, Umm Faisal abanou a cabeça, sem se perturbar nem um pouco.
— Foi o comprimido — assegurou ela a Felicia —, e você vai se sentir melhor depois da longa noite de sono. Meu irmão foi ao banco, então estamos sozinhas. Selina vai trazer pães e mel ou frutas frescas, se você preferir e, depois, vamos tomar chá e você vai me contar tudo sobre Faisal. Zahra riu de mim, mas uma mãe fica ansiosa por seu filho único quando ele mora no estrangeiro.
Felicia só podia simpatizar com a senhora. Ela mesma já sentia falta de Faisal e ansiava pela presença dele como amparo entre ela e Raschid.
— É um péssimo momento para ele ir a Nova York, logo quando você está nos visitando — falou Umm Faisal —, mas Raschid achou necessário.
É as decisões de Raschid nunca deveriam ser contestadas, pensou Felicia, ressentida.
As frutas frescas e os deliciosos pães que Selina levou ajudaram-na a ganhar ânimo e, depois de um banho refrescante, Felicia vestiu uma bela saia de linho, de um azul frio, sedutoramente pregueada na frente, e uma blusa listrada para completar um visual despojado e prático. A saia fazia par com uma jaqueta, mas a manhã estava tão quente que Felicia a deixou dependurada no guarda-roupa. A sombra azul-claro e o gloss de um rosa suave lhe davam um leve ar de sofisticação, reerguendo sua autoconfiança seriamente abalada.
Com uma porção de gestos de cabeça e sorrisos, Selina a levou até a sala de estar privativa de Umm Faisal no primeiro andar. A mulher mais velha estava Sentada de pernas cruzadas sobre o carpete e se levantou graciosamente quando Felicia entrou. O cômodo era fresco e sombreado, havia um longo diva debaixo das grades de uma janela, cheio de almofadas cobertas de seda vividas, o belo carmesim e o azul-cobalto se destacavam no tapete persa de cores vibrantes como as das pedras preciosas, contrabalançando a sobriedade do chão de
cerâmicas pretas e brancas. Em uma pequena mesa baixa estava o samovar de latão, borbulhando gentilmente, o cheiro do chá de hortelã chegando até Felicia quando ela atravessou a sala. Acima do leve ruído do ar-condicionado, podia escutar o canto dos pássaros.
— Raschid mandou construir um aviário quando nos mudamos para esta casa — explicou Umm Faisal. — E agradável andar pelo jardim à noite e escutá-los cantando.
— Pensei ter ouvido fontes jorrando quando chegamos à noite passada e elas me pareceram maravilhosas — falou Felicia.
— Ah, sim. Não há som mais agradável para os ouvidos árabes do que o de água e, mesmo agora, quando não precisamos mais temer a estação seca, faço força para não desperdiçar uma gota. — Ela balançou a cabeça. — Velhos hábitos são difíceis de desaparecer, e Raschid está constantemente reclamando da minha loucura. Ele comprou esta casa para nós quando meu marido morreu. Raschid, na verdade, prefere o deserto, mas não é seguro para as crianças crescerem tão longe de hospitais, mesmo nos dias de hoje. Ele abriu mão de muita coisa quando Saud morreu, mas Faisal já deve ter lhe contado isso.
Será? Felicia se lembrava bem das reclamações contra o tio.
— Ele devia ser muito novo na época —, murmurou ela involuntariamente, referindo-se a Raschid.
Umm Faisal sorriu.
— Só 19 anos. Ele é filho da segunda esposa de meu pai. Minha mãe não deu filhos homens a meu pai, então ele se casou com uma segunda mulher, mas Yasmin nunca foi verdadeiramente feliz. Ela era filha única e fora educada na Inglaterra, de acordo com os desejos da mãe. No entanto, quando chegou a época de se casar, seu pai insistiu para que fosse de acordo com a antiga tradição. Meu pai era primo em segundo grau dela, mas, embora ela fosse uma esposa prendada, raramente sorria ou ria. Morreu quando Raschid tinha 3 anos de idade e eu sem-pre me perguntei se ela não sonhava com o país da mãe. Raschid não fala sobre o assunto, mas a morte dela o entristeceu bastante. Ele não teve uma vida fácil — continuou em voz baixa Umm Faisal —, e é por essa razão que gostaria de vê-lo estabelecer sua própria família. — Ela mirou Felicia com olhos contemplativos. — Em Raschid, Ocidente e Oriente se encontram. E eu sei que ele às vezes é impa-ciente com relação aos nossos costumes. Foi desejo dele que Zahra e Nadia estudassem na universidade e acho que a parte inglesa dele deseja um compa-nheirismo maior com a esposa do que as mulheres muçulmanas foram ensinadas a esperar. E por essa razão, acho, que nunca se casou.
Coitada da mulher que acabasse casando com ele, pensou Felicia
sombriamente, mas, claro, não deu voz a seus pensamentos.
Naquele dia, Umm Faisal estava vestida em trajes orientais e Felicia suspeitou que o garbo ocidental da noite anterior fora apenas uma forma de deixá-la mais à vontade. O coração dela se aquecia ao contato daquela mulher baixinha e rechonchuda, cujos costumes eram tão diferentes dos dela, mas que tinha toda a boa vontade do mundo para receber os amigos de seu filho. Lembrando-se dos presentes que comprara em Londres e que ainda não tinham sido retirados da mala, Felicia ficou tentada a correr ao andar superior e pegá-los, mas resolveu esperar até que Zahra voltasse.
Tentou não se sentir tão apavorada ao ver que Ali estacionava o Mercedes à porta quando a tarde já ia adiantada, desejando que Umm Faisal fosse com ela.
A idéia era Ali ir até a universidade para pegar Zahra e depois levar as duas garotas de volta para a Cidade do Kuwait, para que elas pudessem olhar as lojas à vontade. Mas, quando atravessavam a Cidade do Kuwait, Felicia se lembrou de que não tinha dinheiro kuwaitiano e convenceu Ali a levá-la até um banco e seguir para pegar Zahra sem ela.
— Vou esperar por Zahra aqui — garantiu ela para o confuso serviçal, apontando para o alto prédio de vidros espelhados atrás dela.
Ao sair de dentro do carro, alegrou-se por ter trocado a blusa listrada por outra mais fina e sem mangas, com uma gola ligeiramente cavada.
O caixa do banco foi gentil e atencioso, explicando pacientemente as denominações do dinheiro kuwaitiano e mostrando a taxa de câmbio. Falava um excelente inglês e, embora Felicia duvidasse de que suas poucas libras a levassem muito longe, era tranquilizador ter dinheiro na bolsa.
Ela saiu da bem-vinda temperatura amena do banco para a severa luz do sol, fascinada com o panorama da vida. que passava em frente a ela, enquanto esperava que Ali voltasse com Zahra. Homens com olhos de falcão, morenos em suas túnicas brancas; os cafetãs imaculadamente brancos, os panos que usavam na cabeça mantidos no lugar pelos igals de ouro brilhante.
Um grupo de idosos estava sentado de pernas cruzadas no pavimento e, para sua surpresa, Felicia percebeu que assistiam à televisão da vitrine de uma loja.
Embora os homens fossem inegavelmente maioria, percebeu várias mulheres andando pelas ruas sem acompanhantes, algumas usando jeans e blusas. Mas havia ainda muitas mulheres que mantinham o tradicional xador, que cobria o corpo inteiro e o rosto. Os homens eram fascinantes, refletiu Felicia. Mesmo na meia-idade, mantinham o porte altivo e a beleza. Olhos negros brilhavam curiosos na direção dela, narizes de falcão e lábios finos eram um lembrete de sua
— Felicia não precisa emagrecer — objetou Zahra. — Ela está tão pálida, Raschid. Você não acha que devemos chamar um médico?
Raschid! Agora se lembrava! Felicia abriu os olhos, piscando para a luz elétrica, fazendo força para que a escuridão que a circundava desaparecesse e lutando para se sentar. Ela estava em seu quarto, reconheceu ao menos isso, por fim, e Umm Faisal estava ansiosa à porta de entrada, enquanto Zahra e Raschid permaneciam ao lado da cama.
— Não preciso de médico — falou Felicia, desconcertada, quando os três pares de olhos se concentraram nela.
— Você voltou a si! — exclamou Zahra, agradecida. — Nós todos estávamos preocupados. O que diríamos a Faisal se tivesse ficado doente?
— Tenho certeza de que Faisal concordaria quando digo que a srta. Gordon deveria nos falar que estava se sentindo mal — interrompeu Raschid com antipatia. — Zahra, encontre uma das empregadas e peça para que traga suco de fruta para nossa paciente. Depois de seu longo voo, ela está provavelmente desidratada. E, talvez, um comprimido para dormir ajude a srta. Gordon a ter uma boa noite de sono, não é, Fátima? Ninguém nunca lhe disse que viagens de avião podem ser extremamente desidratantes? — perguntou Raschid com severidade, enquanto a irmã e a sobrinha corriam para fazer o que ele pedira. Felicia fechou os olhos, virando o rosto para a parede, arrasada por ouvir o sarcasmo dele. — Ainda está me odiando, srta. Gordon? Inteligente da sua parte não tentar negar isso. Seus olhos brilham de uma maneira muito desconcertante quando você está com raiva, mas é melhor não deixar minha irmã os ver. Ela vem de uma geração que acredita inteiramente na absoluta supremacia dos homens.
— Então você deve ser um atraso! — murmurou Felicia imprudentemente, entredentes, e ficou chocada quando, sem aviso, os dedos de Raschid pegaram seu queixo, forçando-a a virar o rosto, de modo que se viu obrigada a encarar o escrutínio frio dele.
— O que aconteceu com suas boas intenções? — satirizou ele, rude. — Não tínhamos concordado que, pelo bem de Faisal, você deveria procurar a minha aprovação, ou é tola o suficiente para acreditar que essa é a maneira de fazer isso? Permita-me desiludi-la. Não continue com esse desafio tolo e sem sentido. Não sou conhecido por minha paciência, srta. Gordon, mas também não sou o monstro que você imagina. Faisal é um jovem bastante rico e mimado. Sou o tutor dele... uma maneira de pagar por meus pecados! E, embora não possa impedi-lo de se casar com quem bem quiser, tenho como adiar esse casamento, se não me convencer de que é a melhor coisa para ele. Se você realmente busca a felicidade dele, deve entender o sentido do que estou dizendo.
— Por que é tão difícil para você aceitar que a felicidade dele se encontra
ao meu lado? — perguntou Felicia, trêmula, determinada a sustentar a ferocidade do olhar dele. — Você me fala de razão e sensibilidade e, no entanto, me condena antes mesmo de conhecer qualquer coisa a meu respeito. Quer admita isso ou não, você não deseja que Faisal se case comigo. E, no entanto, por quê? Com que direito toma para si a tarefa de escolher por ele? Você não me conhece. Como pode dizer que não seremos felizes?
— Pff! Ou você é uma idiota ou uma tola teimosa, srta. Gordon. Faisal é muçulmano, árabe, com tudo o que a palavra inclui. Você é britânica. Mesmo hoje, os dois mundos permanecem distantes. O casamento com Faisal a tornaria posse dele, tanto quanto o carro ou a casa que ele possui.
— Talvez seja exatamente o que eu quero — respondeu Felicia, recusando-se a desistir.
A expressão de Raschid era de sarcasmo.
— Talvez você queira que ele possua seu corpo, srta. Gordon — afirmou Raschid —, mas, como vai descobrir caso se case com Faisal, ele vai possuir seu corpo e sua alma.
— Pensei que as mulheres não tivessem alma — comentou Felicia com muita imprudência. — Pensei que fossem apenas objetos para divertir os homens; carregadoras de crianças. Você não me assusta ao dizer essas coisas. Se acredita honestamente que a mulher é um ser inferior, por que permitiu que Zahra cursasse universidade?
— Não estamos falando de minhas crenças, srta. Gordon — lembrou ele com frieza —, mas das do meu sobrinho. Não se engane. Apesar dos pontos de vista ocidentalizados que ele demonstra exteriormente, Faisal é tão conservador quanto o pai e o avô. Talvez não exija que você cubra o corpo e o rosto ou fique em reclusão, mas não vai admitir nem por um momento que a esposa dele, a posse dele, se recuse a entender que ele é superior.
Os ouvidos de Raschid, mais atentos que os dela, perceberam o som de passos na escada e ele franziu o rosto como que para avisá-la. Um rubor manchou as faces previamente pálidas de Felicia. Ela estava com tanta raiva que tremia sob o olhar suave de Raschid.
— Esse não é o lugar nem a hora para discutirmos esses assuntos — falou ele. — Devemos falar sobre isso de novo quando você houver descansado, mas lhe aviso que nada do que disse até agora me convenceu de que fará Faisal feliz. O casamento é uma coisa séria, srta. Gordon, não é algo com o qual se deva concordar num piscar de olhos.
— Como é que você sabe? — murmurou amargamente Felicia, quando Zahra entrou. — Você nunca se casou, não foi?
Ele se virou de costas, ignorando a provocação dela e, quando foi embora, Zahra olhou nervosamente a porta se fechar.
— Felicia, você estava brigando com Raschid, não estava? — sussurrou ela.
— Acho que você pode imaginar o motivo. Ele não quer que me case com Faisal — falou Felicia sombriamente, levada pela necessidade de fazer uma confi-dencia a alguém.
— Eu sei — admitiu Zahra. — Ele falou disso comigo. Você não deve se irritar, Felicia, é só que Faisal... — Ela ficou vermelha, claramente envergonhada. — Bom, você não é a primeira garota por quem Faisal acredita estar apaixonado e tio Raschid só está ansioso para proteger minha mãe. Ela não entende esse tipo de coisa. Para ela, noivado é tão sagrado quanto um casamento e é por isso que tio Raschid não vai permitir que você noive com Faisal até ter certeza de que o casamento de vocês será feliz.
Em outras circunstâncias, Felicia talvez houvesse visto sabedoria naquelas palavras, mas a crítica implícita de Raschid alimentava sua raiva, fazendo com que Zahra a olhasse com preocupação crescente, enquanto um rubor queimava suas bochechas.
— Você deve ter paciência — acalmou-a Zahra. — Raschid vai ceder com o tempo, tenho certeza disso. Você deve ter siyasa.
— Siyasa? O que é isso? — perguntou Felicia, intrigada.
Zahra riu.
— É o que na Inglaterra vocês chamariam de tato, mas um pouco mais que isso! É a arte de conseguir o que se quer sem irritar o outro.
— E óbvio que seu tio não me acha digna de siyasa — reclamou Felicia. —Eu honestamente acredito que ele quer me humilhar!
Zahra soltou um som chocado e reprovador.
— Ele jamais seria tão indelicado com um hóspede — afirmou ela com firmeza. — Só está ansioso pela minha mãe. Quer protegê-la apenas. O casamento é um passo muito grande...
— Foi o que seu tio estava me dizendo — concordou Felicia ironicamente. — Ele parece ser um verdadeiro expert no assunto, embora não seja casado.
— Isso porque a noiva dele morreu — explicou Zahra em voz baixa. — Era costume antigo que a mulher noivasse com o primo de primeiro grau. Essa prática foi adotada pelo pai de Raschid, de forma que Raschid é irmão de minha mãe, mas ele também era primo de meu pai.
Era tudo muito difícil para Felicia entender, já que estava com a cabeça
doendo, mas ela fez o melhor possível.
— Raschid é, claro, meio-irmão da minha mãe — continuou Zahra. — Ele era filho da segunda esposa do meu avô. É por isso que professa sua religião e nós, não. Faisal deve ter-lhe dito isso, não?
— Ele disse que a avó de seu tio era inglesa e cristã — admitiu Felicia, curiosa, apesar de sua antipatia pelo tio de Faisal.
— Sim, é isso mesmo — concordou Zahra. — Os avós de Raschid se conheceram no deserto, quando ele a salvou de uma tempestade de areia. Eles se apaixonaram e, já que o avô de Raschid era o chefe de sua família, estava livre para se casar com quem escolhesse. Foi para ela que ele construiu a casa no oásis, porque, apesar do amor deles, às vezes ela sentia falta de sua antiga vida entre seu próprio povo. A mãe de Raschid foi o único filho que tiveram e ela foi a segunda esposa de meu avô. Foi por isso que Raschid se tornou cristão. E uma história romântica, não é?
Felicia disse que sim.
— Acho que Raschid não vai se casar agora — brincou Zahra. — Acho que ele gosta muito da vida de solteiro. — Ela abriu um sorriso para Felicia. — Minha mãe está constantemente submetendo uma ou outra garota à aprovação dele, mas Raschid sempre encontra uma desculpa.
— Outro exemplo de siyasa? — comentou Felicia com secura, piscando os olhos quando Zahra bateu palmas e riu.
— Vou adorar ter você aqui conosco, Felicia. Pobre do Raschid! Ele não vai conseguir ficar contra você durante muito tempo, especialmente quando Faisal vier para casa. Minha mãe sempre o mimou terrivelmente e acho que ela não objetaria se ele tivesse quatro esposas inglesas!
Umm Faisal talvez não, pensou Felicia, cansada, mas ela certamente objetaria. Fechou os olhos, tentando relaxar e diminuir a tensão dos músculos, mas as feições sombrias e sardônicas de Raschid voltavam a sua mente e se interpunham entre a dor de cabeça e a paz que almejava.
Por fim, ela agradeceu pelo fato de Umm Faisal ter entrado no quarto para levar sua filha tagarela embora, deixar um copo de suco fresco para sua hóspede e o prometido comprimido para dormir.
Foi a figura desconhecida da empregada passando pela janela na ponta dos pés que acabou por acordar Felicia. Ela abriu os olhos, desorientada e se perguntando onde estava. Então os eventos do dia anterior voltaram a sua mente. Claro! Estava no Kuwait, entregue à tarefa aparentemente impossível de tentar
persuadir o sheik Raschid a aceitá-la em sua família.
A empregada abriu as janelas com um sorriso tímido, mas, em resposta às perguntas de Felicia, apenas abanou a cabeça e deixou o quarto, reaparecendo al-guns minutos depois com Umm Faisal.
— Então, você está sentindo melhor? — exclamou a mulher mais velha em seu inglês carregado, abrindo um sorriso caloroso para a hóspede. — Isso é bom. Zahra foi para a universidade, mas deixou uma mensagem para dizer que vai se encontrar com você na Cidade do Kuwait ainda hoje, mais tarde. Ali vai levá-la de carro e esperar por você.
— Zahra foi embora? — Felicia se sentou e olhou para o relógio. Como é que podiam ser onze horas da manhã? Quando começou a pedir desculpas, cons-trangida, Umm Faisal abanou a cabeça, sem se perturbar nem um pouco.
— Foi o comprimido — assegurou ela a Felicia —, e você vai se sentir melhor depois da longa noite de sono. Meu irmão foi ao banco, então estamos sozinhas. Selina vai trazer pães e mel ou frutas frescas, se você preferir e, depois, vamos tomar chá e você vai me contar tudo sobre Faisal. Zahra riu de mim, mas uma mãe fica ansiosa por seu filho único quando ele mora no estrangeiro.
Felicia só podia simpatizar com a senhora. Ela mesma já sentia falta de Faisal e ansiava pela presença dele como amparo entre ela e Raschid.
— É um péssimo momento para ele ir a Nova York, logo quando você está nos visitando — falou Umm Faisal —, mas Raschid achou necessário.
É as decisões de Raschid nunca deveriam ser contestadas, pensou Felicia, ressentida.
As frutas frescas e os deliciosos pães que Selina levou ajudaram-na a ganhar ânimo e, depois de um banho refrescante, Felicia vestiu uma bela saia de linho, de um azul frio, sedutoramente pregueada na frente, e uma blusa listrada para completar um visual despojado e prático. A saia fazia par com uma jaqueta, mas a manhã estava tão quente que Felicia a deixou dependurada no guarda-roupa. A sombra azul-claro e o gloss de um rosa suave lhe davam um leve ar de sofisticação, reerguendo sua autoconfiança seriamente abalada.
Com uma porção de gestos de cabeça e sorrisos, Selina a levou até a sala de estar privativa de Umm Faisal no primeiro andar. A mulher mais velha estava Sentada de pernas cruzadas sobre o carpete e se levantou graciosamente quando Felicia entrou. O cômodo era fresco e sombreado, havia um longo diva debaixo das grades de uma janela, cheio de almofadas cobertas de seda vividas, o belo carmesim e o azul-cobalto se destacavam no tapete persa de cores vibrantes como as das pedras preciosas, contrabalançando a sobriedade do chão de
cerâmicas pretas e brancas. Em uma pequena mesa baixa estava o samovar de latão, borbulhando gentilmente, o cheiro do chá de hortelã chegando até Felicia quando ela atravessou a sala. Acima do leve ruído do ar-condicionado, podia escutar o canto dos pássaros.
— Raschid mandou construir um aviário quando nos mudamos para esta casa — explicou Umm Faisal. — E agradável andar pelo jardim à noite e escutá-los cantando.
— Pensei ter ouvido fontes jorrando quando chegamos à noite passada e elas me pareceram maravilhosas — falou Felicia.
— Ah, sim. Não há som mais agradável para os ouvidos árabes do que o de água e, mesmo agora, quando não precisamos mais temer a estação seca, faço força para não desperdiçar uma gota. — Ela balançou a cabeça. — Velhos hábitos são difíceis de desaparecer, e Raschid está constantemente reclamando da minha loucura. Ele comprou esta casa para nós quando meu marido morreu. Raschid, na verdade, prefere o deserto, mas não é seguro para as crianças crescerem tão longe de hospitais, mesmo nos dias de hoje. Ele abriu mão de muita coisa quando Saud morreu, mas Faisal já deve ter lhe contado isso.
Será? Felicia se lembrava bem das reclamações contra o tio.
— Ele devia ser muito novo na época —, murmurou ela involuntariamente, referindo-se a Raschid.
Umm Faisal sorriu.
— Só 19 anos. Ele é filho da segunda esposa de meu pai. Minha mãe não deu filhos homens a meu pai, então ele se casou com uma segunda mulher, mas Yasmin nunca foi verdadeiramente feliz. Ela era filha única e fora educada na Inglaterra, de acordo com os desejos da mãe. No entanto, quando chegou a época de se casar, seu pai insistiu para que fosse de acordo com a antiga tradição. Meu pai era primo em segundo grau dela, mas, embora ela fosse uma esposa prendada, raramente sorria ou ria. Morreu quando Raschid tinha 3 anos de idade e eu sem-pre me perguntei se ela não sonhava com o país da mãe. Raschid não fala sobre o assunto, mas a morte dela o entristeceu bastante. Ele não teve uma vida fácil — continuou em voz baixa Umm Faisal —, e é por essa razão que gostaria de vê-lo estabelecer sua própria família. — Ela mirou Felicia com olhos contemplativos. — Em Raschid, Ocidente e Oriente se encontram. E eu sei que ele às vezes é impa-ciente com relação aos nossos costumes. Foi desejo dele que Zahra e Nadia estudassem na universidade e acho que a parte inglesa dele deseja um compa-nheirismo maior com a esposa do que as mulheres muçulmanas foram ensinadas a esperar. E por essa razão, acho, que nunca se casou.
Coitada da mulher que acabasse casando com ele, pensou Felicia
sombriamente, mas, claro, não deu voz a seus pensamentos.
Naquele dia, Umm Faisal estava vestida em trajes orientais e Felicia suspeitou que o garbo ocidental da noite anterior fora apenas uma forma de deixá-la mais à vontade. O coração dela se aquecia ao contato daquela mulher baixinha e rechonchuda, cujos costumes eram tão diferentes dos dela, mas que tinha toda a boa vontade do mundo para receber os amigos de seu filho. Lembrando-se dos presentes que comprara em Londres e que ainda não tinham sido retirados da mala, Felicia ficou tentada a correr ao andar superior e pegá-los, mas resolveu esperar até que Zahra voltasse.
Tentou não se sentir tão apavorada ao ver que Ali estacionava o Mercedes à porta quando a tarde já ia adiantada, desejando que Umm Faisal fosse com ela.
A idéia era Ali ir até a universidade para pegar Zahra e depois levar as duas garotas de volta para a Cidade do Kuwait, para que elas pudessem olhar as lojas à vontade. Mas, quando atravessavam a Cidade do Kuwait, Felicia se lembrou de que não tinha dinheiro kuwaitiano e convenceu Ali a levá-la até um banco e seguir para pegar Zahra sem ela.
— Vou esperar por Zahra aqui — garantiu ela para o confuso serviçal, apontando para o alto prédio de vidros espelhados atrás dela.
Ao sair de dentro do carro, alegrou-se por ter trocado a blusa listrada por outra mais fina e sem mangas, com uma gola ligeiramente cavada.
O caixa do banco foi gentil e atencioso, explicando pacientemente as denominações do dinheiro kuwaitiano e mostrando a taxa de câmbio. Falava um excelente inglês e, embora Felicia duvidasse de que suas poucas libras a levassem muito longe, era tranquilizador ter dinheiro na bolsa.
Ela saiu da bem-vinda temperatura amena do banco para a severa luz do sol, fascinada com o panorama da vida. que passava em frente a ela, enquanto esperava que Ali voltasse com Zahra. Homens com olhos de falcão, morenos em suas túnicas brancas; os cafetãs imaculadamente brancos, os panos que usavam na cabeça mantidos no lugar pelos igals de ouro brilhante.
Um grupo de idosos estava sentado de pernas cruzadas no pavimento e, para sua surpresa, Felicia percebeu que assistiam à televisão da vitrine de uma loja.
Embora os homens fossem inegavelmente maioria, percebeu várias mulheres andando pelas ruas sem acompanhantes, algumas usando jeans e blusas. Mas havia ainda muitas mulheres que mantinham o tradicional xador, que cobria o corpo inteiro e o rosto. Os homens eram fascinantes, refletiu Felicia. Mesmo na meia-idade, mantinham o porte altivo e a beleza. Olhos negros brilhavam curiosos na direção dela, narizes de falcão e lábios finos eram um lembrete de sua
herança. Era impossível não admirá-los em sua estrita obediência aos costumes, embora ela gostasse do fato de Faisal ser mais gentil por natureza, mais maleável, disposto a agradá-la e a fazer suas vontades. Efeito, sem dúvida, de sua educação ocidental e resultado da ligação estreita que evidentemente existia entre ele e a mãe. Raschid fora feito em outra forma.
Era muito fácil imaginá-lo olhando por cima de seu arrogante nariz para alguma infeliz fêmea que lhe causasse algum desgosto.
Ali estava demorando mais do que ela esperava e Felicia saiu pela rua lotada, procurando o conhecido Mercedes. Um grupo de jovens se aproximava, com olhos orgulhosos e examinadores, e Felicia estava começando a se sentir crescentemente desconfortável. Tanto que quase desejava a proteção das roupas negras envolventes das outras mulheres para se esconder dos olhares lascivos e insistentes que estava atraindo.
Quando viu o Mercedes parando alguns metros adiante, começou a correr em sua direção, mas não foi Ali que saiu do carro. Foi o próprio Raschid, o rosto sombrio e severo ao caminhar na direção dela, a fina seda de sua roupa aberta no colarinho para revelar o pescoço forte e bronzeado. O reconhecimento do corpo dele se infiltrou por entre o medo dela, aliado à desconfortável admissão de que esses homens de pele morena, com seus perfis arrogantes e graça esguia, faziam os ingleses parecerem pálidos e frágeis. O coração dela batia muito rápido, a pul-sação acelerada, a boca seca de medo e nervosismo. Em vez de ir ao encontro de Raschid, permaneceu parada, paralisada onde estava como um pobre e pequeno rato, petrificada pela graça cruel do falcão em seu voo rasante.
Dedos escuros como garras pegaram seu braço, fazendo-a esbarrar em um rígido corpo masculino, o cheiro da pele máscula preenchendo suas narinas en-quanto, momentaneamente, ela estava sendo apertada contra Raschid.
— Srta. Gordon! — Havia exasperação e uma raiva rigidamente controlada nas duas palavras. Felicia se viu tremendo levemente, procurando meios de desfa-zer a raiva dele.
— Estava esperando Zahra.
— Tendo dito a Ali para deixá-la, completamente sozinha, no meio de uma cidade estranha... Sim, eu sei — concordou ele sombriamente. — Por sorte, Ali teve a boa idéia de vir me contar. — Os olhos dele passaram pelo corpo dela; os frágeis ossos dos quadris revelados pela saia justa; a suave curva da cintura abaixo da inesperada fartura dos seios. Percebendo o olhar dele, Felicia sentiu frio e calor ao mesmo tempo, suprimindo o desejo instintivo de esconder o corpo.
— Nesse país, srta. Gordon — falou ele —, uma mulher de boa família não anda pelas ruas sozinha, com o corpo à mostra para deleite de todos, pára que se
fale dela em toda parte e se especule a seu respeito, como aqueles garotos estão fazendo agora. Devo lhe dizer uma coisa: Faisal não ficaria contente se soubesse dessa saída.
Chocada, Felicia permaneceu em silêncio por causa daquelas palavras de censura, mordendo o lábio com força.
— Eu só queria pegar algum dinheiro — engasgou-se ela, quase às lágrimas, humilhada com o pensamento de que Raschid estava observando sua perturbação.
— Podia ter falado comigo — continuou a voz fria e inexorável de Raschid. — Ou a tão decantada liberdade de que vocês, mulheres européias, têm tanto or-gulho significa que não podem ao menos fazer isso?
Ele a fez parecer tão pequena e infantil que ela teria chorado. Felicia simplesmente não pensara em pedir a Raschid para trocar o dinheiro para ela, mas em algum lugar de sua mente percebeu que ele tinha alguma razão em sua acusação, embora teimosamente se opusesse.
— Tenho certeza de que não é crime andar sozinha. Outras mulheres faziam o mesmo e usavam roupas européias — falou Felicia, desafiadora.
Raschid fez um gesto com os dedos, ignorando o desafio nos olhos dela.
— Estrangeiras! — falou ele com desprezo. — Mulheres cujas famílias não se preocupam com sua reputação.
— Minha reputação deve ser preocupação minha — devolveu Felicia com raiva. — Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma. Afinal de contas, vivo sozinha em Londres há cinco anos.
— No Kuwait, srta. Gordon, a reputação de uma mulher é preocupação de toda a família dela, e uma mácula nessa reputação se reflete em todos os mem-bros da família. Talvez Faisal não lhe tenha dito que Zahra está noiva de um jovem pertencente a uma família excepcionalmente rígida. O noivado só foi ar-ranjado depois de muita negociação, bastante sutil. Trata-se de algo delicado para a religião muçulmana. A informação de que uma jovem ligada à nossa família, ainda que de forma meio nebulosa, estava se mostrando como você fez hoje tem sérias repercussões para o futuro de Zahra.
Se ele pensava que era assim que a faria se sentir humilhada e recriminada, então era melhor pensar de novo, raciocinou Felicia com raiva.
— Um casamento arranjado? Típico de você! — explodiu ela. — Se você pudesse, arruinaria a vida de Faisal da mesma maneira. Assim, sua vida não seria perturbada por uma indesejável garota inglesa de cuja moral e antecedentes você tanto suspeita! Sinto muito por desapontá-lo, sheik Raschid, mas vou me casar com Faisal e não há nada que você possa fazer para impedir isso, ainda que
tenhamos de esperar três anos.
Ela se perguntava se era raiva ou desprezo o que fazia a boca dele se enrijecer de modo tão reprovador. Não havia dúvida d,e que pensava que garotas de boa família não deixavam suas intenções claras de forma tão franca. Esperavam com olhos baixos e obedientes até que os pais e irmãos lhes dissessem com quem casar. Pobre Zahra! Como ela se sentiria em relação ao casamento arranjado?
Os dedos cruéis ainda a mantinham prisioneira, enquanto inquietos olhos acinzentados a analisavam dos pés à cabeça repetidas vezes, de modo que Felicia se tornou extremamente furiosa e trêmula.
— Solte-me! — murmurou ela. — As pessoas estão olhando para nós!
— E isso a ofende? — A boca dele se apertou com crueldade e, pela primeira vez, Felicia percebeu em sua inteireza a curva que fazia, indicando uma comoção que ela achava não fazer parte da natureza dele.
— Você percebe que, se fosse casada com Faisal, daria a ele dois motivos para se divorciar: primeiro, ao se exibir na rua como fez, para todos verem; e, depois, ao permitir que eu me comporte com você com tanta intimidade à vista de todos? Faisal não gostaria disso, srta. Gordon.
Ela sabia que isso era verdade. Havia certa inflexão na voz de Faisal sempre que mencionava o tio, o que dava pistas de uma ponta de ciúme, o qual podia se transformar de uma centelha em um grande incêndio. — Eu não gosto de ser olhada como se estivesse à venda no mercado público! — respondeu Felicia com sarcasmo, afastando os olhos do hipnótico efeito que causava o ferino olhar de Raschid.
— Você me surpreende. Ao menos quanto a um aspecto não posso condenar o gosto de Faisal: você é uma mulher extremamente bonita. Mas é preciso mais do que um corpo desejável e um belo rosto para se tornar uma boa esposa.
— Embora sejam traços admiráveis em uma amante? E isso o que você quer dizer?
As sobrancelhas de Raschid se levantaram, repressoras, acrescentando ainda mais arrogância a seu ar terrível.
— Não disse isso — respondeu ele. — Era essa sua intenção quando concordou em vir para cã? Vender-Se por um preço mais alto, sabendo que um árabe rico pagaria muito por esse belo corpo que você esconde de forma tão inadequada?
Felicia teria lhe dado um tapa ali mesmo, na frente de todas aquelas pessoas, se ele não tivesse transferido o aperto que lhe dava no braço para os
pulsos. A dor se espalhava por sua carne delicada como um choque devido à ferocidade dos dedos que envolviam seus frágeis pulsos.
— Por que pergunta? — gritou ela amargamente. — Está pensando em fazer uma oferta?
Ela sabia de antemão ter ido longe demais. A boca de Raschid se apertou ameaçadoramente, seus olhos a condenavam ao examiná-la com desprezo mal dis-farçado.
— De forma alguma — disse ele, cruel, abanando a cabeça. — Não compro mercadoria danificada, srta. Gordon, por mais que pareça desejável na superfície. Uma pedra lascada de jade, um tapete com defeito, uma mulher ousada, tudo isso é inútil!
As palavras dele provocaram uma mistura de abalo e raiva. Felicia tentou se libertar e sofreu com a indignidade adicional de ser puxada contra o corpo de Raschid, o choque arrancando o fôlego de seus pulmões, enquanto se colava aos seus músculos durante o impacto. O contato durou apenas um segundo, mas, ao se afastar e caminhar pela calçada em direção ao carro, onde Zahra olhava curiosamente pela janela, Felicia sentiu como se a pressão do corpo de Raschid estivesse ainda lhe queimando a pele. E ela, que abraçara Faisal ainda mais de perto, se perguntava por que achara aquele encontro momentâneo com Raschid tão intensamente perturbador. Longas passadas trouxeram o objeto de seus pensamentos tumultuados para o lado dela, dedos longos desceram sobre os seus, olhos clínicos estudando a maneira como ela fazia uma careta enquanto ele abria a porta do carro, segurando-a para que entrasse.
Todo o episódio não devia ter durado mais que alguns minutos, mas Felicia, por alguma razão, sentia que jamais o esqueceria. Tensa e na defensiva, tentou acalmar os nervos excitados enquanto Raschid fechava a porta e entrava para se sentar no banco do carona.
Por um segundo apenas, ela vislumbrara as emoções que Raschid escondia por trás da fachada fria e o que vira a assustara. Ele era tão diferente de Faisal quanto a água do vinho, pensou, trêmula. Raschid não tinha nada da compaixão gentil de Faisal; nada do seu charme infantil. Então, por que ela não conseguia es-quecê-lo quando precisava imensamente se apegar à lembrança do amor de Faisal?
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Um Amor Arábe
RomanceSinopse: Felicia sabia que haveria obstáculos a superar quando concordou em ir sozinha ao Kuwait visitar os parentes de seu noivo, Faisal. Ela era uma garota inglesa comum, enquanto ele era um árabe de uma família imensamente rica. Mas havia um pro...