Capítulo 6

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Os melhores planos constantemente dão errado!, pensava Felicia com tristeza ao se vestir para o jantar. Uma parte covarde do coração dela rezava para que Raschid não estivesse presente à refeição. Refletiu criticamente, olhando para o espelho, e viu seu rosto muito pálido. Soubera desde o princípio que a tarefa que se autoimpusera não tinha futuro, mas, depois daquela tarde, não tinha a menor esperança de convencer Raschid de que seria uma boa esposa para Faisal. Ela deu de ombros com bravura. Isso importava, no final das contas? Raschid não poderia jurar perante a Bíblia que não agira com provocação! Provocação! A cor sumiu do seu rosto quando se lembrou do movimento sensual do polegar dele em sua pele e da fraqueza peculiar que fez com que suas pernas parecessem ter se transformado em gelatina.
Tudo puro magnetismo, claro. Ela passou a escova de cabelo com força durante alguns segundos até que seus cachos castanhos enquadrassem o rosto pequeno como uma nuvem sedosa. Raschid fizera aquilo de propósito, não havia dúvida quanto a isso! Brincava com seus medos e incertezas, liberava a poderosa aura de sua masculinidade. Como ela chegara perto de sucumbir!
Felicia soltou a escova lentamente, fitando sua boca trêmula e os olhos cansados. Aquela era a questão. As carícias de Raschid a afetaram perigosamente. Tanto que ficou morta de vergonha ao reviver os momentos que passara nos braços dele. Felicia o encorajara de propósito a se enfurecer com ela, mas jamais sonhara que a coisa seguiria um curso tão prejudicial e sensual, nem que ela mesma fosse arrastada por aquela forte maré. Em vão, disse a si mesma que era meramente uma reação feminina automática, tentando com de-sespero afastar a imagem torturante do sorriso provocador de Raschid para substituí-lo pelo sorriso amoroso de Faisal. Mas, por alguma razão, foi impossível reconstruir as feições joviais dele; a lembrança escapava dela, como se Faisal tivesse sido derrotado pela personalidade mais forte de Raschid. Quanto mais tentava se apegar à lembrança de Faisal, mais difícil achava sobrepor suas feições às de Raschid. A honestidade sempre fora dos seus pontos mais fortes e agora ela era obrigada a questionar a força de seus sentimentos.

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Haveria uma ponta de verdade na acusação de Raschid de que seu amor por Faisal se baseava no que ele poderia lhe dar? Ah, não riqueza, aquilo importava pouco, mas segurança, calor, o afeto e o companheirismo de uma família. Quanto mais examinava esse ponto, mais a idéia parecia plausível. Faisal a cercava de calor e amor, e ela se deixara levar pela segurança que aquilo representava, sem questionar profundamente os próprios sentimentos. Era suficiente apenas ser amada. Mas aquilo seria sempre suficiente? E ela não estaria enganando Faisal do mesmo jeito, como se só quisesse o dinheiro dele?
Felicia ficou feliz quando o gongo anunciando o jantar pôs um fim àquelas especulações inúteis. Ela estava inclinada a ter dúvidas, a repensar, mas quando estivesse junto de Faisal novamente... Nem mesmo no lugar mais recôndito de seu coração estava disposta a admitir que as verdadeiras dúvidas surgiram da descoberta de que, enquanto o amor de Faisal quase não a afetava fisicamente, Raschid só precisava tocá-la para fazer cora que sua pulsação acelerasse e o corpo despertasse sexualmente.
O ódio podia ser uma emoção tão forte quanto o amor, lembrou a si mesma ao fechar o zíper do vestido e colocar um pouco de batom nas suaves curvas dos lábios. Combinando com o rosa do vestido, espirais de rosa e enfeites verde-claro, uma incomum combinação para alguém de cabelo castanho, mas que trazia Um indefinível toque de exotismo à sua aparência, escurecendo a cor de seus olhos e realçando a beleza de seu cabelo. Um cachecol branco de renda cobria seus ombros, embora o vestido tivesse mangas curtas e um decote muito discreto. Intocado sobre a penteadeira estava o perfume que Raschid lhe dera. Ela se recusara a abri-lo. Por um momento, se sentiu tentada a fazer com ele a mesma coisa que fizera como peso para papel de vidro. Mas lembrou que o perfume lhe fora dado pelo fabricante e não por Raschid. Mesmo assim, relutou ao descobrir que tipo de mulher ele pensava que ela era e empurrou a pequena caixa para o fundo da gaveta, sem querer que os olhos curiosos de Zahra a vissem.
Felicia foi a primeira a chegar ao térreo e, num impulso, correu para o jardim, até o local em que atirara a caixa de couro azul. Fora bobagem tentar destruir uma coisa de tanta beleza por causa de um repente. Mas, por mais que procurasse entre as rosas, não conseguiu encontrar a caixa e concluiu que o jardineiro devia ter ficado com ela.
Naquela noite, os deliciosos aromas temperados que vinham da sala de jantar não lhe abriram o apetite. O estômago de Felicia estava apertado de tensão ao pensar que teria de encarar Raschid. Sentia como se o menor pedaço de comida pudesse fazê-la se engasgar.
Zahra lhe deu boa noite da maneira calorosa de sempre, sorrindo com aprovação para a maneira com que Felicia se vestira; frescas cores verdes de

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uma primavera inglesa florescendo no deserto.
— Tio Raschid não vai se juntar a nós esta noite, ele está reunido com alguns amigos do trabalho — explicou Zahra quando se sentaram.
Felicia relaxou, aliviada. Então, ao menos um dos desejos dela se tornara realidade. Agora, tudo de que precisava era que sua fada madrinha usasse a varinha de condão mais duas vezes: uma, para trazer Faisal para casa e, outra, para dissipar a antipatia de Raschid.
Mas esses desejos dificilmente seriam realizados se dependesse de Raschid.
— O passeio na cidade a deixou cansada? — perguntou Zahra com solicitude. — Você parece muito pálida.
— Um pouco. — Mas não fora o passeio pelas loas e pela cidade que sugara suas energias; fora a briga com Raschid e os pensamentos perturbadores que ela avivara. Aquela não era a hora de questionar a força dos sentimentos que tinha por Faisal. Mas, por alguma razão, ela achava cada vez mais difícil não comparar Faisal com o tio. Raschid jamais permitiria que alguém ditasse sua forma de vida! Ela estava sendo injusta, lembrou a si mesma. Faisal tinha muito pouca opção quanto a isso. Raschid tinha mais poder!
— Zahra lhe disse que minha filha mais velha e sua família vão nos fazer uma breve visita? — perguntou Umm Faisal, enquanto Selina enchia o prato de Felicia com um saboroso arroz de açafrão.
Felicia abanou a cabeça e olhou questionadoramente para Zahra.
— Sim, é verdade — falou a mulher mais nova.
— Nadia vai se encontrar conosco no oásis. Você vai gostar dela, Felicia. Ela se parece muito com Faisal. — Zahra sorriu compreensivamente quando Felicia ruborizou, o que só fez aumentar seu sentimento de culpa, porque era nas feições sardônicas e sombrias de Raschid que ela vinha pensando, não nas de Faisal.
Felicia praticamente brincava com a comida, enquanto Umm Faisal e Zahra discutiam os arranjos que precisavam ser feitos para a viagem ao oásis. A lem-brança do desprazer daquela tarde estaria destruindo o apetite de Raschid? Uma imagem mental do rosto dela o estaria torturando? De alguma forma, ela du-vidava.
Recusando o café, Felicia pediu licença. Sua desculpa de que estava sentindo dor de cabeça não era totalmente inverídica. O princípio de tensão na sua nuca se espalhara pelas têmporas e ela estava feliz por poder se deitar na cama e deixar a mente vagar à vontade, relaxando com o hipnótico som do ar-

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condicionado e o veludo perfumado da noite oriental.
Uma batida na porta fez com que ela se erguesse e se sentasse, sorrindo de modo tranqüilizador para Selina quando ela colocou a cabeça pela porta entreaberta.
— A sitt está sendo esperada lá embaixo, no estúdio do sheik Raschid.
A princípio, Felicia pensou que a garota estivesse enganada e, sabendo que o inglês dela não era sempre confiável, abanou a cabeça com gentileza.
— O sheik Raschid está com amigos, Selina, acho que não quer que eu o atrapalhe.
— Os amigos foram embora — respondeu Selina com firmeza. — O sheik está sozinho agora. Não vai atrapalhar.
Era óbvio que ela pretendia esperar e acompanhá-la até lá embaixo, percebeu Felicia, exasperada.
O vestido de Felicia estava ligeiramente amassado no local onde ela estivera deitada, mas não havia tempo para se preocupar com isso, nem para passar uma escova em seus cachos assanhados e desejar que o cansaço não desse ao seu rosto um ar de macia vulnerabilidade. 
O que Raschid queria? Mais uma vez demonstrar sua desaprovação? Ela hesitou e Selina fez uma pausa interrogativa no final da escada. Dando-se uma chacoalhada mental, Felicia a seguiu. Afinal de contas, o que Raschid poderia fazer? Matá-la?
Chegava-se aos aposentos de Raschid através de um corredor que os ligava aos aposentos do harém.
Eles tinham suas próprias entradas particulares e um largo corredor quadrado, com macios tapetes persas e uma arca intricadamente talhada com reforços de latão, cheia de antigüidades. Velhas lâmpadas a óleo lançavam um leve brilho sobre o chão bem-polido.
Havia riqueza e simplicidade ali, as duas se misturando harmoniosamente para passar um sentimento de serenidade eterna, que tinha o efeito imediato de acalmar-lhe os nervos excitados. As janelas estreitas e altas estavam abertas para a noite e o cheiro plácido dos limoeiros subia com o pôr do sol.
— Este é o estúdio do sheik, sitt — disse Selina respeitosamente, levando-a até uma porta de madeira com guarnições de ferro. Felicia lhe abriu um sorriso murcho, incerta quanto a entrar diretamente ou bater na porta. A decisão foi tomada por ela quando a porta se abriu abruptamente.
A meia-luz, Raschid parecia imenso, e Felicia reprimiu um arfar. Ela jamais o teria reconhecido. Ele estava usando uma dishdasha, a tradicional túnica

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esvoaçante dos kuwaitianos, os panos de sua cabeça escondiam o cabelo negro como a noite, um manto negro bordado com fios de ouro caía casualmente sobre seus largos ombros.
— Qual o problema, srta. Gordon? — perguntou ele educadamente, enquanto a levava para dentro do aposento.
— Na-nada — gaguejou Felicia, mas os olhos permaneceram grudados à bela figura inegavelmente impressionante que ele fazia, destacada contra as paredes totalmente brancas.
— Quando lido com meus compatriotas, acho melhor usar as roupas tradicionais de nosso país. Para falar a verdade, a dishdasha é muito mais confortável que as roupas em estilo ocidental.
— E muito mais impressionante. — Ela quase mordeu a língua quando ele se virou e olhou-a friamente. Uma comichão passou por sua pele e ela tremeu levemente, apesar de a noite estar quente.
— E o que, me pergunto, quer dizer esse comentário? Que você me acha um tolo, encenando um papel no teatro?
A raiva sublinhou as palavras frias. Horrorizada, Felicia gaguejou uma negativa. Nenhum europeu podia jamais usar a vestimenta esvoaçante com a mesma graça do árabe, e a surpresa dela nasceu meramente do fato de que aquela era a primeira vez que via Raschid vestido da maneira tradicional. Embora jamais fosse admitir, quando ele abriu a porta, por um momento encarnou cada um dos sonhos de adolescência de Felicia.
E agora, para coroar todas as suas outras bobagens, ela ofendera o orgulho de Raschid, tocando no ponto mais sensível da personalidade dele. Felicia mordeu o lábio, desejando que os dois estivessem de bem para que pudesse explicar que ele entendera errado.
— Que foi? Não vai dizer nada em sua defesa? — perguntou Raschid, severo, surpreendendo-a com a raiva pura que ela sentia por baixo das palavras dele. Raschid se movia com a discrição da raposa do deserto, vindo para o lado dela e lhe girando o rosto para que o encarasse.
Felicia umedeceu os lábios, molhando-os com uma língua nervosa. O movimento instantaneamente se paralisou quando o olhar de Raschid pousou sobre o gesto denunciador.
— Por que você mandou me chamar?
Ele a soltou e Felicia pôde sentir cada centímetro de seu corpo tremendo de alívio quando a tensão diminuiu.
— Só para lhe dar isso — respondeu ele, entregando-lhe um envelope com

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um selo do correio aéreo.
O coração dela deu um salto. Era de Faisal, só podia ser! Com dedos ansiosos, Felicia buscou o envelope e sua mão roçou na de Raschid. Foi como receber uma descarga elétrica. Ela recuou, recolhendo-se com o contato, o rosto pálido ao pegar a carta.
— Pode parar com a encenação, srta. Gordon — ironizou Raschid. — O teste acabou. Você tem sua carta, a qual pode levar para sua cama solitária para lê-la e talvez se lembrar das noites que passou nos braços do meu sobrinho. Faisal não desconhece os prazeres da carne, mas, bom, eu não preciso lhe lembrar disso, não é?
— Não, não precisa — concordou Felicia, reprimindo a negação instintiva das acusações dele. Por algum motivo, permitir que Raschid acreditasse que ela e Faisal eram amantes a fazia se sentir mais segura, embora não soubesse dizer por quê.
Ela viu o rosto dele ficar sombrio e se enrijecer de raiva e desprezo. Não havia dúvida de que acabara de confirmar a primeira impressão que Raschid tive-ra dela, mas Felicia não estava mais preocupada cora isso. Secretamente, nos recônditos escondidos de seu coração, ela começava a duvidar de sua capacidade de fazer Faisal feliz, mas seu orgulho não permitia que admitisse a descoberta para Raschid. Que ele soubesse disso quando ela estivesse segura na Inglaterra, longe daqueles desdenhosos olhos cinza.
Quando chegou a seu quarto, Felicia tremia com Um misto de raiva e dor. Febril, abriu o envelope de Faisal, tirando a carta com o coração acelerado. Acha-ria ali a segurança de que tanto precisava? As palavras de amor escritas por Faisal para ela baniriam todas as suas dúvidas?
A carta era depressivamente curta, apenas pouco mais que algumas linhas garranchadas, sem nada da segurança gentil que ela esperava. Na verdade, Felicia percebeu ao ler a carta pela segunda vez, Faisal também podia estar tendo dúvidas. Ele escrevera mais para uma amiga do que para uma amante. As frases eram artificiais e cautelosas. Uma delas saltou aos olhos de Felicia.
"Nova York é mais divertida do que eu pensava..."
Com o coração apertado, Felicia se lembrou do que Raschid lhe dissera sobre a propensão de Faisal a se apaixonar e se desapaixonar. Naquela época, pensou que ele estava apenas tentando irritá-la, mas já não tinha tanta certeza. A carta de Faisal não era a de um homem profundamente apaixonado e comprometido com o amor. Agora, quando era tarde demais, Felicia desejava enormemente não ter se deixado persuadir a ir ao Kuwait. E, pior ainda, a gastar as economias que reunira com tanta dificuldade. Com um sentimento de

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desespero profundo, ela reconhecia que, se fosse possível, iria diretamente para o aeroporto no dia seguinte pela manhã, logo cedo, e pegaria um voo para casa.
Felicia pensou até mesmo na idéia de contatar Raschid e pedir ajuda para pagar a passagem, mas sabia que não podia fazer isso. Parecia irônico que a pessoa que mais estaria interessada em financiar o retorno dela para a Inglaterra fosse o homem a quem ela jamais pediria isso.
Não, ainda que fosse desprazeroso, tinha que escrever para Faisal e acertar as coisas. Quando ele soubesse que ela não esperava mais se tornar sua esposa, ficaria feliz em pagar pela passagem, pensou ironicamente.
Ao desligar a luz e entrar debaixo das cobertas, Felicia se perguntou por que motivo a descoberta de que Faisal não a amava mais a afetava tão pouco. Menos de uma semana atrás, ele era o mundo para ela; agora, tudo o que queria era voltar para casa. E, no entanto, sentiria falta daquela terra, admitia Felicia. Apesar das diferenças, o Kuwait tocara seu coração. E Felicia sentia que se disporia a morar ali se o amor dela por Faisal fosse forte o suficiente.
. O último pensamento que teve antes de dormir foi o de que ao menos ela estava tendo, em certa medida, a sua revanche contra Raschid. Enquanto dormiria sabendo que ela e Faisal nunca se casariam, Raschid estava provavelmente acordado, pensando em maneiras de separá-los. Por estranho que parecesse, o pensamento lhe trouxe um pouco de conforto.

Embora não tenha sentido nenhuma culpa ao enganar Raschid, era bem mais difícil ter de fingir para Zahra. Ela gostaria de ter a garota como cunhada, percebia Felicia, enquanto Zahra guiava o caminho para o local onde tomariam o café da manhã, saltitante e contente. 
— Olhe o que Raschid me deu como presente antecipado de aniversário! — exclamou ela, fazendo um cheque dançar em frente aos olhos divertidos de Felicia e olhando alegremente para a quantia, falando com entusiasmo em como pretendia gastá-la.
— Há uma loja no Kuwait que vende as lingeries mais lindas! — Ela revirou os olhos dramaticamente. — Que tal irmos até lá hoje à tarde?
Felicia não teve coragem de se recusar, e o abraço agradecido de Zahra quando ela fez que sim com a cabeça foi mais do que recompensador.
Ali as levou até a Cidade do Kuwait, deixando-as na região da rua Fahd Salim, aonde Raschid a levara no dia anterior.
Como Felicia já esperava, Zahra tendia a olhar as vitrines das joalherias.
— Aquelas pérolas vêm do golfo — disse ela para uma interessada Felicia.

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— Até a descoberta de petróleo, as pérolas eram a maior fonte de riqueza do Kuwait.
Ali permanecia protetoramente atrás delas, lembrando-lhes que não tinham ido àquele lugar para trocar olhares. Como antes, Felicia ficou impressionada com a bela rua, cheia de árvores e flores.
— Nosso governo está gastando muito dinheiro com sistemas de irrigação e usinas de dessalinização — disse Zahra para ela. — Nos mercados, você vai encontrar todos os tipos de frutas e verduras vindas de fazendas especialmente desenvolvidas. O sol, que antes era nosso maior inimigo, está sendo utilizado para providenciar a energia necessária para fazer crescer as plantações. Saud está estudando agricultura na universidade — acrescentou ela como para explicar de onde vinha seu conhecimento. — A família dele tem terras perto das nossas no oásis, e ele e Raschid estão pensando em desenvolver uma plantação de frutas por lá. — Ela fez uma careta irônica. — Não tenho certeza do que ele gosta mais: de mim ou das preciosas estufas dele. — Ela tocou o braço de Felicia e apontou para uma das lojas. — Por aqui. Ali vai esperar do lado de fora por nós.
A loja era pequena, não mais que uma butique, na verdade, as paredes mostravam painéis de seda verde-claro, pequenas cadeiras cobertas com o mesmo tecido sobre um tapete creme de fibras longas. Não havia pretensões orientais ali. A butique poderia ficar em qualquer local caro do Ocidente.
Uma maravilhosa seleção de calcinhas e sutiãs de cetim e renda foi mostrada para que Zahra escolhesse e, quando Felicia viu uma camisola de cetim cor de pêssego, elaboradamente ornada com renda cor de café na barra, pensou com inveja nas vantagens de ter um tio rico e generoso. Não que ela quisesse que Raschid pagasse por suas coisas. O pensamento a fez ficar quente e gelada ao mesmo tempo, e o cetim cor de pêssego caiu de seus dedos.
— Você está sentindo alguma coisa?
— Por quê? Ah, não, nada. Acho que você devia comprar a cor de pêssego, Zahra, e a azul-claro e o roupão.
— E essa aqui?
Felicia examinou a camisola. Era uma delicada mistura de verde da cor do mar e jade, com um brilho sedoso do mais diáfano chiffon.
— É maravilhoso — admitiu Felicia.
— E muito adequado para uma noiva — falou a vendedora.
— Você gostaria de ter algo assim para o seu casamento? — perguntou Zahra, deixando Felicia envergonhada. Ela fechou os olhos para evitar se imaginar envolvida no tecido macio, nos braços de... Não nos braços de Faisal, isso

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era certo, disse a si mesma, abanando a cabeça e entregando a camisola de volta para Zahra.
Ali ainda estava esperando pacientemente do lado de fora e algo na maneira como seus ombros estavam derreados sugeria que elas tinham passado muito tempo dentro da loja.
— Quer algo mais? — perguntou ela a Zahra, que abanou a cabeça.
Elas estavam cruzando a calçada quando Felicia viu uma figura vindo na direção delas. Seu coração parou e depois saltou apressado, batendo contra as costelas.
— Aquele não é Raschid? — perguntou ela para Zahra, surpresa quando a garota mais jovem apertou os lábios e imediatamente se virou na direção oposta. — Qual é o problema?
— Você não viu aquela mulher com ele? — falou baixinho Zahra.
Felicia tinha visto. A mulher era alta e morena e estava vestida com muita elegância, envolta em uma aura de riqueza. Felicia supôs que tivesse cerca de 30 anos de idade.
— Deve ser a amante dele — concluiu Zahra. — Não deve ser mulher de boa família ou não estaria andando abertamente nas ruas com ele.
Então Raschid tinha uma amante! Por que Felicia se surpreendia? Ela já sabia da potência masculina dele. Com certeza não deveria se surpreender com o fato de haver outra mulher em sua vida, além da irmã e da sobrinha. Então, por que as pernas dela se transformaram de repente em gelatina trêmula e seu estômago revirava em protesto? Quanta hipocrisia!  O ressentimento aumentou as chamas da raiva dela. Como Raschid ousava pisoteá-la e tentar fazer dela alguém vil quando era inocente de todas as acusações dele, enquanto ele passeava com a amante pelas ruas?
De repente, sentiu vontade de confrontá-lo, de sorrir com sarcasmo e desprezo para ele como ele fizera com ela. Quando hesitou, Zahra lhe pegou a mão, abanando a cabeça.
— Raschid ficaria envergonhado se nos visse. E não poderia falar conosco enquanto estivesse com ela.
Envergonhado? Raschid?
Interpretando corretamente a expressão dela, Zahra acrescentou com seriedade:
— Ele ficaria envergonhado, e eu, também. Claro que um homem solteiro tem certas... necessidades, mas... — Ela deu de ombros, compreensiva, tentando demonstrar a impossibilidade de apresentar as mulheres que serviam para

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aquelas "necessidades" às mulheres protegidas da família dele. Felicia olhou para a frente sem ver nada. Era isso o que Raschid pensava dela? Como uma mulher que servia às "necessidades" de seu sobrinho? Vergonha e raiva a queimaram por dentro e os dedos de Felicia se transformaram em dois punhos fechados.
— O que há de errado? — perguntou Zahra. — Você parece tão brava.
— Ah, não é nada. — Mas ela sabia que estava mentindo. Uma estranha dor se alojou na região do coração, mas Felicia logo a ignorou. Por que se preocuparia com o fato de Raschid estar passeando com alguma beldade morena, o cabelo negro inclinado para ela num gesto de protetora atenção? Ela não tinha necessidade da proteção nem da atenção dele. Como poderia, quando tudo o que havia entre eles era uma antipatia mútua?

Na volta para casa, Zahra inspecionou todas as compras de novo, embora Felicia se surpreendesse quando ela não desdobrou a camisola de chiffon verde. Talvez estivesse com medo de amassá-la, concluiu. Juntas, analisaram a roupa de cetim cor de pêssego, enquanto Felicia a colocava sobre o corpo de Zahra.
— Duvido que Saud vá gastar tempo olhando para qualquer coisa que não seja você — provocou ela. — Qual dos dois você vai usar em sua noite de núpcias?
— Nenhum dos dois — respondeu Zahra, séria. — Nosso casamento será completamente tradicional. É o que eu e Saud queremos. Devo me vestir com o cafetã nupcial, com seus 101 botões na frente. E, ao redor do pescoço, vou usar colares de ouro dados a mim por minha família e pela de Saud. — Como Felicia ainda parecesse confusa, ela explicou: — O noivo retira os colares um a um enquanto a noiva conserva um silêncio modesto. Então, ele desfaz os botões, olhando para a barra da roupa. — Zahra ruborizou um pouco. — Você deve achar estranho, talvez, que eu queria me casar desse jeito, mas...
— Não é mais estranho do que o uso do vestido branco no Ocidente — garantiu Felicia. Na verdade, ela ficou com um nó na garganta, mas a imagem que tinha em mente não era nem a de Zahra, nem a de Faisal, mas de outra cabeça masculina de cabelo preto, olhando meticulosamente para os pequenos botões.
Os dedos delgados abrindo as muitas amarras com facilidade. Um calafrio profundo passou por ela e seu peito se encheu de diferentes sensações. Santo Deus, o que ela estava pensando? Imaginando Raschid ajoelhado aos pés da noiva, com a expressão geralmente sardônica substituída por uma de profundo desejo. O que estava acontecendo com ela? Felicia se sentiu enjoada e tonta, e teve de se sentar numa cadeira para tentar voltar ao normal. Se ela pudesse ir para casa... Se tivesse descoberto que gratidão não é nem nunca será amor antes de ter ido para o Kuwait... Se não tivesse deixado a Inglaterra, jamais teria

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descoberto ser possível corresponder à masculinidade potente de um homem sem ao menos gostar dele. Nem que uma pessoa podia saber tudo a seu respeito e, ao mesmo tempo, não saber nada. A boca de Felicia ficou seca, a estranha dor no peito parecia crescer a cada respiração.
— Faisal disse quando viria para casa? — perguntou inocentemente Zahra. — No ano passado, ele veio de Londres só para me dar o presente de aniversário. Raschid foi quem arranjou tudo. — O rosto dela ficou leve. — Talvez faça a mesma coisa este ano.
Felicia balançou a cabeça negativamente. Não havia sentido em dar esperanças à garota.
— Acho que não.
— Raschid talvez pudesse fazer alguma coisa se você fosse até ele e lhe dissesse o quanto está sentindo falta de Faisal. Por que você não faz isso, Felicia? Você deve estar morrendo de saudades dele.
Ela estava. Mas não pelas razões que Zahra supunha. Se Faisal voltasse, Felicia podia pedir ajuda a ele para voltar para casa. Mas, claro, não podia dizer aquilo para Zahra. Graças a Deus não deixara Faisal convencê-la a usar a aliança que comprara para ela. 
— Tenho certeza de que você poderia convencer Raschid — continuou Zahra. — Ele não é um monstro, sabe?
— Não foi a impressão que tive hoje à tarde — lembrou Felicia com secura, recordando o desejo da garota de não ser vista.
— Isso é diferente — respondeu prontamente Zahra. — Minha mãe se preocupa, porque Raschid não se casa. A responsabilidade de cuidar dela e de nós o envelheceu, eu acho, embora ele nunca nos deixe perceber isso. Talvez, quando eu me casar, ele procure uma esposa, embora não seja fácil. Minha mãe tem medo de que o sangue inglês dele faça com que não tenha paciência para com as nossas mulheres. — Ela olhou pensativa para Felicia. — Faisal deve ter lhe dito como a avó de Raschid se parecia com você. Acho que ele seria capaz de mandá-la para cá com a intenção declarada de provocar Raschid. Quando éramos pequenos, me lembro de nosso pai dizer que Raschid, quando criança, era fascinado pelo retrato da avó. Acho que ele tem uma queda por você, Felicia, embora esconda isso.
Uma queda por ela! Felicia quase disse o quanto Zahra estava errada e por quê. Então Zahra pensava que o motivo de Faisal tê-la mandado para o Kuwait talvez não fosse inteiramente altruísta? Felicia suspeitava de que ela talvez estivesse certa. Era claro ter havido divergências entre Faisal e Raschid no passado. E ela se perguntava se Faisal não anunciara o "noivado" deles a Raschid

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para tentar aborrecê-lo. Não era agradável pensar que ela talvez tivesse sido usada. Felicia estava começando a aceitar que Faisal não era o jovem adorável que parecia ser na superfície.

Mais uma vez Raschid não se juntou a elas para jantar e, quando Umm Faisal explicou que ele jantaria com amigos, Felicia sorriu para si mesma. Amigos ou amiga? Ela estava cansada e pediu licença, subindo para o quarto.
A cada dia a temperatura parecia subir um pouco mais, e Felicia acabou se acostumando ao céu sem nuvens; o muezim não era mais um som desconhecido, mas parte do dia a dia. Estava começando a amar aquele país de grandes contrastes, admitia, e sentiria falta dele quando o deixasse. Ainda não escrevera para Faisal, e sabia que era uma tarefa que devia realizar, mas seu orgulho se feria por ter que lhe pedir ajuda.
Sensível à opinião dos outros, Felicia lutava contra a idéia de que Faisal pudesse pensar que ela esperava que ele pagasse a passagem de volta. E, no entanto, que alternativa lhe restava?
O perfume das rosas a atingiu através da janela do quarto. Jogando um xale de crochê sobre os ombros, ela desceu as escadas, seguiu pelo corredor silencioso e foi até a frescura do jardim. Eles eram particularmente atraentes, aqueles pátios internos com as fontes e as árvores frondosas. O cheiro forte dos limoeiros se misturava com a fragrância das rosas. Pombos arrulhavam suavemente no pombal, perto da fonte. Ela passou os dedos pela água, observando os peixes se afastarem. Com a lua cheia, o jardim estava bastante claro, a paisagem marcada por pontos cinza e pretos.
Felicia suspirou e ficou paralisada ao ouvir o som de passos sobre gravetos.
— Desejando que houvesse alguém para compartilhar dos encantos de nossas noites com você, srta. Gordon?
Raschid! A mão dela subiu para a garganta para Conter a pulsação, que se mostrava frenética ali. Ele estava vestido em roupas árabes de novo, uma bota de couro descansando arrogantemente na borda da fonte enquanto a observava. Felicia lhe devolveu uma resposta ácida, escondendo seu medo.
— Para falar a verdade, estava — mentiu ela, as mãos fechadas e impotentes ao lado do corpo, enquanto o olhar frio dele passeava por seu rosto pequeno e ruborizado, parando momentaneamente sobre o sobe-e-desce dos seios, depois na cintura fina e nas curvas estreitas de seus quadris. Por alguma razão, tornara-se extremamente importante esconder de Raschid a verdade quanto a seus sentimentos por Faisal.

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As sobrancelhas dele se levantaram e, mais uma vez, ela escondeu a raiva que clamava por se expressar. Tudo o que seus sentidos queriam era que ela fugisse, mas ela não permitiria que ele visse seu medo.
— Acho que você quer que eu faça com que Faisal volte para casa. Zahra solicitou minha permissão em seu nome. O coração gentil dela se parte com o que ela imagina ser a trágica separação de dois amantes unidos pelo destino. Naturalmente, tive de explicar a ela que isso era uma mera fantasia romântica.
Esquecendo as próprias dúvidas quanto a seus sentimentos por Faisal, Felicia olhou para Raschid, olhos em brasa.
— Como? Dando a sua interpretação de nosso relacionamento?
— Ora, vamos — ironizou ele suavemente —, para que toda essa indignação virginal? Você não se opôs naquela noite, quando afirmei que você e Faisal já ha-viam experimentado os deleites que Zahra apenas antecipa. Você esquece que morei em seu país. Sei com que desprezo as mulheres de lá vêem a modéstia e a inocência.
— Coisa que, claro, uma mulher de sua raça jamais faria!
— O que quer dizer com isso? Posso tentar adivinhar? Se está se referindo à minha acompanhante de hoje à tarde... ah, sim, sei que vocês me viram, o cabelo da senhorita pode ser reconhecido instantaneamente... ela não finge ser o que não é.
Os lábios de Felicia se curvaram numa fiel imitação do sarcasmo dele.
— Ao contrário de você! Devo admitir que você me surpreende. Você não parece ser do tipo de homem que precisa comprar os favores de uma mulher, mas suponho que, como tudo o que pode oferecer é uma gratificação física, tem que dourar a pílula de alguma maneira.
A frase incrédula dele: "Ora, sua...", fez com que Felicia percebesse ter tocado em um ponto fraco. Mas, ao lado de uma trêmula satisfação, tinha certeza de que Raschid revidaria aquele momento de vitória. O troco veio antes do que imaginava. 
— Procurei você porque Zahra estava preocupada. Ela me disse que você está cada vez mais pálida e que não come. E ela atribui isso ao fato de estar sentindo saudades de Faisal. Eu sei que não, e não serei enganado por sua encenação. Não vou permitir o retorno de Faisal agora para ser enganado por você de novo. No entanto, não podemos fazê-la sofrer por falta de amor — falou ele, delicado. — E sorte que a janela de Zahra não fique de frente para este pátio. Ela talvez não aprovasse os métodos que emprego para aliviar sua necessidade de Faisal.


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condicionado e o veludo perfumado da noite oriental.
Uma batida na porta fez com que ela se erguesse e se sentasse, sorrindo de modo tranqüilizador para Selina quando ela colocou a cabeça pela porta entreaberta.
— A sitt está sendo esperada lá embaixo, no estúdio do sheik Raschid.
A princípio, Felicia pensou que a garota estivesse enganada e, sabendo que o inglês dela não era sempre confiável, abanou a cabeça com gentileza.
— O sheik Raschid está com amigos, Selina, acho que não quer que eu o atrapalhe.
— Os amigos foram embora — respondeu Selina com firmeza. — O sheik está sozinho agora. Não vai atrapalhar.
Era óbvio que ela pretendia esperar e acompanhá-la até lá embaixo, percebeu Felicia, exasperada.
O vestido de Felicia estava ligeiramente amassado no local onde ela estivera deitada, mas não havia tempo para se preocupar com isso, nem para passar uma escova em seus cachos assanhados e desejar que o cansaço não desse ao seu rosto um ar de macia vulnerabilidade. 
O que Raschid queria? Mais uma vez demonstrar sua desaprovação? Ela hesitou e Selina fez uma pausa interrogativa no final da escada. Dando-se uma chacoalhada mental, Felicia a seguiu. Afinal de contas, o que Raschid poderia fazer? Matá-la?
Chegava-se aos aposentos de Raschid através de um corredor que os ligava aos aposentos do harém.
Eles tinham suas próprias entradas particulares e um largo corredor quadrado, com macios tapetes persas e uma arca intricadamente talhada com reforços de latão, cheia de antigüidades. Velhas lâmpadas a óleo lançavam um leve brilho sobre o chão bem-polido.
Havia riqueza e simplicidade ali, as duas se misturando harmoniosamente para passar um sentimento de serenidade eterna, que tinha o efeito imediato de acalmar-lhe os nervos excitados. As janelas estreitas e altas estavam abertas para a noite e o cheiro plácido dos limoeiros subia com o pôr do sol.
— Este é o estúdio do sheik, sitt — disse Selina respeitosamente, levando-a até uma porta de madeira com guarnições de ferro. Felicia lhe abriu um sorriso murcho, incerta quanto a entrar diretamente ou bater na porta. A decisão foi tomada por ela quando a porta se abriu abruptamente.
A meia-luz, Raschid parecia imenso, e Felicia reprimiu um arfar. Ela jamais o teria reconhecido. Ele estava usando uma dishdasha, a tradicional túnica

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esvoaçante dos kuwaitianos, os panos de sua cabeça escondiam o cabelo negro como a noite, um manto negro bordado com fios de ouro caía casualmente sobre seus largos ombros.
— Qual o problema, srta. Gordon? — perguntou ele educadamente, enquanto a levava para dentro do aposento.
— Na-nada — gaguejou Felicia, mas os olhos permaneceram grudados à bela figura inegavelmente impressionante que ele fazia, destacada contra as paredes totalmente brancas.
— Quando lido com meus compatriotas, acho melhor usar as roupas tradicionais de nosso país. Para falar a verdade, a dishdasha é muito mais confortável que as roupas em estilo ocidental.
— E muito mais impressionante. — Ela quase mordeu a língua quando ele se virou e olhou-a friamente. Uma comichão passou por sua pele e ela tremeu levemente, apesar de a noite estar quente.
— E o que, me pergunto, quer dizer esse comentário? Que você me acha um tolo, encenando um papel no teatro?
A raiva sublinhou as palavras frias. Horrorizada, Felicia gaguejou uma negativa. Nenhum europeu podia jamais usar a vestimenta esvoaçante com a mesma graça do árabe, e a surpresa dela nasceu meramente do fato de que aquela era a primeira vez que via Raschid vestido da maneira tradicional. Embora jamais fosse admitir, quando ele abriu a porta, por um momento encarnou cada um dos sonhos de adolescência de Felicia.
E agora, para coroar todas as suas outras bobagens, ela ofendera o orgulho de Raschid, tocando no ponto mais sensível da personalidade dele. Felicia mordeu o lábio, desejando que os dois estivessem de bem para que pudesse explicar que ele entendera errado.
— Que foi? Não vai dizer nada em sua defesa? — perguntou Raschid, severo, surpreendendo-a com a raiva pura que ela sentia por baixo das palavras dele. Raschid se movia com a discrição da raposa do deserto, vindo para o lado dela e lhe girando o rosto para que o encarasse.
Felicia umedeceu os lábios, molhando-os com uma língua nervosa. O movimento instantaneamente se paralisou quando o olhar de Raschid pousou sobre o gesto denunciador.
— Por que você mandou me chamar?
Ele a soltou e Felicia pôde sentir cada centímetro de seu corpo tremendo de alívio quando a tensão diminuiu.
— Só para lhe dar isso — respondeu ele, entregando-lhe um envelope com

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um selo do correio aéreo.
O coração dela deu um salto. Era de Faisal, só podia ser! Com dedos ansiosos, Felicia buscou o envelope e sua mão roçou na de Raschid. Foi como receber uma descarga elétrica. Ela recuou, recolhendo-se com o contato, o rosto pálido ao pegar a carta.
— Pode parar com a encenação, srta. Gordon — ironizou Raschid. — O teste acabou. Você tem sua carta, a qual pode levar para sua cama solitária para lê-la e talvez se lembrar das noites que passou nos braços do meu sobrinho. Faisal não desconhece os prazeres da carne, mas, bom, eu não preciso lhe lembrar disso, não é?
— Não, não precisa — concordou Felicia, reprimindo a negação instintiva das acusações dele. Por algum motivo, permitir que Raschid acreditasse que ela e Faisal eram amantes a fazia se sentir mais segura, embora não soubesse dizer por quê.
Ela viu o rosto dele ficar sombrio e se enrijecer de raiva e desprezo. Não havia dúvida de que acabara de confirmar a primeira impressão que Raschid tive-ra dela, mas Felicia não estava mais preocupada cora isso. Secretamente, nos recônditos escondidos de seu coração, ela começava a duvidar de sua capacidade de fazer Faisal feliz, mas seu orgulho não permitia que admitisse a descoberta para Raschid. Que ele soubesse disso quando ela estivesse segura na Inglaterra, longe daqueles desdenhosos olhos cinza.
Quando chegou a seu quarto, Felicia tremia com Um misto de raiva e dor. Febril, abriu o envelope de Faisal, tirando a carta com o coração acelerado. Acha-ria ali a segurança de que tanto precisava? As palavras de amor escritas por Faisal para ela baniriam todas as suas dúvidas?
A carta era depressivamente curta, apenas pouco mais que algumas linhas garranchadas, sem nada da segurança gentil que ela esperava. Na verdade, Felicia percebeu ao ler a carta pela segunda vez, Faisal também podia estar tendo dúvidas. Ele escrevera mais para uma amiga do que para uma amante. As frases eram artificiais e cautelosas. Uma delas saltou aos olhos de Felicia.
"Nova York é mais divertida do que eu pensava..."
Com o coração apertado, Felicia se lembrou do que Raschid lhe dissera sobre a propensão de Faisal a se apaixonar e se desapaixonar. Naquela época, pensou que ele estava apenas tentando irritá-la, mas já não tinha tanta certeza. A carta de Faisal não era a de um homem profundamente apaixonado e comprometido com o amor. Agora, quando era tarde demais, Felicia desejava enormemente não ter se deixado persuadir a ir ao Kuwait. E, pior ainda, a gastar as economias que reunira com tanta dificuldade. Com um sentimento de

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desespero profundo, ela reconhecia que, se fosse possível, iria diretamente para o aeroporto no dia seguinte pela manhã, logo cedo, e pegaria um voo para casa.
Felicia pensou até mesmo na idéia de contatar Raschid e pedir ajuda para pagar a passagem, mas sabia que não podia fazer isso. Parecia irônico que a pessoa que mais estaria interessada em financiar o retorno dela para a Inglaterra fosse o homem a quem ela jamais pediria isso.
Não, ainda que fosse desprazeroso, tinha que escrever para Faisal e acertar as coisas. Quando ele soubesse que ela não esperava mais se tornar sua esposa, ficaria feliz em pagar pela passagem, pensou ironicamente.
Ao desligar a luz e entrar debaixo das cobertas, Felicia se perguntou por que motivo a descoberta de que Faisal não a amava mais a afetava tão pouco. Menos de uma semana atrás, ele era o mundo para ela; agora, tudo o que queria era voltar para casa. E, no entanto, sentiria falta daquela terra, admitia Felicia. Apesar das diferenças, o Kuwait tocara seu coração. E Felicia sentia que se disporia a morar ali se o amor dela por Faisal fosse forte o suficiente.
. O último pensamento que teve antes de dormir foi o de que ao menos ela estava tendo, em certa medida, a sua revanche contra Raschid. Enquanto dormiria sabendo que ela e Faisal nunca se casariam, Raschid estava provavelmente acordado, pensando em maneiras de separá-los. Por estranho que parecesse, o pensamento lhe trouxe um pouco de conforto.

Embora não tenha sentido nenhuma culpa ao enganar Raschid, era bem mais difícil ter de fingir para Zahra. Ela gostaria de ter a garota como cunhada, percebia Felicia, enquanto Zahra guiava o caminho para o local onde tomariam o café da manhã, saltitante e contente. 
— Olhe o que Raschid me deu como presente antecipado de aniversário! — exclamou ela, fazendo um cheque dançar em frente aos olhos divertidos de Felicia e olhando alegremente para a quantia, falando com entusiasmo em como pretendia gastá-la.
— Há uma loja no Kuwait que vende as lingeries mais lindas! — Ela revirou os olhos dramaticamente. — Que tal irmos até lá hoje à tarde?
Felicia não teve coragem de se recusar, e o abraço agradecido de Zahra quando ela fez que sim com a cabeça foi mais do que recompensador.
Ali as levou até a Cidade do Kuwait, deixando-as na região da rua Fahd Salim, aonde Raschid a levara no dia anterior.
Como Felicia já esperava, Zahra tendia a olhar as vitrines das joalherias.
— Aquelas pérolas vêm do golfo — disse ela para uma interessada Felicia.

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— Até a descoberta de petróleo, as pérolas eram a maior fonte de riqueza do Kuwait.
Ali permanecia protetoramente atrás delas, lembrando-lhes que não tinham ido àquele lugar para trocar olhares. Como antes, Felicia ficou impressionada com a bela rua, cheia de árvores e flores.
— Nosso governo está gastando muito dinheiro com sistemas de irrigação e usinas de dessalinização — disse Zahra para ela. — Nos mercados, você vai encontrar todos os tipos de frutas e verduras vindas de fazendas especialmente desenvolvidas. O sol, que antes era nosso maior inimigo, está sendo utilizado para providenciar a energia necessária para fazer crescer as plantações. Saud está estudando agricultura na universidade — acrescentou ela como para explicar de onde vinha seu conhecimento. — A família dele tem terras perto das nossas no oásis, e ele e Raschid estão pensando em desenvolver uma plantação de frutas por lá. — Ela fez uma careta irônica. — Não tenho certeza do que ele gosta mais: de mim ou das preciosas estufas dele. — Ela tocou o braço de Felicia e apontou para uma das lojas. — Por aqui. Ali vai esperar do lado de fora por nós.
A loja era pequena, não mais que uma butique, na verdade, as paredes mostravam painéis de seda verde-claro, pequenas cadeiras cobertas com o mesmo tecido sobre um tapete creme de fibras longas. Não havia pretensões orientais ali. A butique poderia ficar em qualquer local caro do Ocidente.
Uma maravilhosa seleção de calcinhas e sutiãs de cetim e renda foi mostrada para que Zahra escolhesse e, quando Felicia viu uma camisola de cetim cor de pêssego, elaboradamente ornada com renda cor de café na barra, pensou com inveja nas vantagens de ter um tio rico e generoso. Não que ela quisesse que Raschid pagasse por suas coisas. O pensamento a fez ficar quente e gelada ao mesmo tempo, e o cetim cor de pêssego caiu de seus dedos.
— Você está sentindo alguma coisa?
— Por quê? Ah, não, nada. Acho que você devia comprar a cor de pêssego, Zahra, e a azul-claro e o roupão.
— E essa aqui?
Felicia examinou a camisola. Era uma delicada mistura de verde da cor do mar e jade, com um brilho sedoso do mais diáfano chiffon.
— É maravilhoso — admitiu Felicia.
— E muito adequado para uma noiva — falou a vendedora.
— Você gostaria de ter algo assim para o seu casamento? — perguntou Zahra, deixando Felicia envergonhada. Ela fechou os olhos para evitar se imaginar envolvida no tecido macio, nos braços de... Não nos braços de Faisal, isso

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era certo, disse a si mesma, abanando a cabeça e entregando a camisola de volta para Zahra.
Ali ainda estava esperando pacientemente do lado de fora e algo na maneira como seus ombros estavam derreados sugeria que elas tinham passado muito tempo dentro da loja.
— Quer algo mais? — perguntou ela a Zahra, que abanou a cabeça.
Elas estavam cruzando a calçada quando Felicia viu uma figura vindo na direção delas. Seu coração parou e depois saltou apressado, batendo contra as costelas.
— Aquele não é Raschid? — perguntou ela para Zahra, surpresa quando a garota mais jovem apertou os lábios e imediatamente se virou na direção oposta. — Qual é o problema?
— Você não viu aquela mulher com ele? — falou baixinho Zahra.
Felicia tinha visto. A mulher era alta e morena e estava vestida com muita elegância, envolta em uma aura de riqueza. Felicia supôs que tivesse cerca de 30 anos de idade.
— Deve ser a amante dele — concluiu Zahra. — Não deve ser mulher de boa família ou não estaria andando abertamente nas ruas com ele.
Então Raschid tinha uma amante! Por que Felicia se surpreendia? Ela já sabia da potência masculina dele. Com certeza não deveria se surpreender com o fato de haver outra mulher em sua vida, além da irmã e da sobrinha. Então, por que as pernas dela se transformaram de repente em gelatina trêmula e seu estômago revirava em protesto? Quanta hipocrisia!  O ressentimento aumentou as chamas da raiva dela. Como Raschid ousava pisoteá-la e tentar fazer dela alguém vil quando era inocente de todas as acusações dele, enquanto ele passeava com a amante pelas ruas?
De repente, sentiu vontade de confrontá-lo, de sorrir com sarcasmo e desprezo para ele como ele fizera com ela. Quando hesitou, Zahra lhe pegou a mão, abanando a cabeça.
— Raschid ficaria envergonhado se nos visse. E não poderia falar conosco enquanto estivesse com ela.
Envergonhado? Raschid?
Interpretando corretamente a expressão dela, Zahra acrescentou com seriedade:
— Ele ficaria envergonhado, e eu, também. Claro que um homem solteiro tem certas... necessidades, mas... — Ela deu de ombros, compreensiva, tentando demonstrar a impossibilidade de apresentar as mulheres que serviam para

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aquelas "necessidades" às mulheres protegidas da família dele. Felicia olhou para a frente sem ver nada. Era isso o que Raschid pensava dela? Como uma mulher que servia às "necessidades" de seu sobrinho? Vergonha e raiva a queimaram por dentro e os dedos de Felicia se transformaram em dois punhos fechados.
— O que há de errado? — perguntou Zahra. — Você parece tão brava.
— Ah, não é nada. — Mas ela sabia que estava mentindo. Uma estranha dor se alojou na região do coração, mas Felicia logo a ignorou. Por que se preocuparia com o fato de Raschid estar passeando com alguma beldade morena, o cabelo negro inclinado para ela num gesto de protetora atenção? Ela não tinha necessidade da proteção nem da atenção dele. Como poderia, quando tudo o que havia entre eles era uma antipatia mútua?

Na volta para casa, Zahra inspecionou todas as compras de novo, embora Felicia se surpreendesse quando ela não desdobrou a camisola de chiffon verde. Talvez estivesse com medo de amassá-la, concluiu. Juntas, analisaram a roupa de cetim cor de pêssego, enquanto Felicia a colocava sobre o corpo de Zahra.
— Duvido que Saud vá gastar tempo olhando para qualquer coisa que não seja você — provocou ela. — Qual dos dois você vai usar em sua noite de núpcias?
— Nenhum dos dois — respondeu Zahra, séria. — Nosso casamento será completamente tradicional. É o que eu e Saud queremos. Devo me vestir com o cafetã nupcial, com seus 101 botões na frente. E, ao redor do pescoço, vou usar colares de ouro dados a mim por minha família e pela de Saud. — Como Felicia ainda parecesse confusa, ela explicou: — O noivo retira os colares um a um enquanto a noiva conserva um silêncio modesto. Então, ele desfaz os botões, olhando para a barra da roupa. — Zahra ruborizou um pouco. — Você deve achar estranho, talvez, que eu queria me casar desse jeito, mas...
— Não é mais estranho do que o uso do vestido branco no Ocidente — garantiu Felicia. Na verdade, ela ficou com um nó na garganta, mas a imagem que tinha em mente não era nem a de Zahra, nem a de Faisal, mas de outra cabeça masculina de cabelo preto, olhando meticulosamente para os pequenos botões.
Os dedos delgados abrindo as muitas amarras com facilidade. Um calafrio profundo passou por ela e seu peito se encheu de diferentes sensações. Santo Deus, o que ela estava pensando? Imaginando Raschid ajoelhado aos pés da noiva, com a expressão geralmente sardônica substituída por uma de profundo desejo. O que estava acontecendo com ela? Felicia se sentiu enjoada e tonta, e teve de se sentar numa cadeira para tentar voltar ao normal. Se ela pudesse ir para casa... Se tivesse descoberto que gratidão não é nem nunca será amor antes de ter ido para o Kuwait... Se não tivesse deixado a Inglaterra, jamais teria

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descoberto ser possível corresponder à masculinidade potente de um homem sem ao menos gostar dele. Nem que uma pessoa podia saber tudo a seu respeito e, ao mesmo tempo, não saber nada. A boca de Felicia ficou seca, a estranha dor no peito parecia crescer a cada respiração.
— Faisal disse quando viria para casa? — perguntou inocentemente Zahra. — No ano passado, ele veio de Londres só para me dar o presente de aniversário. Raschid foi quem arranjou tudo. — O rosto dela ficou leve. — Talvez faça a mesma coisa este ano.
Felicia balançou a cabeça negativamente. Não havia sentido em dar esperanças à garota.
— Acho que não.
— Raschid talvez pudesse fazer alguma coisa se você fosse até ele e lhe dissesse o quanto está sentindo falta de Faisal. Por que você não faz isso, Felicia? Você deve estar morrendo de saudades dele.
Ela estava. Mas não pelas razões que Zahra supunha. Se Faisal voltasse, Felicia podia pedir ajuda a ele para voltar para casa. Mas, claro, não podia dizer aquilo para Zahra. Graças a Deus não deixara Faisal convencê-la a usar a aliança que comprara para ela. 
— Tenho certeza de que você poderia convencer Raschid — continuou Zahra. — Ele não é um monstro, sabe?
— Não foi a impressão que tive hoje à tarde — lembrou Felicia com secura, recordando o desejo da garota de não ser vista.
— Isso é diferente — respondeu prontamente Zahra. — Minha mãe se preocupa, porque Raschid não se casa. A responsabilidade de cuidar dela e de nós o envelheceu, eu acho, embora ele nunca nos deixe perceber isso. Talvez, quando eu me casar, ele procure uma esposa, embora não seja fácil. Minha mãe tem medo de que o sangue inglês dele faça com que não tenha paciência para com as nossas mulheres. — Ela olhou pensativa para Felicia. — Faisal deve ter lhe dito como a avó de Raschid se parecia com você. Acho que ele seria capaz de mandá-la para cá com a intenção declarada de provocar Raschid. Quando éramos pequenos, me lembro de nosso pai dizer que Raschid, quando criança, era fascinado pelo retrato da avó. Acho que ele tem uma queda por você, Felicia, embora esconda isso.
Uma queda por ela! Felicia quase disse o quanto Zahra estava errada e por quê. Então Zahra pensava que o motivo de Faisal tê-la mandado para o Kuwait talvez não fosse inteiramente altruísta? Felicia suspeitava de que ela talvez estivesse certa. Era claro ter havido divergências entre Faisal e Raschid no passado. E ela se perguntava se Faisal não anunciara o "noivado" deles a Raschid

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para tentar aborrecê-lo. Não era agradável pensar que ela talvez tivesse sido usada. Felicia estava começando a aceitar que Faisal não era o jovem adorável que parecia ser na superfície.

Mais uma vez Raschid não se juntou a elas para jantar e, quando Umm Faisal explicou que ele jantaria com amigos, Felicia sorriu para si mesma. Amigos ou amiga? Ela estava cansada e pediu licença, subindo para o quarto.
A cada dia a temperatura parecia subir um pouco mais, e Felicia acabou se acostumando ao céu sem nuvens; o muezim não era mais um som desconhecido, mas parte do dia a dia. Estava começando a amar aquele país de grandes contrastes, admitia, e sentiria falta dele quando o deixasse. Ainda não escrevera para Faisal, e sabia que era uma tarefa que devia realizar, mas seu orgulho se feria por ter que lhe pedir ajuda.
Sensível à opinião dos outros, Felicia lutava contra a idéia de que Faisal pudesse pensar que ela esperava que ele pagasse a passagem de volta. E, no entanto, que alternativa lhe restava?
O perfume das rosas a atingiu através da janela do quarto. Jogando um xale de crochê sobre os ombros, ela desceu as escadas, seguiu pelo corredor silencioso e foi até a frescura do jardim. Eles eram particularmente atraentes, aqueles pátios internos com as fontes e as árvores frondosas. O cheiro forte dos limoeiros se misturava com a fragrância das rosas. Pombos arrulhavam suavemente no pombal, perto da fonte. Ela passou os dedos pela água, observando os peixes se afastarem. Com a lua cheia, o jardim estava bastante claro, a paisagem marcada por pontos cinza e pretos.
Felicia suspirou e ficou paralisada ao ouvir o som de passos sobre gravetos.
— Desejando que houvesse alguém para compartilhar dos encantos de nossas noites com você, srta. Gordon?
Raschid! A mão dela subiu para a garganta para Conter a pulsação, que se mostrava frenética ali. Ele estava vestido em roupas árabes de novo, uma bota de couro descansando arrogantemente na borda da fonte enquanto a observava. Felicia lhe devolveu uma resposta ácida, escondendo seu medo.
— Para falar a verdade, estava — mentiu ela, as mãos fechadas e impotentes ao lado do corpo, enquanto o olhar frio dele passeava por seu rosto pequeno e ruborizado, parando momentaneamente sobre o sobe-e-desce dos seios, depois na cintura fina e nas curvas estreitas de seus quadris. Por alguma razão, tornara-se extremamente importante esconder de Raschid a verdade quanto a seus sentimentos por Faisal.

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As sobrancelhas dele se levantaram e, mais uma vez, ela escondeu a raiva que clamava por se expressar. Tudo o que seus sentidos queriam era que ela fugisse, mas ela não permitiria que ele visse seu medo.
— Acho que você quer que eu faça com que Faisal volte para casa. Zahra solicitou minha permissão em seu nome. O coração gentil dela se parte com o que ela imagina ser a trágica separação de dois amantes unidos pelo destino. Naturalmente, tive de explicar a ela que isso era uma mera fantasia romântica.
Esquecendo as próprias dúvidas quanto a seus sentimentos por Faisal, Felicia olhou para Raschid, olhos em brasa.
— Como? Dando a sua interpretação de nosso relacionamento?
— Ora, vamos — ironizou ele suavemente —, para que toda essa indignação virginal? Você não se opôs naquela noite, quando afirmei que você e Faisal já ha-viam experimentado os deleites que Zahra apenas antecipa. Você esquece que morei em seu país. Sei com que desprezo as mulheres de lá vêem a modéstia e a inocência.
— Coisa que, claro, uma mulher de sua raça jamais faria!
— O que quer dizer com isso? Posso tentar adivinhar? Se está se referindo à minha acompanhante de hoje à tarde... ah, sim, sei que vocês me viram, o cabelo da senhorita pode ser reconhecido instantaneamente... ela não finge ser o que não é.
Os lábios de Felicia se curvaram numa fiel imitação do sarcasmo dele.
— Ao contrário de você! Devo admitir que você me surpreende. Você não parece ser do tipo de homem que precisa comprar os favores de uma mulher, mas suponho que, como tudo o que pode oferecer é uma gratificação física, tem que dourar a pílula de alguma maneira.
A frase incrédula dele: "Ora, sua...", fez com que Felicia percebesse ter tocado em um ponto fraco. Mas, ao lado de uma trêmula satisfação, tinha certeza de que Raschid revidaria aquele momento de vitória. O troco veio antes do que imaginava. 
— Procurei você porque Zahra estava preocupada. Ela me disse que você está cada vez mais pálida e que não come. E ela atribui isso ao fato de estar sentindo saudades de Faisal. Eu sei que não, e não serei enganado por sua encenação. Não vou permitir o retorno de Faisal agora para ser enganado por você de novo. No entanto, não podemos fazê-la sofrer por falta de amor — falou ele, delicado. — E sorte que a janela de Zahra não fique de frente para este pátio. Ela talvez não aprovasse os métodos que emprego para aliviar sua necessidade de Faisal.

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Zahra não era a única que não aprovava, Felicia pensou, anestesiada, enquanto as mãos dela eram capturadas e firmadas ao lado do corpo e rígidos lábios masculinos pilhavam a trêmula maciez dos lábios dela, que se abriam para dar voz à sua fúria. Ela foi forçada a ir para trás, aprisionada pelo braço de Raschid, o pescoço e a curvílínea maciez dos seios expostos ao escrutínio cruel dele. Os olhos de Raschid brilharam contra a fúria dos dela, recaindo sobre a pulsação frenética da garganta tênue de Felicia antes de se prender na mancha de pele branca revelada pelo decote do vestido de algodão.
— Solte-me! — murmurou ela furiosamente, a boca latejando. — Guarde seus beijos para as mulheres que são obrigadas a suportá-lo em troca de um presente inútil.
Ela escutou o chiar raivoso da respiração dele. Dedos duros apertaram os pulsos de Felicia e a carne dela queimou ao contato da dele.
— Nunca são inúteis, srta. Gordon. Eu garanto isso.
Mas, apesar da fala calma, ela sabia que a raiva dele não estava mais sob controle. Felicia a libertara com suas palavras rápidas. Ela fechou os olhos para evitar que lágrimas, que surgiram de repente, caíssem, enquanto as mãos dele seguravam os quadris dela, forçando-a a se encostar nele. Ela não choraria! Mordeu o lábio. Podia sentir o calor da respiração de Raschid no rosto e se empertigou, querendo que a soltasse.
— Ah, não, srta. Gordon, você não vai escapar tão facilmente desta vez!
Ela podia sentir a força tensa dos músculos do peito de Raschid contra os seios; o leve roçar dos pelos expostos pela gola da túnica, tão másculos e atraentes que ela sentiu o corpo reagir como se houvesse levado um choque, não permitindo que ele visse o quanto era inexperiente. O contato, que obviamente não significava nada para ele, a sufocava com sua intimidade, carne sobre carne. Ela lutava para se soltar, tomada pelo pânico, enquanto os lábios de Raschid subiam por seu pescoço, permanecendo sobre a pele, apreciando-a. Se alguma vez duvidara da habilidade e da experiência dele, não mais faria isso. As carícias de Raschid seriam capazes de derreter o gelo. Mas ela lutava para não ceder, para não admitir a sensação embriagante de desejo crescente, enquanto se intensificava sutilmente o assalto que ele fazia a seus sentidos.
Não havia afeto nem gentileza no toque dele, Felicia sabia disso. Sabia que tudo o que ele oferecia era o vazio do desejo sexual e que, talvez, até isso fosse fingido. Mas não pôde fazer nada quando a outra mão dele desceu de seu ombro, pegando o seio e acariciando as curvas macias.
Ela sentiu medo e indignação. Nem mesmo Faisal a tocara com tanta intimidade, nem de maneira tão íntima, como se seu corpo não tivesse segredos

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nem prazeres desconhecidos, mas apenas a familiaridade do já sabido. Felicia tremeu quando os dedos dele encontraram o mamilo, deixando-o enrijecido de puro desejo, sem exibir pressa nem urgência. A dor e o choque, a traição do próprio corpo, estavam ali para ele perceber com olhos arregalados e músculos tensos.
A satisfação brilhou nos olhos escuros como a noite quando passearam pelo rosto pálido e chocado.
— Bem, agora você faz parte daquelas que conhecem meu condenável toque, srta. Gordon. Embora, ao contrário delas, o seu presente não tenha sido merecido — provocou ele.
Felicia cambaleou quando Raschid a soltou, odiando o sombrio som daquela voz. Viu um pacote na mão dele, envolto em crepe e amarrado com uma fita verde.
— Parece que Zahra comprou um presente para você em meu nome hoje à tarde. Só espero que pense em mim ao vesti-lo.
O pacote foi atirado aos pés dela. Felicia não conseguia falar, olhando para ele com olhos cheios de ódio.
— Apanhe! — ordenou ele, ríspido. — Caso contrário, seria obrigado a entregá-lo de novo, pessoalmente. E, como serão duas entregas, terá de ser pago duas vezes.
— Você não passa de um bárbaro! — disse Felicia, engasgada. — Fui uma idiota em pensar que você podia algum dia entender o que sinto por Faisal... ou qualquer outra emoção humana!
Ela se abaixou, pegou o pacote e fugiu antes que ele pudesse retaliar, amarrotando o papel comas mãos trêmulas. Em seu quarto, o atirou contra a porta do guarda-roupa e o frágil papel se rasgou ao bater no trinco, deixando escapar um pedaço do chiffon verde da cor do mar.
Felicia ficou pálida, olhando para o tecido sedoso. A camisola! Zahra a comprara para ela! Com dinheiro de Raschid! Felicia tremia de desespero. No espelho, podia ver a vermelhidão dos lábios, causada pelos beijos dele. O pescoço e os ombros queimavam com o calor dos experientes beijos de Raschid e os seios estavam em brasa por causa da arrogante segurança de suas carícias. O corpo dela se enrijeceu de ódio.
Como ele ousava tratá-la como uma mulher que tivesse comprado por uma noite? Abafou um soluço violento. Ele a corrompera, pisara em seu orgulho e destruíra o escudo protetor que a envolvia. Jamais Felicia poderia dizer de novo que o desejo não era nada sem o amor, que jamais poderia experimentar o primeiro sem o segundo, porque, por um breve momento, ela conhecera o desejo. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, o que fez com que as lágrimas

quentes escorressem por suas bochechas, os dedos se encostassem furiosamente nas palmas das mãos e ela achasse alguma paz ao imaginar o corpo musculoso de     i Raschid se contorcendo era agonia mortal. 
Quanto à camisola... Felicia olhou desesperada para a frágil peça que cobiçara poucas horas antes. Ela a queimaria antes que pudesse chegar perto de seu corpo!
    

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