4- HÁ 5 ANOS (LIAM)

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Deixar para trás a única família que tive de verdade, me dilacerou, mas seria pior se Anhangá me negasse essa opção. Em pé, padecendo atrás de um ipê-amarelo, assistindo àquela cena, meu coração adormeceu após um simples toque do Deus dos mortos em meu ombro. Já havia concedido que eu a entregasse e chegava a hora de entrar em sua casa. Minhas lágrimas congelaram, mesmo com todo calor de meu corpo. Retirei os pequenos flocos de gelo, presos às minhas pálpebras, com as pontas dos dedos e senti que findava meu momento de despedida.

Não sabia o que esperar, apesar de toda fama que eu adquirira sobre existir algo poderoso em mim, não fazia nenhuma ideia de como usá-lo, por isso, segui apavorado em todo o percurso adentrando as regiões infernais.

O clima de tristeza, dor e angústia tomava conta de todo o lugar, era possível senti-los em forma de cheiro, mas ser recebido por Ticê, com um enorme sorriso, aumentou mais ainda a minha expectativa de eterno sofrimento, eu interpretei aquilo como cinismo, ironia e maldade.

Anhangá me direcionava e apresentava com orgulho todo o submundo. Um reino organizado, afirmava ele, a cada ala que nós entrávamos. E ao chegarmos no setor dos escravos e castigados, ofereci os meus punhos, pois havia uma grande corrente de metal presa a parede de rochas, junto a uma placa onde estava escrito meu nome. E para minha surpresa, Anhangá sorriu e me abraçou. Eu engoli a seco, não entendia o que estava acontecendo e temi que aquele gesto representasse algo pior do que imaginava.

Anhangá começou a me revelar fatos sobre mim que nem a líder Caapora sabia, enquanto observávamos sentados, à beira do precipício, a entrada do calabouço das bestas.

- Como acha que conseguiu sobreviver sendo um recém nascido escondido em uma árvore durante vários dias? - Questionou-me.

- Desconheço a minha infância. - Fiquei curioso pelo seu interesse.

- Eu te conheço desde quando você nasceu.- Desbloqueou seus pensamentos e contou-me meu começo.

Meus pais, quando morreram, atravessaram o submundo para acessar ao portal Hemma, essa é a forma que os deuses chegam ao seu lugar de repouso. Em um breve espaço de tempo, o anfitrião percebeu a dor nos olhos de minha mãe, viu que não estava mais grávida e nem possuía seu filho nos braços. Anhangá sempre se preocupou com os seres da floresta, então não conseguiu ignorar os sentimentos de uma deusa e saiu obstinado a me encontrar.

Ao me ver imóvel, se comoveu e deixou de lado a razão, abrindo mão da metade de seu poder, para trazer um jovem deus de volta a vida. Os meus últimos suspiros, que estavam quase se esvaindo, por terem se mantido atrasados em meus pulmões, foram capazes de confudí-lo, gerando um amor paternal, produzindo um aumento considerável do meu poder.

- Pode-se dizer que você possui três sangues correndo em suas veias. - Seus olhos marejados e o som calmo da sua voz ao me explicar, deixaram-me espantado. - Você é o Deus do vulcão. Só precisa ter cuidado para usar seus poderes da maneira certa. A junção dos três sangues pode tê-lo tornado alguém muito destrutivo.

- Aham... - Fiquei boquiaberto. Olhava em direção ao fundo do calabouço, enquanto gritos tomavam conta do ambiente.

- Só vai dizer isso, " Aham"? - Me fitou e seguiu o meu olhar. - Liam?

- Bom... eu... - Não encontrava palavras. Tudo era muito estranho.

- Está assustado, eu sei. -Interrompeu-me. Me virei para ele, intrigado.

- Bom... estou, mas... - Algo não fazia sentido para mim.

- Mas o que, Liam?

- Você me conta tudo isso, diz que me considera um filho... Então por que fez aquilo? Não poderia ter deixado Maíra viver normalmente desde o início? -Resmunguei. Novos gritos me chamaram atenção e eu me estiquei para olhar. Depois voltei a encará-lo.

- Eu considero você, não ela. -Seu rosto já enrijecia com os meus questionamentos.

- Eu sei, mas eu a amo... - Falei baixo, com a testa franzida.

- E os pais não dão tudo aos filhos. - Respondeu-me, ligeiro. Analisei o seu semblante frio.

- Está bem, prossiga... Então você me trouxe para cá quando criança? Eu não lembro de muitas coisas.

- Eu te entreguei a um pajé, que devia algo a mim. Sua esposa ainda estava amamentando na época e você ficou um tempo com eles. Do que você lembra? -Indagou-me.

- De alguns nativos me chamando de demônio. E deles me culpando de um incêndio. - Esbocei raiva. - Então todos sabiam, menos eu... Me associavam a você. - Cocei a cabeça.

- Você preferia ser morto?- Abriu os braços. Neguei com gesto. - Eles sabiam, sim. Mas o seu nome não veio por minha causa.

- Não considerei um nome... Mas um xingamento.

- Eu sei. Eles te chamavam de Demônio do fogo por causa do incêndio. - Se levantou. E de repente se inclinou e cuspiu em direção ao abismo, logo uma chama vermelha se acendeu, no profundo, e gemidos foram ouvidos. Então sorriu se divertindo.

- Não, o incêndio foi depois. - Continuei após o show de demonstração que fizera para mim. Me ergui.

- Liam, seu primeiro incêndio foi quando bebê. - Me encarava. Eu permaneci calado. - Eu tive que encontrar outro lugar para você ficar.

Eu só não te trouxe para cá, porque Ticê não quis uma criança.

- Então ela é quem manda aqui?- Zombei.

- Assim, como Maíra manda em você. - Debochou.

- Ela não manda em mim. - Retruquei. Ele gargalhou.

- As feiticeiras nos manipulam, Liam. As nossas decisões são sempre para o bem delas.

Depois do estranho momento entre um quase pai e um quase filho, Anhangá me levou à entrada do Portal de Hemma, foi o último lugar que me apresentou. Eu não poderia entrar, pois não teria como sair sem a permissão de Tupã. Era possível eu enxergar, da porta, o que havia dentro, mas ninguém do lado interno, me veria. Eu avistei meu pai e minha mãe, andavam sem preocupação. A luz era muito forte, contrastava com a parte sombria de onde eu estava, dificultava a distinção de suas fisionomias e das características do paraíso, mas eu sabia que eram eles. Senti uma paz e fiquei agradecido por estar no submundo, pelo menos, naquele momento.

Os primeiros anos foram os mais difíceis. Tau e Jurará estavam compenetrados em alcançar os seus objetivos. Nos anos seguintes, soubemos que os dois deuses haviam se desvinculado de Caramuru, pois o Deus do mar, questionava suas decisões e agia por impulso desmerecendo a eles como líderes. Até os monstros, estavam sendo orquestrados pelo dragão marítimo e não agradava nenhum pouco a seu pai, as atitudes de seus filhos. Essa quebra de aliança proporcionou um grupo de ataque mais fraco, estavam abalados, ao contrário de nós e do nosso exército de mortos que treinava diariamente, fortalecendo como barreira contra os deuses perversos. Eu sentia que algo estava errado, eles não correriam o risco de perder um integrante poderoso dessa forma, ainda mais sabendo que éramos três deuses. Eu sei que tinham os monstros, contudo eles não possuíam poderes semelhantes aos nossos, apenas força e às vezes agilidade. Para mim, Caramuru ainda estava no jogo.

Apesar de ser considerado parte da família submundana, eu não queria pertencê-la, pois a sobrecarga dos piores sentimentos da humanidade recaía sobre minhas costas e impregnava a cada dia mais em meu corpo, me moldando e me adestrando como quando um pequeno animal chega em um lar adotivo e se adequa ao ambiente e aos donos. Isso não era bom. Eu precisava partir.

 Eu precisava partir

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DEUSES DA FLORESTA 2 - NA CHAMA DO TEMPOOnde histórias criam vida. Descubra agora