2. Quando o teu dia é um clichê...

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Momentos antes, não muito longe dali, Lúcius estava saindo mais cedo da empresa onde trabalhava, embora a escuridão do lado de fora demonstrasse o contrário, fazendo com que ele olhasse mais uma vez o relógio para certificar-se do horário

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Momentos antes, não muito longe dali, Lúcius estava saindo mais cedo da empresa onde trabalhava, embora a escuridão do lado de fora demonstrasse o contrário, fazendo com que ele olhasse mais uma vez o relógio para certificar-se do horário. Sentia-se nervoso porém pronto e decidido a surpreender Soraia, sua colega de trabalho a quem namorava há dois anos, e dar o próximo passo na relação deles.

Dentro do carro ele coloca a chave na ignição e, antes de girá-la, se recosta em seu assento e tira do bolso interior do paletó um estojinho aveludado abrindo-o e vislumbrando pela enésima vez o par de alianças douradas que ali estava e um sorriso bobo torceu seus lábios por um instante...

- É isso! - disse a si mesmo.

Fecha o estojinho colocando-o de volta no bolso onde estava e então dá a partida indo ao encontro de sua futura noiva. Ele sabia que ela teria um almoço de negócios com a diretoria da empresa naquele dia e assim que terminasse Soraia seria liberada. Certamente ela já estaria em casa quando chegasse lá para surpreendê-la como o planejado.

Ao estacionar em frente à casa de Soraia os primeiros pingos de chuva se pronunciavam caindo sobre o parabrisa. Lúcius respirou fundo tentando amenizar, de alguma forma, seu nervosismo. Ela aceitaria seu pedido de casamento? Era algo que ele estava disposto a arriscar.

Ajeitou o nó da gravata olhando no retrovisor interno, saiu do carro, ajustou o paletó, endireitou a postura com confiança e foi. À medida que se aproximava da entrada mentalizava o que diria ao fazer o pedido e quando chegou diante da porta, antes que seu dedo alcançasse a campainha, ouviu algumas risadas vindas de dentro da casa fazendo com que ele parasse o gesto no meio do caminho e franzisse a testa por um segundo.

Mesmo sentindo algo entre curiosidade e receio deu continuidade ao movimento e pressionou a campainha. As risadas pareceram aumentar de volume, sendo uma delas claramente masculina, quando a voz de Soraia enfim chega aos seus ouvidos.

- Pára, amor!

- "Pára, amor?" - ele repete mentalmente e aperta a campainha novamente. Seu semblante já não é mais o mesmo de antes.

O bramido de um trovão ecoa antecedendo o que, aparentemente, seria um verdadeiro desastre. Não só nos céus haveria uma tempestade.

Entre gargalhadas bastante altas a porta é aberta num rompante um tanto eufórico e naquele momento a imagem com que Lúcius se depara faz seu rosto contorcer-se num misto de dor e decepção. Soraia estava vestida apenas com uma camisa masculina, quase toda desabotoada, cabelo emaranhado, uma marca arroxeada bem aparente no pescoço e um grande detalhe que ele imaginava que jamais conseguiria esquecer: o chefe deles, vestindo só uma cueca samba-canção, a abraçando pelas costas exibindo descaradamente sua larga aliança no anelar da mão esquerda.

- LÚCIUS??? - Ela demonstrava surpresa mas parecia não se preocupar em afastar o homem, ainda envolto em sua cintura, e tampouco ele deu-se ao trabalho de fazer isso - O que tá fazendo aqui?

- O que eu tô fazendo aqui? - ele repete a pergunta ainda sem acreditar naquilo diante de seus olhos - Vim te fazer uma surpresa mas quem foi surpreendido fui eu, né? - Ele olhava de um para o outro ainda chocado com a desfaçatez explícita - Cheguei atrasado pra festinha?

- Lúcius... Eu posso explicar...

- Sério??? Acho que já tá mais do que explicado né, Soraia? - ele encara o chefe de ambos com uma expressão indecifrável - Na verdade muitas coisas se explicam agora... - Lúcius vai se afastando de costas - Foi assim... - Ele apontava para os dois - Que tu conseguiu ser promovida duas vezes em menos de um ano?

- Lúc...

- Quer saber? - ele a interrompe levantando as duas mãos - Não me interessa! Não mais...

Lúcius deu-lhes as costas e saiu com passos firmes e seguros nem se importando com a chuva fina que caía molhando seu paletó. Entrou em seu carro, fechou a porta com força e socou o volante diversas vezes. Seu corpo inteiro tremia numa combinação preocupante de mágoa e fúria quase desmedida.

Ainda com os nervos à flor da pele, ele ligou o carro, acelerou e saiu cantando pneus. Seguiu sem rumo, acelerando cada vez mais, tomado pela raiva e frustração, apertando o volante tão forte que os nós de seus dedos estavam brancos. Ele já não sabia se era a chuva batendo no parabrisa ou as lágrimas que acumulavam-se em seus olhos que dificultavam sua visão.

- TROUXA! TROUXA! TROUXA! - ele urrava - EU IA PEDIR AQUELA SAFADA EM CASAMENTO!!! - Lúcius sentia-se o cara mais idiota do mundo, ele estava inconformado com aquela situação.

Sua indignação era tamanha que nem estava se preocupando com o limite de velocidade, muito menos com as buzinadas que ouvia. A ponto de cometer uma insensatez a qualquer momento, ele berrava gesticulando de dentro do carro:

- AHHH... FODA-SE! NÃO TÔ NEM AÍ!

A chuva se intensifica, trovões reverberam pelos ares e, apenas quando ouve um estrondo mais forte, Lúcius parece despertar daquele delírio ensandecido obrigando-se a aliviar o pé do acelerador e seu olhar é atraído para o alto onde viu as faíscas nos fios de alta tensão antes de todas as luzes no entorno se apagarem. Os semáforos desligaram por alguns segundos e logo apenas a luz amarela, de todos eles, começou a piscar.

Sacudiu a cabeça tentando recuperar um pouco da lucidez e assim chegar à uma conclusão:

- Ela não vale tudo isso...

Leva a mão ao bolso do paletó, pega o estojinho com as alianças pela última vez, abre a janela e, olhando para fora, o joga para longe acertando a entrada de um bueiro. Ao voltar seu olhar pra frente mal tem tempo de ver aquela criança atravessando a rua diante dele. Sem conseguir desviar, segurou firme o volante e freou fazendo os pneus deslizarem no asfalto encharcado não sendo possível impedir que o carro a atingisse fazendo-a cair e ficar inconsciente com o impacto no chão.

Antes mesmo de sair do carro, desesperado para socorrê-la, algumas pessoas já se aproximavam em volta dela. Um homem, que veio correndo do ponto de táxi no outro lado da rua, colocou uma mão em seu ombro e segurando o celular com a outra o tranquilizou avisando que já estava ligando para a emergência.

Lúcius agradeceu ao homem e agachou apoiando-se em um dos joelhos e se aproximou do rosto dela.

- É uma mocinha? - Suspirou ele, não era uma criança afinal - Mas... - Olhou com atenção, afastou o capuz que lhe cobria a face e viu que ela estava muito machucada e aquilo, com certeza, não podia ter sido consequência da colisão.

Por um momento Lúcius se permitiu organizar seus pensamentos se dando conta do que poderia ter acontecido se
o estrondo e aquelas faíscas não o tivessem trazido de volta à realidade.

Que merda de dia... Quando tudo indicava que não poderia ficar pior, lá veio o destino esfregar na cara dele que poderia, sim! Não bastava descobrir a traição de sua namorada com seu chefe, tinha que cair um temporal e acontecer um (quase) atropelamento para fechar com chave de ouro. Seria cômico se não fosse trágico, mais clichê impossível!

Até dava a entender que nunca havia lido um livro ou assistido um filme de romance ou uma novela... Por que, raios, não lembrara que sair mais cedo do trabalho para fazer uma surpresa é um dos maiores clichês da história que precede a descoberta de um belo e imenso par de chifres??? Vai ser trouxa assim lá na puta que o pariu!

Ao longe já podia se ouvir o som da sirene da ambulância. Uma senhora havia se aproximado com um guarda-chuva protegendo-os enquanto esperavam e testemunhas comentavam que a moça certamente fora agredida, cada um deles especulava com suas próprias teorias.

Algumas horas intermináveis e uns cafés depois, no Hospital de Pronto Socorro, Lúcius tem sua entrada liberada para ver a tal moça.

* * *

AS GURIAS DA BOATE DOCE DEMÔNIOOnde histórias criam vida. Descubra agora