Capítulo XIII - A Carta Régia

7 1 10
                                    

 
               A subida para Trigendolf foi muito dificultosa, como sempre. Mas foi ainda mais agoniante devido à atmosfera da cidade, que parecia pesada e hostil.

               Atravessaram os grandes portões do leste de Trigendolf, emoldurados por um imponente portal de pedra negra adornada com belíssimos arabescos e representações abstratas de animais. Uma grande serpe de pedra se encontrava aninhada sob o portão, do mais resistente carvalho reforçado com ferro. Não era o poderoso Portão principal, o Duque de Lerna não se atreveria à passar por ele após uma falha.
                Deixaram às suas costas as muralhas de pedra que cercavam aquele lado do vulcão, muralha essa feita com maçicos blocos de pedra negra. Era alta e espessa, e suas ameias faziam-na parecer uma gigantesca coroa debaixo de um palácio à milhares de metros do chão. Valtryek estranhou a existência de espigões vazios por entre elas, isso significava que o rei aguardava capturar para ocupar a decoração macabra.
                    " E quem seria o alvo do Rei dos Monstros? Quem será  que ele deseja ter como cabeça em suas muralhas?" Pensou, enquanto passavam à cavalo por toda a Cidade Baixa. Os milhares de casebres abrigavam vários cidadãos, que murmuravam notícias recentes que ouviam de mercadores.
                  - Vamos subir logo...quero ouvir essas histórias diretamente da boca do rei...- Murmurou Valtryek para um de seus oficiais, que concordou e assim seguiram reto pelas ruas pavimentadas até os portões de ferro que davam acesso à uma das escadarias de pedra. Subiram durante horas, até pararem em um dos andares e passarem a noite hospedados em uma estalagem.
                    Continuaram a subida assim que acordaram, os cavalos já haviam sido abandonados há muito e substituídos por liteiras levadas por escravos. A parte ruim era que se os escravos os deixassem cair, seria uma queda desgradável de centenas de metros pelos degraus de pedra até a base da montanha. Apenas de madrugada, quando Valtryek já cochilava entre as almofadas da liteira, chegaram na ponte desejada.
                     - Chegamos enfim...daqui para o palácio é apenas uma caminhada. Deixem-nos...- Dispensou a liteira e desceu dela, para então caminhar pela borda do vulcão de forma imponente. Atravessou o portão de prata marcado por runas élficas e asgaéticas, era um portão tão antigo quanto o próprio palácio.
                      E que grande palácio, cujo acesso havia sido dado pela grande ponte de pedra com belas muretas em forma de ondas do mar. Mas o mar ali embaixo era de fogo, a rocha tão quente que se derretia e parecia brasas, pingando e crepitando. Estavam na boca do vulcão, atravessando o lago de magma fervente, indo até o palácio dos Tregon.
                       O palácio era grandioso, como na memória do Duque de Lerna, e o adentraram rapidamente. Mas, para a total surpresa do duque, ele não foi enviado para conversar com o rei...pelo contrário...recebeu apenas uma carta com seu selo.
                      - O que significa isso? Eu exijo uma conversa com Henfrid....eu preciso conversar com ele!- Disse Valtryek, o maxilar travado de raiva.
                        O criado, amedrontado, apenas se encolheu. Talvez o Duque de Lerna não devesse descontar a raiva nele, mas tinha alguns sérios problemas para controlar a sua fúria ou impaciência.
                       - V-Vossa Graça lhe deu essa carta, meu senhor, e disse que tudo oque você precisa saber está nela...- E então fugiu da fúria do duque, Valtryek teve que descontar dando um soco na parede que tremeu o corredor.

                         Estava em seus aposentos havia uma semana, e estranhamente o rei parecia cada vez mais lhe restringir a liberdade de ir e vir pelo palácio. Aquilo o corroía de ódio, ainda mais depois de ter lido a carta.
      
              " Valtryek

                Amigo de longa data, suas falhas chegaram aos meus ouvidos e, por elas, sinto que não está mais apto para comandar o exército por um tempo. Está sob dispensa, o Conde Apoleon de Dentegris irá assumir em seu lugar, foi responsável pela derrota dos humanos em Mogiac e expulsou Adelard de Drune desse lado do rio.
                   Você ficará como hóspede aqui em Trigendolf até que se sinta pronto para retornar para Lerna. Lá se tornará vassalo do Principado de Vestroya, governado por Erlokyn.
                  Assinado: Rei Henfrid I de Tregon, Príncipe da Messaria, Rei de Trigendolf, Grão-Duque da Árlia, Rei dos Dentes, Flagelo de Vestroya e Protetor da Tregônia. "
 
                    Aquilo era ofensivo e absurdo, Valtryek era um herói de guerra. Havia acabado de subjugar Aledrac, e suas falhas haviam sido apenas algumas entre muitos acertos. Era um servo fiel e útil, não poderia ser abandonado assim.
                   - E Erlokyn ainda é recompensado por sua traição, marchou contra Vestroya e a ocupou, e ainda ganhou o senhorio da cidade por isso. Depois ainda sou substituído por um comandante da Linha de Lerna...- Falou, para ninguém mais além de si mesmo.
                    Ouviu o som da porta abrir atrás de si, o quarto estava escuro e por isso a luz o cegou por instantes. Um homem estava parado à soleira, vestido com um manto negro, parecia um demônio pelos chifres...mas quando Valtryek focou mais a visão pôde ver as escamas. Era um híbrido, e seus profundos olhos púrpureos reluziam.
                     - Meu senhor, não precisas falar sozinho. O rei deseja falar com você, ele tem coisas à conversar..- Disse o luceno, cuja aparência cheirava à bruxaria. Valtryek se lembrou de Anya e fechou o cenho.
                    - E quem seria você? Não quero saber do rei, ele próprio me exilou dentro de um maldito quarto...- Falou com aspereza.
                   O bruxo riu, apoiado no portal. Até sua risada era detestável, carregada de malícia até quando em contextos descontraídos.
                 - Sou Tyesgard de Villia, convidado do Vossa Graça e o atual mago da corte. Eu recomendaria não contrariar o rei, é um homem de grande orgulho...-
                   O Duque de Lerna pensou em mandar o bruxo embora, mas no fim o seguiu pelos corredores. Adentraram no escritório do monarca após uma leve batida e uma resposta abafada pela porta.
                   O Rei Henfrid, o monarca mais poderoso do mundo e o suposto Flagelo dos Homens, era apenas um demônio de meia idade com uma barriga de chope e um nariz adunco por cima de uma barba preta e razoavelmente bem cuidada. Não tinha uma das orelhas, perdida contra os drows nas batalhas de sua juventude, suas guerras haviam sido deixadas com ela e o homem não entrava em campo de batalha há décadas.
               -Valtryek...sente-se...- Começou o rei, visivelmente desconfortável. - ...precisamos conversar..-
                 O Duque de Lerna imediatamente se enfureceu, socando a mesa à frente do rei. Estavam em um belo escritório com paredes cobertas por tapeçarias e janelas cujas grades formavam arabescos. À frente dessa janela estava a mesa do rei, onde ele se retirava para verificar documentos.
                  - Você tomou uma decisão terrível, Henfrid! Como pôde dar o comando para um qualquer?! O que pretende?!- Berrou com toda a sua raiva.
                    Henfrid franziu as sombracelhas e se levantou, encarando o amigo de longa data de forma desafiadora.
                  - Você sabe o que anda acontecendo?! Os homens desafiam cada vez mais minha autoridade, e agora vejo que até você também o faz. Eles crêem demais na figura do Duque de Lerna e acreditam que minhas vitórias são unicamente causa sua!-
                 " Há um exército humano no Sul, e decidi aproveitar essa oportunidade para os destruir e provar que os monstros que são superiores e não você.."
                    Valtryek ignorou toda a paranóia do rei, pois agora sua raiva virara medo. Como era possível?
                   - Como há um exército humano no Sul? Eles conseguiram quebrar a Linha de Lerna em algum ponto? Eles desembarcaram com navios?-
                     Henfrid pareceu se lembrar de algo que o deixou ainda mais colérico. Apontou o dedo para Valtryek, que não reagiu tamanho era o seu choque.
                  - A culpa é sua! O Bastardo de Primavera escapou, junto com quase três dezenas de milhares de homens, inclusive cavaleiros de Santigar. Descubro hoje que Adelard de Drune não fugiu, mas sim se uniu à ele. O maldito rapaz tomou Dentestrela e Messaria em mais ou menos uma quinzena.-
                     " O Bastardo de Primavera...Darkus...o filho de Edmund de Galantes" Foi uma recordação sombria, junto da memória dos olhos de sangue do rapaz.
                     - Mande meu exército para o derrotar, é o único em condições de acabar com ele antes de o inverno chegue e o rapaz possa se fechar nas fortalezas e nos forçar à um cerco.- Foi o pedido de Valtryek, era o jeito.
                       O Rei pareceu confuso entre acatar o conselho do duque ou contrariá-lo por orgulho mas, pela primeira vez e para o horror de Valtryek, Henfrid olhou para Tyesgard como se pedisse um conselho. O bruxo sacudiu a cabeça em sinal de concordância, e o monarca acatou isso.
                      - O exército em sua totalidade, ou seja, os quarenta e sete mil homens, serão enviados para destruir Darkus Darkrym. Irão sob comando meu, com Tyesgard como meu porta estandarte. Você cuidará dos assuntos da Coroa até eu voltar com as cabeças dos traidores...- O monarca se levantou e fez sinal para que o bruxo o seguisse. - E por hoje é só, velho amigo...-
                      Valtryek o olhou partir com uma mistura de ansiedade e temor. Só os deuses poderiam saber o resultado desse embate.
          
       
  
     
       

A Coroa do Domínio - Livro DoisOnde histórias criam vida. Descubra agora