Família

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O Dr Ethan passou aquela manhã me explicando como a enfermaria funcionava, e no geral, não era tão diferente do que eu já estava acostumada. A enfermaria do quartel era relativamente grande, haviam oito camas na sala, quatro de cada lado, haviam três armários onde os materiais que usávamos eram guardados, mesinhas pequenas de procedimentos, e duas mesas com cadeiras onde ficávamos sentados para escrever nas folhas de cada paciente, tendo que descrever o seu quadro, as medicações que foram usadas, e os procedimentos feitos (sutura, curativos, limpeza de feridas, etc.). Era parecido com o hospital que eu estava acostumada a trabalhar, mas reduzido. Afinal, aquela enfermaria era exclusiva para a tropa de exploração. Ele me deu uma farda: um jaleco branco de mangas, com botões, e o símbolo da tropa de exploração no bolso no peito esquerdo e no braço direito.

Fomos almoçar, e a comida estava ótima. Depois de almoçarmos, voltamos para a enfermaria, e eu vesti meu jaleco por cima do meu vestido. Ele tinha caído perfeitamente em mim, e eu me sentia orgulhosa por carregar as asas da liberdade no peito. Depois de eu e Dr Ethan conversarmos um pouco pra colocar os assuntos em dia, ele disse:

- Acho que você deveria ir na sala de Erwin agora.

- É verdade, eu já havia esquecido disso... eu vou lá agora. Até daqui a pouco.

Caminhei pelos corredores do segundo andar até chegar em frente a uma porta dupla de madeira, que brilhava por conta da luz do sol que batia no verniz dela. Bati na porta três vezes, e ouvi a voz do comandante permitindo minha entrada.

Abri a porta, e pude vê-lo sentado na cadeira, com alguns papéis na mão. Estava sentado atrás de uma mesa grande de madeira de carvalho, e do seu lado direito, uma estante cheia de livros e documentos. haviam mais duas cadeiras acolchoadas na sala, e uma outra idêntica a elas em frente à sua mesa.

- Boa tarde, comandante Erwin. O senhor tinha pedido pra eu vir aqui assim que pudesse. – disse, assim que entrei na sala.

Ele olhou para mim e falou, apontando para a cadeira livre em frente à sua mesa:

- Sim, Angelle. Sente-se, por favor.

Me direcionei até a cadeira, e sentei-me nela. Estava um pouco nervosa sobre o que ele queria falar, mas ele já havia dito que não era nada demais. Fiquei esperando ele dizer algo, e ele não se demorou. Pegou os papéis que estava analisando, colocou-os na gaveta, e apoiou as duas mãos na mesa:

- Ethan me recomendou você para esse cargo, como ele já deve ter informado a você, e eu confio muito na palavra dele aqui dentro, já que ele se mostrou ser bastante capaz e assumiu a liderança no setor muito rapidamente. Quando ele te indicou, disse que você era tão talentosa quanto ele.

Ruborizei. Sempre ficava envergonhada de quando as pessoas falavam tão bem do meu trabalho.

-Ah, sim... ele e outras pessoas que trabalharam comigo diziam que eu era muito boa, e pacientes também sempre agradeciam pelo meu tratamento com eles... Não sei se sou realmente tão boa assim, mas eu sei que gosto de fazer o que eu faço, gosto de cuidar das pessoas... Acho que gostar do que fazemos é um passo importante para fazer com maestria.

Ele abriu um sorriso suave, e respondeu:

- Sim, acho que tem razão. Você tem quantos anos?

- Vinte e quatro.

- Nossa, você é realmente bem jovem. Começou cedo a trabalhar como enfermeira?

- Sim. Com dezesseis anos eu já ajudava na enfermaria, e quando terminei o treinamento, o Dr Ethan me deu um emprego no hospital de Shiganshina. Foi lá que trabalhamos juntos.

- Você viu o ataque na cidade?

- Na verdade não... naquele dia eu estava na muralha Maria, longe de Shiganshina. Tinha ido buscar algumas coisas para o hospital, e não me deixaram voltar para lá. Disseram que os titãs haviam derrubado a muralha, e que tínhamos que recuar para a muralha Rose. Estou aqui em Trost desde então. Me voluntariei para ajudar os feridos, e depois consegui me estabilizar trabalhando no hospital de Trost antes de vir para cá.

- Então você nunca viu um titã?

- Não... nunca os vi, não sei como são. Mas todas as pessoas que os viram disseram que eram aterrorizantes. Conseguia ver o medo nos olhos daqueles que eu atendia, que sobreviveram àquele dia.

- É, eles podem ser bem aterrorizantes, mesmo. Você cuidou de feridos, mas cuidou de alguém amputado? Um braço, uma perna...

- Já, mas eram soldados. E civis também, mas em outras situações.

- Bom, estou perguntando isso porque geralmente é o que você vai lidar aqui, quando voltarmos de expedições. No dia-a-dia, dificilmente há ocorrências de ferimentos graves, e quando têm, são dos novos soldados, como os que chegaram agora há pouco tempo. Eles treinam aqui também, pois eles não chegam da turma de cadetes preparados o suficiente. Você pode lidar com cortes profundos da lâmina, um braço ou uma perna deslocada às vezes, mas nada de muito grave. O grave são os soldados que voltam de expedições, os que conseguimos socorrer e trazer de volta.

- Esses, eu imagino, são os que têm alguma parte do corpo arrancada por um titã...

- Exatamente. Muitos deles ficam extremamente aterrorizados, e além de cuidados no seu corpo, também precisam de cuidados na mente.

- Eu entendo. Eles literalmente encararam a morte e sobreviveram para contar a história. Nossa... eu acho que não teria a coragem que vocês têm... – falei, olhando para o nada, coçando a bochecha com o indicador. - Eu com certeza teria muito medo de enfrentá-los. Ainda bem que existem pessoas corajosas como o senhor e os outros soldados, que arriscam suas vidas. Espero poder ajudar esses soldados da melhor maneira possível.

Quando o fitei novamente, ele olhava penetrantemente para mim, como se conseguisse ver através dos meus olhos, como se quisesse decifrar os segredos da minha alma. Havia um sorriso tímido em seus lábios quando ele disse:

- Obrigado. Fico feliz que existam pessoas que ainda depositem sua fé em nós. Acredito que você exercerá um bom trabalho aqui. Você... têm família?

- Não. Meus pais morreram quando eu ainda era criança, por conta de uma epidemia. Fui criada pela minha tia, mas ela morreu quando eu completei 18 anos. Ela deixou tudo o que tinha pra mim, então eu não fiquei desamparada.

- Entendo..., mas... e outro tipo de família?

- Ah, marido e filhos? Não, não tenho nenhum dos dois. E o senhor, tem família?

Vi seu maxilar se enrijecer um pouco, então rapidamente percebi que tinha sido invasiva demais.

- Me desculpe comandante, foi automático. Não precisa responder à pergunta. O senhor precisa de mais alguma coisa?

Ele piscou duas ou três vezes antes de me responder.

- Tudo bem, não precisa pedir desculpas. E não, por enquanto não preciso de mais nada.

- Bom, então eu vou voltar para o meu posto. Boa tarde, Comandante Erwin. – disse, com um sorriso acolhedor.

A expressão em seu rosto suavizou e se tornou acolhedora também, enquanto ele me dava boa tarde. Levantei da cadeira e segui para fora da sala, me direcionando novamente para a enfermaria.

[...]

Á noite eu já estava em casa. Tomei um banho, lavei a farda e a deixei secando no pequeno quintal da minha casa. Preparei um lanche simples para jantar, comi, e fui para a cama cedo, pois queria ter uma boa noite de sono antes do meu primeiro dia propriamente dito no quartel do reconhecimento. Tinha gostado muito do ambiente, das pessoas que tinha conhecido ali, e tinha certeza de que eu me sentiria muito bem trabalhando ali dentro. Meus pensamentos involuntariamente foram para Erwin, e seu sorriso fraco foi a última coisa que eu pensei antes de cair em um sono pesado.

O preço de entregar o coraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora