Meu pai me deixou esta casa antes de desaparecer misteriosamente, ele não estava bem já havia um tempo, se afundando em
álcool. Nossa relação nunca foi muito estável, embora eu sempre procurasse saber notícias dele, ele nunca atendia minhas ligações e eu precisava recorrer aos vizinhos.Agora, observando o lugar percebo que há muito dele na atmosfera, na decoração, na forma como o lugar foi construído. Recordo os anos em que cresci aqui, no geral foi uma infância feliz, pelo menos até a morte da minha mãe. Lembro como ele ficara enlouquecido na época, logo antes de se perder no vício ele se mantinha obcecado com um armário antigo que estava aqui muito antes de eu nascer.
Caminhei pelo corredor escuro, acendendo algumas luzes e focando nas molduras penduradas, meu pai e minha mãe no dia do casamento, eu e meu irmão na peça da escola e uma foto de família. Observei que havia uma sombra estranha aparecendo em todas elas, sempre próximo aquele armário estranho. Provavelmente era algum efeito da câmera da época.
Fui até o meu quarto carregada de um luto que pairava naquele lugar sombrio, ao entrar percebi que o objeto que outrora pertencera aos meus pais estava ali. Achei estranho, pois eu não me recordara de tê-lo visto no quarto depois que eu cheguei. Suponho que ele não teria se movido sozinho. Ao avaliar mais de perto, notei que havia um pedaço de papel amassado preso entre as duas portas. Puxei-o com cautela e abri-o. Era a letra do meu pai que me dizia, para não abrí-lo sob nenhuma circunstância.
Fiquei confusa com aquele pedido estranho, mas por hora decidi acatá-lo. Tomei um banho quente e preparei um jantar simples, enquanto assistia programas aleatórios na tv. De repente eu senti um jorro de sentimentos me envolver, tristeza, mágoa, fúria. Não sabia explicar.
Fui até o corredor em busca da nossa foto de família, ela me acalmava quando eu me sentia perturbada. Mas ao acender a luz notei que as duas molduras haviam caído e se estilhaçado, enquanto aquela que eu amava ainda permanecia intacta, mas havia algo de macabro. Os rostos dos meus pais estavam marcados com um grande x vermelho.
Senti um medo profundo e primitivo me envolver quando encarei a foto, e percebi que um x se formava também sobre o meu rosto, como se alguém o estivesse riscando com sangue. Saí correndo e fui ao meu quarto buscar meu telefone. Não conseguia encontrá-lo, até que ouvi o toque que vinha de um lugar abafado. Procurei em todos os lugares fechados, mas nada.
Então entendi que o toque na verdade vinha de dentro do roupeiro que meu pai me alertara a nunca abrir. Respirei fundo e segurei o puxador, as portas abriram com um rangido. Lá dentro estava vazio com exceção do meu celular brilhava com a tela acesa. Segurei e deslizei o ícone para atender, mas um braço que estranhamente eu reconhecia agarrou meu pulso.
Encarei a face distorcida daquela coisa que tomara a forma da minha mãe e depois do meu pai. Sua cabeça girava em um ângulo estranho, enquanto da boca escorria um líquido viscoso com um odor fétido. Mais braços me agarraram e me puxaram, ouvi a voz do meu irmão, me perguntando se estava tudo bem, percebi uma nota de desespero, mas não conseguia responder.
Com um último esforço soltei um grito antes daquelas mãos se fecharem em torno do meu pescoço e percebi que cometera um erro, pois a última coisa que ouvi foi a voz do meu irmão dizendo que estava vindo aqui, então vi o sorriso da coisa se alargar e se transformar em uma risada assombrosa.