As Ruínas de Trut

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Saindo da ponte dos orcs, ainda no topo da montanha, Misneach aponta para o limite costeiro, onde o barco estaria. Lá embaixo, distante, podia-se ver o esboço de uma cidade destruída e o mar se estendendo, infinito. Os pulmões dos libertos se encheram do mais puro ar da esperança, sentindo sua liberdade tangível, enquanto seus pés os levavam ao destino sem correntes.

Quanto mais se aproximavam da costa e o sol ia baixando à oeste, uma névoa espessa se formava ao redor. O grande grupo andava em três fileiras, as das laterais carregavam tochas com intervalos de quatro pessoas, para que ninguém se perdesse naquele lugar nebuloso. Apreensão, medo e até mesmo euforia corriam pelas veias dos buscadores de liberdade.

Assim que a noite tinha acabado de se instalar, encontraram os primeiros vestígios das ruínas. Pedras de mármore, pedaços enormes de concreto e gessos espedaçados dificultavam a passagem pela mata densa, fazendo muitos andarem aos tropeços. Ao longe podia-se ouvir uma leve queda d'água e os barulhos de animais noturnos.

O cheiro de decomposição era sentido de longe. Assim que deixaram a floresta, a cidade destruída se erguia a diante. Corpos putrefatos e esqueletos sem pele espalhados pela cidade abandonada. A névoa que os acompanhava pela úmida floresta, percorria o chão, como se quisesse agarrar os recém-chegados e fazê-los se juntar aos demais corpos.

O lugar era repleto de construções romanas antigas, com seus pilares enormes e estátuas por toda parte. No chão, pedras e mais pedras empilhadas de paredes destruídas. A natureza achou seu jeito de prosperar ali, ramificando pelas construções, florescendo nos restos de estátuas humanoides e rastejando entre os corpos repousados em musgo.

Quando mais adentravam a cidade perdida, mais os libertos se aproximavam uns dos outros, tentando manter distancia das mãos esticadas e das construções amaldiçoadas. Ao passar por uma construção um pouco menos destruído que as outras, eles puderam ver um salão de horrores.

Grandes gaiolas estavam penduradas no teto curvo. Todas ocupadas com corpos decompostos ou esqueletos esquecidos. No chão de mármore escurecido mais corpos descansavam em posições desconfortáveis, esperando um milagre que não aconteceria.

Um barulho distante ecoava periodicamente, como se algo oco estivesse batendo em uma pedra. Sombras dançavam em volta, aproveitando a luminosidade bruxuleante das tochas. Alguns libertos podiam jurar ouvir correntes passando ao lado, próximo a uma das colunas tombadas.

Algo não estava certo. Em seus âmagos, os guerreiros de Odin sabiam: alguma coisa estava por vir.

Uma silhueta disforme apareceu à frente, nos limites da cidade. Dois olhos brilhantes flutuavam, brincando com a imaginação e deixando um desconforto doentio. Uma brisa gelada percorreu junto com a névoa baixa, fazendo calafrios percorrerem toda a extensão da coluna, e o barulho oco estava um pouco mais alto.

A silhueta se aproximava, parecendo flutuar pelo chão de pedra. Logo ao lado pode-se ver uma criatura chegando, o cheiro de podridão chegava a fazer os olhos lacrimejarem e as narinas arderem.

Era uma mulher com pele acinzentada, sua epiderme descolava, e deixava pedaços do rosto, peito, coxas e antebraços pendurados. Uma parte dos ossos das costelas e do ombro podiam ser vistos, como um branco avermelhado enjoativo. Em uma de suas mãos carregava algo, que batia no chão. Era dali que vinha o som oco. Os libertos viram quando a massa em sua mão foi girada ao bater em uma cabeça de estátua caída. Agora eles podiam ver pelas chamas sombrias, que a massa sem forma na mão da criatura decadente, era uma pequena criatura com crânio exposto, o topo da cabeça topando com as pedras pelo caminho. Mais um calafrio, dessa fez de arrepiar os cabelos, percorreu todo o grupo. Eles sabiam que estavam encarando o corpo de uma criança morta.

A mulher andava cambaleante, sua perna esquerda estava torta para um lado não natural. Os pés descalços estavam com um tom preto necrosado, assim como a ponta do nariz e o buraco que deveriam ter orelhas. Os cabelos negros eram enormes, se estendiam até a cintura desnuda e ossuda. Os buracos dos olhos apontavam para eles, fazendo-os encarar um vazio existencial, de uma criatura que não sabia se um dia fora humana. Seus lábios tremiam, como se sentisse o frio, e a mão desocupada se abria e fechava, em uma compulsão desordenada.

Misneach sentia uma urgência dentro si vendo aquela mulher esquisita andando em direção ao grupo. Suas mãos suadas envolveram o cabo de sua picareta e suas pernas se moveram quase sozinhas, correndo em direção a criatura. Virou a picareta para ficar com a parte de Perseverança, a face que parecia um malho com dentes grossos. Lançou sua arma para trás e a impulsionou para frente, as pontas grossas de aço bateram na lateral da cabeça decomposta. O som alto e molhado de ossos se quebrando e músculos dilacerando vibrou nos ouvidos dos presentes. Perseverança bateu com tanta força que arrancou a cabeça da mulher e a fez rolar pelo chão, metade do rosto distorcido e afundado.

- Não, não, não... Vocês precisam ser amigáveis, logo se tornarão uma família – uma voz doce, suave e charmosa tomou conta de seus ouvidos, destoando completamente do cenário grotesco –, e a mamãe não gosta que briguem entre si.

A voz parecia vir da direção da silhueta disforme ao longe. Ouviram um ranger de dentes, como se estivesse em suas mentes e o barulho de correntes ainda mais perto. Ao lado, uma agitação começou a se formar no salão. As gaiolas começaram a balançar e os corpos dentro participavam de uma dança macabra e desconexa, com espasmos que os faziam parecer vivos. No chão, aqueles corpos cobertos por plantas e musgo, estavam se levantando vagarosamente, as cabeças levantadas e inclinadas de lado, como se ouvissem um chamado.

Malina estava horrorizada com aquela cena, e assim que viu os humanoides decompostos se mexendo nas gaiolas, saiu correndo em direção a floresta onde tinham acabado de sair. Ela não foi muito longe, logo tropeçou em um corpo inerte e caiu. Alguns corpos ali já estavam levantados, e os que se encontravam deitados, a encararam com os olhos vagos brancos. O grupo pode ouvir quando os gritos de desespero e dor, enquanto as criaturas mordiam a pele da elfa e arrancavam pedaços, o som molhado de carne fresca sendo dilacerada. Os gritos pararam aos poucos, enquanto os mortos a devoravam com gosto, tentando sugar a vida que tanto desejavam de volta.

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