Carro

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Bianca

Falamos ao mesmo tempo.

— Vou buscar uma toalha — disse  Rafaella.

— Deixa que eu busco — eu disse.

Uma desculpa. Nós duas precisávamos fugir.

Corri até meu escritório e fechei a porta, arfando, a mente funcionando a mil por hora.

Numa única noite, num único instante, o mundo inteiro havia mudado.

Nenhuma palavra dita. Nenhuma bala disparada. Mas nossos olhos haviam confessado tudo.

Ela sabia, eu sabia. Não havia caminho de volta.

Olhando nos olhos de Rafaella enquanto o vinho se derramava, tive um pequeno flashback. Recordações de Bogotá.

Não tinha perguntado a ela o que fazia ali. Não tinha estranhado a facilidade com que tinha caído na minha cama. Apenas havia ficado feliz, muito feliz, por tê-la ao meu lado. E entre um encontro e outro, quando eu dava um jeito de escapulir para cuidar das minhas missões — quatro assassinatos numa única semana —, ela escapulia para fazer a mesma coisa.

A vaca vinha mentindo para mim desde o início.

Já havia tentado me matar antes. Agora que estava ciente de que eu sabia de tudo, não tinha outra coisa a fazer senão me eliminar.

Ouvi uma porta bater em algum lugar e gelei. Colei o ouvido contra a porta, mas não ouvi nada. Fui até a escrivaninha e abri um compartimento secreto dentro de uma das gavetas.

Uma arma, um pente de balas e um silenciador.

Três movimentos rápidos, e as partes se encaixaram. A arma escondida nas costas, respirei fundo e saí para o corredor.

Varri com os olhos a sala de jantar. As chamas das velas cintilavam de maneira estranha. Como se Rafaella tivesse acabado de passar correndo por elas.

—Rafa? — chamei. — Amor...? Nenhuma resposta.

Talvez já não respondesse por esse nome.

Então ouvi um barulho do lado de fora. Imediatamente olhei pelas janelas.

A porta da garagem estava se abrindo. O carro... Ela estava fugindo de carro!

De um pulo atravessei a sala, saí pela porta da frente, cruzei o jardim e cheguei à garagem a tempo de vê-la engatar a ré para sair. Joguei-me no caminho, impedindo que ela continuasse.

—Pare o carro, Rafa!

Não parou. Em vez disso, pisou fundo no acelerador, jogou a traseira do nosso lindo Mercedes station-wagon contra a mureta externa e seguiu em disparada sobre a grama do jardim.

Sabia que não poderia alcançá-la simplesmente correndo atrás do carro. Mas talvez pudesse cortar caminho pelos quintais dos vizinhos...

Péssima ideia. Especialmente no escuro. O quintal dos Santana foi fácil, mas, depois, saltei por cima de uns arbustos e...

Merda! Aterrissei sobre um brinquedinho infantil qualquer. Depois de abrir caminho entre as gangorras, pulei para o quintal seguinte e dei de cara com um cachorro que não parava de latir. Em seguida...

Bem, digamos que tive de enfrentar toda a parafernália dos quintais suburbanos até chegar ao fim da corrida.

Teria sido engraçado se fosse um filme.

Por fim, cheguei ao outro lado do quarteirão e subi numa cerca segundos antes de Rafaella dobrar a esquina.

Não é todo dia que encontramos uma mulher capaz de dobrar uma esquina sobre duas rodas.

Mrs. & Mrs. Kalimann-AndradeOnde histórias criam vida. Descubra agora