Querido diário, aconteceu.
A última caixa foi desempacotada, o apartamento não tem mais eco.
Estou oficialmente estável, e morando no lugar dos meus sonhos com o amor da minha vida. A montanha russa não desceu mais.
Nunca tive um diário. A ideia de revelar tudo que sou em um papel onde qualquer um poderia descobrir tudo o que sou nunca me foi conveniente, mas agora, eu vejo que em alguns anos minha memória irá falhar, e tudo que eu sou e vivi precisa estar registrado em algum canto.Vamos voltar ao início, bem na estrelinha da minha linha do tempo. Em alguma estação do ano de 2014, uma garota e um garoto irresponsáveis acreditavam estar apaixonados, e bum! Eu nasci. Mas não, esses não eram meus pais.
Não sei muito bem o que acontece depois disso, só sei a parte de que a pessoa que eu devo chamar de mãe - uma mulher incrível chamada Ruby Gillis, que em situações ordinárias seria minha tia - foi a pessoa que impediu minha progenitora de me afogar em uma banheira ou me trocar por um maço de cigarros. Não lembro muito dela mas eu via a forma que ela olhava para mim nas fotos que meu pai me mostrava e que guardo comigo até hoje, portanto sei que devo minha vida a ela. Bem, a ela e ao meu pai.Minhas primeiras memórias se moldam ao rosto dele. Ele me pegando no colo, ele fazendo penteados no meu cabelo em frente ao espelho de forma desajeitada e me perguntando "o que achou?", ele arrumando toda uma mudança, como a que acabei de fazer, sozinho. Não sei como minha vida era antes dele, mas com certeza não era tão boa.
Tive a sorte de crescer em um lar amoroso, com um pai amoroso, tios e tias amorosos e primos que eram e ainda são meus parceiros para tudo.A escola era incrível, eu tinha um melhor amigo que era quase uma parte perdida de mim e todos os professores me amavam. Lembro como se fosse hoje da aposta infantil que fizemos.
Ele cutucava meu braço e puxava meu cabelo durante a aula de inglês, e depois fingia que não tinha sido ele. Eu era uma criança de pavio curto e minha paciência era limitada, mas meu juízo não. Esperei até o intervalo para correr atrás dele com um lápis bem afiado, e ele ria como se fosse tudo uma grande piada.
- O que você acha que vai fazer com esse lápis?! - Perguntou Angelo.
Angelo Hudson, a criança com cachos castanhos pendurados por toda a cabeça e um sorriso torto.
- Estou pensando se enfio no seu braço ou no seu olho por me irritar a aula toda! - falei, e continuei correndo atrás dele até cansarmos e ficarmos sem ar.
Fiz um sinal de trégua para ele e sentamos na sombra de uma árvore, ofegantes. Guardei o lápis no bolso e prendi meus cabelos loiros em uma trança lateral para aliviar o calor.
- Aposto que não conseguiria me machucar nem se quisesse - ele falou, rindo. Deveríamos ter uns 6 anos.
- Aposto que conseguiria.
- Pode tentar o quanto quiser.
- Estou cansada agora, mas vou te pegar quando você menos esperar.Tudo era quase totalmente perfeito, mas tinha algo errado. Meu pai não era feliz.
Nos anos que se seguiram, ele parecia bem, mas algo nele parecia parar de brilhar aos poucos. Ele ainda sorria mas não era a mesma coisa, ele ia ao trabalho e voltava cada vez mais cansado. Apesar de não demonstrar, eu sentia que havia algo errado.
Anne e Gilbert, tios de consideração, vinham nos ver quase toda semana, e falavam palavras difíceis que eu não entendia na época.
Psicólogo. Depressão. Luto.
Nossos dias eram como montanhas russas, eu esperava ansiosamente pelas subidas, que eram quando meu pai estava bem. Ele saia da cama e conseguia se manter estável o dia todo, eu considerava que estávamos no topo. E então caiamos, e eu escutava meu pai chorar ou passar o dia todo na cama sem saber o que dizer ou fazer.
Hoje eu entendo que talvez Ruby tenha deixado um vazio nele que não poderia ser preenchido por nada, mas ali, sentindo meu pai soluçar enquanto me abraçava, eu só via ele como um homem extremamente triste.Isso tornou meu ensino médio bem complicado e cheio de questionamentos. Quando eu estava na escola, enchia Angelo de perguntas do tipo "Será que ele está bem?", "Será que ele se sente mal no trabalho?". E quando eu ia para casa, ficava me perguntando qual das versões do meu pai eu teria que lidar quando ele chegasse em casa.
Anne dizia: "É uma fase difícil, borboletinha. Isso vai passar, você só precisa estar ao lado dele."
Borboletinha. Nunca entendi muito bem o apelido. Mas parece que Ruby tinha um fascínio por elas.Acho que por hoje é só. Meu amor chegou em casa e precisamos conversar sobre o nosso dia e sobre por que é tão difícil não deixar uma toalha molhada em cima da cama.
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O diário de Iris - A vida não é um clichê.
Fanfiction(short story) O que pode acontecer depois de uma aposta infantil? Em seu diário, Íris - já adulta - irá registrar sua infância e adolescência. Aqui, ela compartilhará todos seus medos, experiências e principalmente, descobertas e decepções. Iris irá...