Querido diário,
Quando entrei no quarto gritando que um furacão iria passar por nós, Alexa ainda estava dormindo. Ela despertou lentamente e ainda limpava os olhos quando comecei a falar de forma frenética. Eu sabia que minhas palavras não estavam fazendo o menor sentido, mas eu simplesmente não conseguia parar. Quando me calei e voltei o olhar para ela buscando uma reação tão desesperada quanto a minha, ela tinha enfiado a cara no travesseiro de novo.
- Alexa! - me joguei na cama dela e a balancei pelos ombros tentando arrancar dela algum sinal de vida.
- Eu entendi. - ela respondeu quase sem voz - Vamos ser todos levados por um furacão, finalmente. Não via a hora de tudo isso acabar. Por que está tão aterrorizada? O mundo é um lugar horrível.
- Por que você está assim?
Ela se endireitou na cama e respirou fundo encarando o teto, havia algo que ela queria dizer. Eu precisava fazer mil coisas, queria encontrar Angelo, sentia que se eu não falasse com meu pai logo acabaria surtando, mas naquele momento eu só esperei que ela dissesse o que tinha que dizer.
- Minha namorada terminou comigo por mensagem. Ontem, enquanto a gente cantava.
- Eu sinto muito.
- Tá tudo bem.
- Você esqueceu o caminho do próprio quarto ontem, não tá tudo bem. Pensei que você só sentisse saudade de casa, não tinha ideia que isso tinha acontecido.
- Tem isso também. Ah, é muita coisa. Agora a natureza resolve colocar uma cereja no bolo de desgraças que estão acontecendo na minha vida mandando um furacão.
Tentei oferecer todas as palavras de conforto que eu conhecia para ela, mas nada melhorava o seu humor. Alguém bateu à porta alguns minutos depois, era Angelo. Ele não me encarava, desviava o olhar para qualquer coisa que não fossem meus olhos. Fechei a porta e deixei Alexa lidando com o luto que não me pertencia.
Ficamos de frente para o outro em silêncio, ignorando totalmente a presença um do outro. Não nos olhávamos, não conversávamos, nada acontecia, mas o barulho dentro da minha cabeça era alto. A forma como tudo esfriou e eu não o reconhecia mais jamais poderia ser descrita como uma mudança repentina, nos perdemos um do outro diante dos nossos olhos e não fizemos nada para impedir.
- Só promete que vai estar comigo quando tudo começar. - Pedi. - As luzes podem falhar, o teto pode desabar sobre nós e o chão ceder, e eu só quero que você esteja lá.
- Tudo bem, eu vou estar lá.
- Tô falando sério, Angelo. Quando o toque de recolher soar, tudo vai ser caos. Os abrigos subterrâneos vão lotar igual formigueiro em um piscar de olhos e você tem que estar no mesmo lugar que eu. Promete?
- Prometo, claro. Você ainda tem aquele problema com escuro, não é? Por isso tá com tanto medo, mas vai ficar tudo bem.Problema com escuro, era assim que ele se referia ao meu trauma. Tudo aconteceu pouco antes de Estelle se mudar, e foi isso que desencadeou a mudança dela. Devia ser fim de outubro, época de halloween. Também era a primeira vez que eu estava na casa dela, estávamos sozinhas e os pais dela tinham saído para jantar. A tranquilidade se fazia presente, aliás, o que pode dar errado ao deixar duas adolescentes de 14 anos sozinhas? Bom, bastante coisa. As luzes da casa estavam todas acesas e nós estávamos na sala assistindo a programação do Investigação Discovery. Próximo das 10 da noite, Estelle levantou e disse que ia na cozinha fazer pipoca. Não desgrudei os olhos da TV por um instante. Pensei ter ouvido um barulho de click, mas não liguei. Estelle voltou com refrigerantes e disse que a pipoca estava no fogo, minha atenção ainda estava totalmente voltada para o caso criminal na TV. O barulho de pipoca estourando nos alcançou e se misturou com vários clicks que eu jurava ouvir, mas como Estelle não disse nada, achei que estivesse imaginando coisas. O problema foi quando todas as luzes se apagaram em questão de milésimos de segundos, tudo desligou e a única coisa que ouvimos foi o barulho da pipoca estourando. Até a porta ser forçada a abrir. Estelle conseguiu pensar rápido e me puxou casa adentro, para o banheiro. Ela trancou a porta e tateou os bolsos em busca do celular, que havia ficado no balcão da cozinha.
- Droga, droga, droga. - ela sibilou.
O silêncio era incapacitado de ser absoluto pelo som de passos, mais de um par de pés nos procuravam do lado de fora. Eu ouvia três coisas: os passos, os sussurros de quem quer que estivesse lá fora, e meu coração acelerado. Os passos se distanciaram e consegui soltar o ar que não sabia que estava preso, tirei o celular do bolso e acendi a tela para mostrar para Estelle que eu estava com o meu celular. Ela gesticulou três números para mim: 9-1-1, o número de emergência.
Antes de ligar, mandei uma mensagem para o meu pai que me tomaram três minutos por estar com os dedos totalmente trêmulos. Nela eu dizia: "Obrigada por tudo, amo você."
Só então consegui discar 911 e torcer para que ninguém ouvisse nada.
- 911, qual a sua emergência?
- Tem alguém aqui - falei o mais baixo que pude.
- Ok, mantenha a calma. Pode me passar a sua localização?
- Estamos na Leaves Street, 501. Estávamos sozinhas, alguém entrou - minha voz embargava de pânico, senti a mão de Estelle no meu ombro e tentei me acalmar respirando fundo.
- Estamos enviando ajuda. Onde vocês estão, quem está aí?
- Eu e minha amiga, a casa é dela. Estamos escondidas no banheiro.
- Continuem na linha, por favor. Qual o nome de vocês?
- Eu sou Iris e minha amiga é Estelle. Estelle Sandiego e Iris Spurgeon.
- Ok, meninas. Mantenham a calma e fiquem em silêncio.
Fiz o que a pessoa que atendeu pediu, Estelle tirou a mão do meu ombro e me abraçou. Por mais que eu estivesse morrendo de medo, também conseguia sentir as mãos dela geladas ao meu redor.
Os sussurros começaram a se aproximar, assim como os múltiplos passos. Meu coração devia estar correndo como um cavalo desesperado. A maçaneta começou a girar, por um momento meu ceticismo deixou de existir e eu orei para todos os deuses que eu conhecia para que Estelle tivesse trancado a porta. Senti sua mão apertando a minha, e nós duas demos um pulo quando um murro dado na porta ecoou pelo banheiro. Aquele seria apenas o primeiro. Quem quer que estivesse do outro lado estava dando tudo de si para abrir a porta com murros, chutes e pancadas com um objeto que eu nunca soube o que era. As sirenes que soaram na rua não o intimidaram, e a porta caiu. O som de ferro pesado caindo do chão ecoou estridentemente, mas não consegui ver nada. Me agarrei a Estelle e um par de mão agarrou nós duas, fomos arrastadas até a sala. Lembro de ouvir uma respiração abafada por camadas de tecido ou talvez uma máscara perto do meu rosto, a minha primeira lembrança depois disso é um grupo de policiais entrando na casa, entre eles estavam Gilbert e Nathalie. Eles conseguiram tirar eu e Estelle de dentro, e assim que saí, meu pai já estava lá. Estelle se mudou uma semana depois, aos poucos perdemos o laço que nos unia.
Depois daquele dia, nunca mais consegui ficar em um quarto escuro sozinha sem entrar em pânico, gritar e chorar. Mas Angelo preferia definir aquilo como "um problema com escuro".- Sim, Angelo. Ainda tenho aquele problema com o escuro.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O diário de Iris - A vida não é um clichê.
Fanfiction(short story) O que pode acontecer depois de uma aposta infantil? Em seu diário, Íris - já adulta - irá registrar sua infância e adolescência. Aqui, ela compartilhará todos seus medos, experiências e principalmente, descobertas e decepções. Iris irá...