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Querido diário

Eu acordei com a luz da janela invadindo meu quarto com agressividade, e levou um tempo até eu perceber que o motivo disso era que o meu pai havia aberto as cortinas. Quase derrubei a bandeja de café da manhã que estava sobre minha cama, e o choque me fez perceber que eu tinha 18 anos agora.
- Bom dia, aniversariante - ele beijou o topo da minha cabeça e sentou ao meu lado, trazendo a bandeja para perto de nós.
- Dezoito anos, meu Deus. Como a gente conseguiu?
- Como você conseguiu?
- Eu não sei.

Era fato que eu não fazia a menor ideia de como havia conseguido chegar aos 18 anos, muito menos sabia como iria sair deles. Mas a sensação era boa, era como chegar ao topo de uma montanha e poder respirar um pouco antes da descida. Acho que essa é a mágica dos aniversários, a sensação de poder recomeçar.
Eu e ele, juntos, comemos e rimos. Falamos sobre as coisas que eu aprontava quando era pequena, tudo aquilo pareceu uma retrospectiva da minha vida.
Às vezes olho para trás e desejo que aquele dia tivesse acabado ali. Eu já estava na cama, e deveria ter ficado lá. Eu poderia ter terminado de comer, virado para o lado e ter voltado a dormir, mas não foi isso que eu fiz.
Mas haviam outras coisas que eu poderia ter feito.
Quando meu pai disse "Vou ao mercado" e saiu, eu poderia ter acompanhado ele. Eu poderia até mesmo ter dado uma volta pelo bairro, visitado alguém.
Mas eu não fiz nenhuma dessas coisas. Ao invés disso, fiquei em casa. E quando alguém bateu à porta, eu abri.
Uma mulher loira, de aparência esguia e cansada era quem batia na minha porta de forma impaciente e ensaiada, parecia ter esperado aquilo por anos. Seus olhos azuis encontraram os meus e foi como se eles fossem espelhos.
- Minha filha - ela disse.
"Que porra ela quis dizer com isso?", foi o que eu pensei. Talvez eu ainda não estivesse totalmente consciente.
- Sinto muito, acho que bateu na porta errada. Eu não...
- Você é minha filha. Minha Iris.
- Senhora, sinto muito. Isso é impossível, minha mãe faleceu muitos anos atrás.
- Me deixa entrar, por favor. Faz tanto, tanto tempo que eu não te vejo! Precisamos conversar.
Eu deixei, mas poderia simplesmente ter fechado a porta. Meu sangue começou a ferver, toda aquela situação começava a ficar clara na minha cabeça e despertava minha ira aos poucos. Meu lado passivo agressivo sempre despertava quando eu mais precisava dele.
- Você está enorme, e muito bonita! Eu posso... te abraçar?
- Você é uma estranha na minha casa. Então, não. Obrigada.
Ela pareceu ter levado uma alfinetada, literalmente.
- Moody me mandou mensagens, e-mails, alguns anos atrás. Ele disse que você queria saber mais sobre o seu passado.
- Então você trouxe meu passado em carne e osso. Não precisava se esforçar tanto, poderia só ter escrito uma carta,um e-mail ou, sei lá, me ignorado por mais 15 anos.
- Para com isso, filha. - ela enchia a boca para pronunciar essa palavra, como se tivesse algum direito de usá-la - Quis vir em pessoa ver como você estava, e responder suas perguntas, caso você tenha alguma.
- Ah, sim. Eu tenho uma pergunta sim. Você não tem vergonha?

O que antes foi uma alfinetada, se transformava em um martelo em sua consciência. Julietta parecia tão confortável quanto se estivesse de pé sob brasa.
A minha sala de estar virou um palco para todos os meus demônios que sempre sussurram que eu deveria ir atrás da minha mãe "de verdade". Nunca os dei razão, e não seria agora que eu choraria e aceitaria as desculpas vazias que ela teve a audácia de trazer em seus bolsos, achando que eu as engoliria.
- Por favor, um pouco mais de compreensão com a sua m-
- Não. Não ouse se referir a si mesma usando essa palavra. Você não tem dignidade o suficiente.
Percebi naquele momento que fazíamos uma espécie de dança lenta pela sala de estar. Ela tentava se aproximar, estendia os braços para mim enquanto eu me afastava, dando voltas pelo tapete.
- Você precisa entender que nada que eu fiz foi por opção minha.
- Então deveria ter contratado alguém melhor para ficar encarregado de tomar SUAS decisões e viver a SUA vida.
- Moody não te deu nenhuma educação, não foi mesmo?
- Tira o nome dele da sua boca. - eu me sentia enojada - Ele foi a única pessoa que eu tive por muito tempo. Ele foi a única pessoa que se preocupou comigo além da minha verdadeira mãe. Então, não ouse criticar nenhum aspecto da minha criação. Você não está em condições de julgar meu pai.
- Não percebe o quão egoísta você se tornou ao ponto de nem mesmo querer saber das circunstâncias que me levaram a fazer o que eu fiz? Iris, eu não sou um monstro.
- Não mesmo, Julietta. Você não é um monstro, nem mesmo um ser humano horrível, mas você nunca vai ser o tipo de pessoa que eu quero conviver.
- Você não quer saber, mas vai ter que ouvir! - ela me empurrou em direção ao sofá.
Hoje sei que não foi nada demais, mas no momento foi como se ela tivesse jogado um bloco de concreto em meu peito. Havia algo em sua forma de tocar, algo pesado, grosseiro.
- Eu era muito jovem - ela disse - ,essa parte você deve imaginar. Você também nunca teve um pai, eu fui abandonada assim que você começou a dar sinais de vida.
Ela sentou ao meu lado e eu me distanciei o máximo que consegui. Parece dramático, mas eu me sentia machucada. Julietta continuou:
- Eu pensava que precisava de mais alguém pra criar você ao meu lado. É claro, nós tínhamos a sua tia, mas...
- Mãe. - corrigi - Ruby era minha mãe.
Era estranho ouvi-la se referir a eu e ela como algo único. Nós. Não havia um nós.
- Tudo bem. Sua mãe nos ajudava bastante, mas foi difícil quando ela ficou doente. Eu achava que precisava achar um pai pra você o mais rápido possível. Rápido o suficiente para que ele estivesse presente nas suas primeiras memórias. Mas eu me perdi, Iris. Garotas novas que frequentam bares procurando um amor verdadeiro nem sempre se dão bem. Acabei encontrando outras coisas no caminho, e levaram muitos anos para que eu conseguisse ficar sóbria.
- Bela história, devia escrever um livro.
- Iris, eu juro que quis muito uma oportunidade para te ver novamente.
- Você teve mais de uma década de oportunidades e não aproveitou nenhuma. Você não é nem mesmo uma sombra do meu passado porque eu não tenho nenhuma memória com você. Olha, eu sinto muito que tenha passado por um momento difícil, eu também passei por vários. Mas não pode aparecer na minha porta esperando que eu te entregue perdão de mãos beijadas. Isso não vai acontecer.
- Você me deve isso.

O diário de Iris - A vida não é um clichê.Onde histórias criam vida. Descubra agora