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Querido diário

Ninguém soube de mim por semanas. De volta a minha casa, a única coisa que ocupava o meu tempo eram os meus livros e as sessões de filme todas as noites com meu pai. O trio de problemas tentava me animar durante o dia, mas a realidade é que eu não me sentia triste, ou abalada. Acredito que quando Estelle se foi, algo em mim foi junto dela, e aquele meu estado era o mais estável que eu conseguia alcançar sem o pedaço que me faltava.

Quando deixei Avonlea, meu mundo girava em torno de Angelo. Então veio a faculdade, todas aquelas pessoas novas, e Alexa. Era como se tudo isso fossem várias pilhas de casos que eu precisava solucionar, mas não sabia como definir um ponto de início. Quando eu era criança costumava a achar que os 18 anos eram uma idade de ouro, onde se deve ter tudo resolvido e estável, mas os meus 18 anos estavam chegando e ali estava eu, sentada em uma cadeira no quintal da casa dos Blythe ouvindo o meu pai estragar a comemoração do aniversário de casamento deles falando sobre como eu estava me saindo desde que havia voltado para casa como se eu não estivesse ali. As vozes deles se elevavam um pouco para se sobrepor ao aparelho de som e a gritaria das crianças na piscina. O mesmo grupo de amigos de sempre se reunia todos os anos naquela data, e nesse ano não foi diferente.
- Perder uma amiga não é nada fácil. - a voz de Anne parecia distante, quase como um eco - Quando eu perdi a Ruby, perdi a cabeça. Acabei namorando com o Roy e a gente sabe como a história acabou. Iris tá se saindo bem melhor do que eu.
- Não gosto nem de lembrar do nome desse cara. - Gilbert disse - Com todo respeito, espero que esteja queimando no inferno. Você tá bem, Iris?
- Sim, bem melhor agora que tô em casa.
- Ruby ficaria muito orgulhosa de como você está sendo forte, todos nós estamos - Anne disse.
- Obrigada - nem sei se essa era a coisa certa a se dizer.
Eles devem ter percebido que eu estava distante, e isso me constrangeu um pouco. Mas eles voltaram a conversar sobre como Ruby fazia falta e sobre o casamento de Anne e Gilbert, o que deixava meu pai totalmente deslocado.
Imergi em pensamentos novamente, deslizei os olhos por todas as pessoas que estavam ali. Fui sentar na beira da piscina, torrando sob o sol escaldante.
Alguns minutos depois, alguém sentou ao meu lado. Winifred sorriu para mim, nunca conversamos muito a ponto de sermos amigas, mas ela esteve presente o suficiente para que eu não a considerasse apenas uma colega.
- Você tá enorme - ela disse.
- Você também - apontei com o queixo para sua barriga redonda e pontuda, indicando que a família Rose aumentaria em breve.
- Podia ter deixado essa passar?
- Claro que não - eu ri.
- Minha filha ia ter o nome da sua mãe.
- E por que não vai mais?
- Porque é um menino, tonta.
- E a Nathalie aprova isso?
- Não sei bem. Ela disse que se fosse pra ser um menino era melhor termos pagado por um cachorro do que por uma inseminação artificial, o que você acha?
- Acho que ela está certa.
Ela riu. Winifred e eu tínhamos essa mania de achar que conversas absurdas eram o auge do humor.
- Brincadeiras a parte - ela disse - estamos bem felizes.
- Que bom.
- Tem alguma novidade? Alguma fofoca? Faz meses que nada de interessante acontece por aqui.
- Hmm, na verdade, sim.
- Fiquei tão empolgada que o bebê chutou.
- Eu e Angelo terminamos.
- Como assim, Iris? Eu achei que era pra sempre! Tipo os dois ali - ela direcionou o olhar para Anne e Gilbert.
- Você não sabe se eles dois são pra sempre. Eles estão felizes agora, mas quem sabe o que vai acontecer em alguns anos ou dias.
- Ah, não. Não vem com essa, não. Depois de tanto sufoco pra esses dois ficarem juntos, vai ter que ser pra sempre. Teve morte, teve sequestro, teve acidente de carro, teve namoro falso com a participação especial de euzinha... Não é possível! Me conta, o que aconteceu entre vocês.
A resposta era simples: não sei.
- A verdade é que eu nunca consegui deixar de ver Angelo como meu melhor amigo.
Omiti a parte onde eu usei um erro dele como justificativa para acabar com tudo, porque não existia um motivo concreto.
- Ah, essas coisas acontecem.
Também não contei sobre a parte de que ter beijado uma garota durante o furacão mudou bastante minha percepção sobre aquele relacionamento.
- Se você acha que foi a coisa certa... - ela continuou falando.
Meu relacionamento tinha sido sobre atração ou sobre conveniência? Eu não tinha como ter certeza. E o que aconteceu com Alexa, tinha significado alguma coisa?
Com certeza tinha.
Beijos sem significado não deixam sua boca formigando a noite toda, não deixam uma imagem gravada em sua mente e borboletas causando hematomas em seu estômago.
Também não te fazem terminar um namoro.
- Ei, você tá me ouvindo?
- Win, deixa eu te perguntar uma coisa. Como você e a Nathalie acabaram juntas?
- Eita. Bom, não é uma história de amor ideal, se é isso que você tá procurando. Eu e ela éramos amigas do Gilbert e ele queria que nós duas fôssemos madrinhas de casamento dele. No dia da festa de noivado, a gente se conheceu e, uau. Uma taça de vinho foi suficiente pra gente acabar dentro do meu carro. Vou te poupar dos detalhes.
- Agradeço.
- Sei lá. Ela foi a primeira pessoa que me ouviu depois de muito tempo. Eu trabalhava muito, me preocupava muito com tudo e todo mundo que cruzou meu caminho durante esse período não teve muita paciência pra lidar com isso. Eu sentia tanta falta de algo real que de alguma forma me contentei em entrar em um relacionamento falso com o desmiolado do Gilbert, porque era a coisa mais próxima de um amor verdadeiro que eu achava que podia conseguir. Mas aí, ela apareceu, e eu me agarrei a ela como uma oportunidade que só se aparece uma vez na vida. Talvez eu não estivesse errada. E deu certo!
- Isso foi tudo muito...
- Lindo.
- Meloso.
- Você não é nada romântica. Deve ser por isso que o Angelo te deixou.
- Não que te interesse, mas fui em que terminei com ele.
- Vou fingir que você não tá tentando aumentar sua credibilidade.
- Mais uma pergunta.
- Fala, mariposa.
- Mariposa?
- Mariposa, borboletinha, barata voadora, sei lá.
- Você é ridícula.
- Pergunta logo, libélula.
- Como eu conto pro meu pai que sou bissexual?
Falei, sem tabu. Não queria fazer um grande caso acerca daquilo, mas acho que Winifred ignorou totalmente isso.
- O que?!
- O que o que, mulher?!
- Você?!
- É, provavelmente.
- Não que eu esteja chocada, mas eu tô. Você tem certeza?
- Sim e não.
- Isso é um não. Ok. Ai meu deus! - ela parecia que ia explodir em glitter rosa, roxo e azul a qualquer momento - Ok, mariposa. Você precisa pensar bem sobre isso, por você. Está tudo bem ter um pouco de duvida, confia em mim. Quanto ao seu pai, eu tenho certeza que ele vai ficar feliz por você. Você pode chegar dizendo: "Oi, pai! Você sabe por que um bissexual nunca termina uma piada?", e deixar o resto com ele, ele é bem inteligente. Você também pode perguntar a ele se ele consegue adivinhar qual dos filhos dele é bi, e quando ele disser "Mas Iris, você é filha única!" - ela imitou a voz do meu pai direitinho -, você abre uma bandeira bissexual bem grande e grita "Surpresa!". Eu tenho uma, se você quiser emprestada.
- Eu só consegui processar a primeira frase de tudo o que você disse, vai com calma.
- Ou... Você pode sentar com ele, com um chá ou sei lá o que vocês gostem de beber, e abrir seu coração.
- Eu preferi essa opção, mas não vou descartar a ideia da bandeira.
- Eu estou feliz que tenha confiado em mim para se abrir sobre isso.
Ela voltou a sorrir para mim, e percebi que apesar de nunca ter sabido qual a sensação de ter sua mãe sorrindo para você, aquele era o sorriso que Anne tinha no rosto ao olhar para os gêmeos, também era como a mãe de Angelo olha para ele, e como Diana olhava para LaBelle.
- Você vai ser uma ótima mãe.
- Você vai ser uma ótima bissexual.
- Isso não faz nenhum sentido.
- Cala a boca - e então, ela me abraçou.

Ensaiei e re-ensaiei discursos e mais discursos na frente do espelho por dias. Reinventei a reação do meu pai em diversos cenários, todas positivas, é claro. A ideia de uma reação negativa fazia minhas mãos soarem e minha cabeça rodar. Sentamos no sofá na noite do meu aniversário para ver um filme, pois de alguma maneira ainda não tínhamos visto todos os filmes existentes no mundo, isso chegava a me surpreender.
Ele me envolveu com seu braço, e naquele momento, eu sabia o que estava por vir.
- Iris, eu tô sentindo que você anda preocupada com alguma coisa.
- Você é bem sensitivo.
- Eu não sei o que é, mas sei que se você não me contou ainda é porque tem um motivo. Acho que não preciso nem dizer que o seu pai está aqui para o que você precisar.
- Eu sei, pai. Na verdade, tem uma coisa acontecendo sim.
- Estou ouvindo.
Respirei fundo, era agora ou nunca.
- Uma das coisas que eu mais amo sobre ter crescido aqui com você é que você nunca colocou um limite em quem eu poderia ser. Você sempre me deu todo o suporte, e carinho, e amor, e incentivo que eu precisei. Seus esforços pra que nada me fizesse falta foram extraordinários, e eu não faço ideia se existe alguma coisa que eu possa fazer ou dizer que possa transmitir a gratidão que eu sinto por você ter tomado pra si o fardo de ser meu pai. Graças a você e a liberdade que você me concedeu para ser o melhor que eu posso ser, eu me sinto segura em abrir meu coração para você e finalmente te contar que eu sou bissexual. Não existem mais dúvidas em mim, e eu não tenho nenhum conflito interno sobre isso. Agora eu preciso que você diga alguma coisa.

Não percebi, mas minha visão já estava ficando embaçada com tanto ar preso em meu peito.
- Às vezes eu acho que vim ao mundo pra te proteger, porque foi isso que deu sentido a minha vida quando já não existia nenhum. Às vezes eu tenho medo de ter cometido algum erro, mas agora, vendo você falar tão imponente e decidida, tão bem resolvida... Eu vejo que eu fiz tudo certo. Eu fico muito feliz que você tenha conseguido se abrir comigo sobre isso. Eu amo você, e nada pode mudar isso.
- Obrigada - consegui respirar novamente quando meu pai deu uma risada.
- E você nem chorou. Isso é impressionante, acho que você já é uma mocinha.
- Pai!

Eu não chorei. Não na frente dele, é claro. Mas no silêncio da noite, eu não pude evitar. Eu nem mesmo sabia o motivo de tantas lágrimas, talvez alívio. Eu nunca havia me questionado o motivo de eu ser diferente por um motivo: eu não era diferente, eu era apenas mais uma. O que eu sinto e por quem eu sinto não me torna distinta, mas esse pequeno detalhe sobre mim adicionado a todas minhas outras características, sim, me tornam única e distinguível. Eu sou como um baú de surpresas, cujo eu mesma ainda tenho muita coisa pra descobrir.

O diário de Iris - A vida não é um clichê.Onde histórias criam vida. Descubra agora