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Querido diário, Minha amizade com Angelo não virou de cabeça para baixo depois de termos nos beijado, aconteceu exatamente o contrário. Foi como se aquilo já fosse habitual há muito tempo.

Não falávamos diretamente sobre o assunto, mas também não o ignoramos.

Voltando a noite que nos beijamos pela primeira vez. Após nos separarmos, encaramos o chão por alguns instantes. Não olhei para ele, mas pela visão periférica consegui ver que ele estava sorrindo. Eu simplesmente não sabia o que sentir, as borboletas no meu estômago pareciam querer me dilacerar.

Depois de muito silêncio, ele pega na minha mão e a acaricia, olha para mim e diz:

- A gente não precisa fazer isso de novo, ou falar sobre isso. A não ser que você queira, é claro.

Eu tinha 17 anos, estava prestes a ir para a faculdade e nunca havia beijado ninguém, enquanto todos meus poucos amigos eram praticamente sexualmente ativos. Angelo era um cara legal e bonito e se ele havia me beijado, devia significar que ele gostava de mim. Logo, isso significava que eu também deveria gostar dele, certo? A resposta que recebi de mim mesma na hora foi "sim". Não me dei tempo de analisar e pensar sobre meus sentimentos, sobre o que estava em jogo ali ou o que nos tornaríamos depois daquilo. Apenas o puxei para mais perto e o beijei de novo.

E aquilo seguiu acontecendo, de novo e de novo. Nossos beijos foram de raros e incertos para constantes e intensos. Nos encontrávamos na casa dele para "conversar", na minha casa para "estudar", saíamos juntos para "dar uma volta" e acabávamos nos agarrando contra uma parede ou no chão de madeira gelado.

Era bom porque eu não precisava ficar pensando em assuntos para preencher o silêncio pois nossas bocas estavam quase sempre ocupadas. Mas um dia, estávamos no parque tomando sorvete e ignorando a temperatura que se aproximava de 0° e eu tentei beijá-lo. Ele se afastou.

- Espera - ele disse.

- O que foi?

- Eu preciso saber uma coisa. 

- Então pergunta.

- Isso - ele apontou para mim, depois para si mesmo. - O que significa? 

- Como assim? 

- Nos beijamos e dizemos que somos amigos, só que amigos não sentem pelos amigos o que eu sinto por você - ele falou devagar, pois gaguejava quando ficava nervoso. - E eu não sei você, mas eu não tenho nenhum outro amigo que deixe morrendo de vontade de fazer isso.

E então, ele aproximou sua mão gelada da minha nuca e juntou nossos lábios. Quando olhei pra ele, vi que seu rosto estava todo vermelho e não soube dizer se era de vergonha ou pelo frio.

- Diz alguma coisa - ele pediu.

E eu não sabia o que dizer. Eu também estava sem graça, tudo era muito novo e eu não sabia como reagir.

- Quer que eu seja sua namorada?

- Você quer?

- Você quer que eu seja?

- Podemos não fingir que essa pergunta é uma batata quente e responder logo ela?

Minha impulsividade era algo que merecia ter recebido um pouco de atenção, porque se eu tivesse aprendido a controlá-la, muita dor teria sido evitada.

- Sim - eu falei-, eu quero ser sua namorada.

- Então sim, quero que seja minha namorada.

- Isso nos torna namorados?

- Acho que sim - ele virou de frente para mim e pegou nas minhas mãos, tirou um dos anéis que ele usava e colocou em meu dedo médio. Seu sorriso parecia ter travado em seus lábios. - É só pra simbolizar. Não precisa usar se não quiser, mas agora é seu.

O anel era de prata e tinha um formato ondulado, ficou meio frouxo no meu dedo mas fiquei com ele mesmo assim.

- Obrigada, é... amor? - eu ri. - Será que isso é uma boa idéia? Quer dizer... Tenho medo de que isso acabe magoando um de nós, especificamente você.

- Aposto que não conseguiria me machucar nem se quisesse - ele sorriu.

- Aposto que conseguiria.

Apostas são algo perigoso pois só existem três finais para elas: ou esquece, ou você ganha, ou você perde. Naquele caso, eu não queria ganhar.

Angelo me deixou em casa, e por coincidência do destino, meu pai estava esperando a gente. Ele cumprimentou Angelo como normalmente fazia e eu me despedi dele com um aceno. Quando a porta fechou, meu pai cruzou os braços e me olhou dos pés à cabeça, dando um risinho.

- Então, estão namorando ou você vai enrolar ele igual Anne enrolou o Gilbert por sei lá quantos anos?

- Acho que estamos namorando. - eu também ri - Como assim Anne enrolou o Gilbert?

Sentei no sofá e meu pai sentou ao meu lado, apoiando os pés na mesinha de centro. 

- Nunca ouviu a história? 

- Não tenho certeza.

- Eles prometeram que ficariam juntos caso não encontrassem ninguém, e muita coisa aconteceu depois disso. Gilbert precisou sofrer um acidente pra que Anne percebesse que amava ele. Foram tempos difíceis, mas fico feliz que tenha encontrado um amor sem tanta dificuldade.

- É, acho que eu também... - Falei, incerta.

- Ele te trata bem?

- Sim, claro! Você sabe... É o Angelo. Ele não faria mal nem a uma mosca.

- Assim espero. 

Ele falou muito sobre como o amor deve ser seguro e paciente e várias outras coisas. E eu, claro, prestei atenção em tudo. Meu pai raramente desembestava a falar daquela forma, e aquele momento acabou se tornando especial mesmo sendo uma coisa tão banal como uma conversa entre pai e filha.

- Não sei se esse é o tipo de história que você gostaria de ouvir, mas também conheci Ruby na escola.

- Você nunca me contou essa história, sempre tive dúvidas sobre como tudo aconteceu. Pode me contar, se quiser.

- É engraçado lembrar, éramos muito novos. Não houve uma aposta ou uma promessa, mas tinha sentimento - ele encarava o vazio e respirava fundo entre uma frase e outra, eu sentia como se ele estivesse abrindo uma ferida. - O que sentíamos um pelo outro era o que fazia a gente se reencontrar, não importa quão longe a gente fosse. Já te contei que morei em Amsterdã por um tempo depois de me formar? - parecia uma pergunta retórica, então não respondi - Devo ter falado. Mas acabei voltando pra cá, e reencontrei ela depois de uns bons anos. Inclusive, você estava com ela a maioria das vezes que nos encontrávamos. Eu simplesmente não imaginava que um dia seria seu pai. 

Encostei a cabeça em seu ombro e ele me abraçou, e eu só conseguia pensar que jamais conseguiria colocar em palavras como ele era o melhor pai do mundo.

- Ela foi a melhor pessoa que eu já conheci. - ele continuou falando - Vivemos uma vida inteira em alguns anos, e então...

- Eu sei. Essa parte eu sei, não precisa falar. Sinto muito que tenha passado por isso, pai. Você não merecia isso, nem ela.

- Não é sobre merecer, sabe Iris? É sobre o que isso causou em mim e em você também. Eu amei ela mais que tudo, fomos felizes em cada momento que estivemos juntos. Então perdi ela, mas ganhei você, e tudo ficou melhor. Eu tive o amor que faria diferença na minha vida, e todos merecem isso. Você merece isso. Espero que seja feliz com Angelo como fui com a sua mãe.

- Obrigada, pai. Eu amo você.

- Amo muito você. Agora recomendo que vá dormir, depois que for para a faculdade, uma boa noite de sono vai ser raridade.

Levantei para ir para o quarto, e quando olhei para trás antes de virar no corredor, vi meu pai enxugando os olhos.

Eu nunca fui muito religiosa, meu pai me deu a liberdade de seguir a fé que me fizesse bem. Apesar disso, eu lia a bíblia por curiosidade algumas vezes. 

Se existisse a bíblia da minha vida, esse seria um dos versículos:

"Iris começou a namorar com o melhor amigo, e viu que era bom"

E alguns capítulos depois, haveria um dilúvio de sentimentos incompreendidos.

O diário de Iris - A vida não é um clichê.Onde histórias criam vida. Descubra agora