A sensação de desespero pode anular todas as outras, por isso, não lembro bem o que senti naquele dia além do medo. Lembro de pessoas correndo por todos os lados, alarmes tocando a todo instante e lembretes fazendo celulares vibrarem muitas vezes em um curto período de tempo. Essa era a atmosfera que começava a se formar em toda a universidade, que contrastava muito com o clima lá fora. O céu totalmente limpo e predominado por um azul que me lembrava o mar não denunciava o que estava por vir.
O auditório A - onde eu estava - já estava lotando, e o B não tinha espaço para mais nenhuma formiga. Os coordenadores e professores tentavam organizar grupos, mas o barulho das vozes amedrontadas preenchia o lugar de uma forma que não era possível entender uma frase completa.Eu, Angelo, Alexa, Estelle, e outros dois garotos ficamos juntos, e montamos um acampamento improvisado. Todos nos ocupávamos com algo que impedisse nossa mente de colapsar, celulares, kindles, livros e qualquer coisa que não fosse a pessoa ao nosso lado. Apesar de tudo, eu me sentia aliviada por Angelo ter cumprido sua palavra e estar lá comigo. O sentimento durou até ele se levantar, ainda com o rosto no celular.
- Eu esqueci umas coisas no quarto, preciso ir buscar.
- Você vai voltar pra cá? - perguntei, imaginando que a resposta não iria condizer com a realidade.
- Sim - ele respondeu antes de desaparecer na confusão de pessoas entrando e saindo.
Eu não sabia o que pensar ou sentir, o barulho das pessoas silenciava meus pensamentos e me deixava confusa. Encostei a cabeça na parede e fechei os olhos, esperando que quando abrisse, tudo já tivesse acabado. De uma maneira boa ou ruim.
Das janelas pequenas de vidro que ficavam no alto, eu já conseguia ver o céu ganhando um tom acinzentado, e as árvores balançando em uma velocidade que eu nunca havia visto antes. Simplesmente não parecia ser natural, apesar de ser apenas a natureza fazendo seu trabalho.Onde você tá?
Fecharam o auditório B. Não estão deixando ninguém sair.Eu tentei entender a razão que levou Angelo até o outro auditório. Ele não tinha ido até o próprio quarto? Como ele foi parar lá?
Eu já conseguia ouvir a ventania se aproximando. Galhos quebrados batiam do lado de fora, e a sensação que tínhamos era que choviam pedras. Aos poucos, o barulho aumentou e passou a vir totalmente do lado de fora, pois todos estavam com medo demais para falar. O sinal de celular e a energia ainda estavam funcionando, o que me impediu de entrar em desespero total. Estelle sabia o motivo de eu estar agarrada aos meus joelhos como se eles fossem o que iria me salvar e fazendo preces silenciosas para que a energia não caísse, então sentou-se ao meu lado. Alexa fez o mesmo, me deixando entre ela e Estelle como se eu fosse uma barreira entre as intrigas delas.
- Eu sei o que rolou. - Alexa disse, um pouco alto para que sua voz se sobrepusesse ao barulho de fora -, Desculpa, mas eu ouvi você e o Angelo conversando. Sem querer me intrometer, mas já me intrometendo, não acho justo o que ele fez.
Alexa parecia estar mais brava com ele do que eu, muito provavelmente por causa do espírito de defensora que ela tem. Estelle não entendeu sobre o que ela falava e a olhou pedindo uma explicação, Alexa estava tão irritada que esqueceu totalmente de que não pretendia falar com Estelle.
- Angelo prometeu que estaria com ela agora - Alexa disse -, e onde ele está? Não sei, mas não aqui. Sinceramente, alguma coisa me dizia que esse cara não presta. Sempre coloquei esparadrapo no umbigo quando ia pras mesmas aulas que ele.
- Tá brincando que você ainda faz isso - Estelle disse. - Achei que sua fase hippie fosse passar.
- Não é uma fase, Estelle. É um estilo de vida. E esse não é o foco.
- Concordo. E você não precisa ficar mal por isso, Iris. Você tem a gente aqui, ficar sem ele não vai fazer tanta diferença, vai?
- Espero que não - respondi.
- Ele saiu tão apressado que deixou as próprias coisas aqui. - Alexa apontou para uma mochila que Angelo havia deixado para trás - Espero que seja lá o que estiver dentro dessa bolsa faça bastante falta pra ele.Nunca vou ser capaz de descrever o que senti quando as luzes começaram a falhar. Além do vento forte e dos cochichos distantes, eu ouvia gritos. Pior do que ouvir gritos, é se tocar de que eles saem da sua boca e que você não consegue controlar.
Tapei os ouvidos irracionalmente, tentando não ouvir a voz desesperada, mas ela estava dentro da minha cabeça. E era proporcional aos barulhos externos que eram insuportavelmente altos. As pessoas mandavam eu me calar, e pediam para quem estivesse perto de mim desse um jeito de me acalmar. Eu queria que fosse fácil, mas tudo que eu via e sentia era uma névoa que me rasgava por dentro.
Tão assustada quanto eu, Estelle me abraçou, assim como na primeira vez que estivemos em perigo. O meu choro era alto e abafado pelo meu próprio braço, que eu usava como um apoio.
Em algum momento, além do meu choro e do vento, escutei uma voz sussurrando ao meu ouvido.So am I insane or do I really see heaven in your eyes? / Bright as stars that shine up above you / In the clear blue sky, how I worry bout you / Just can't live my life without you / Baby come here, don't have no fear / Oh, is there wonder why / I'm really feeling in the mood for love
So tell me why, stop to think about this weather, my dear / This little dream might fade away / There I go talking out of my head again baby won't you / come and put our two hearts together / That would make me strong and brave / Oh, when we are one, I'm not afraid, I'm not afraid / If there's a cloud up above us / Go on and let in rain
I'm sure our love together would endure a hurricane / Oh my baby won't you please let me love you / and get a release from this awful misery.Então, estou louco ou realmente vejo o céu em seus olhos? / Brilhantes como as estrelas que brilham acima de você / No céu azul claro, como me preocupo com você / Só não posso viver minha vida sem você / Querida, venha aqui, não tenha medo / Oh, não há dúvida de que / Estou realmente com vontade de amar
Então me diga por que, pare para pensar sobre esse tempo, minha querida / Este pequeno sonho pode desaparecer / Lá vou eu falando da minha cabeça de novo, baby, você não vai / vir e colocar nossos dois corações juntos / Isso me faria forte e corajoso / Oh, quando somos um, não tenho medo, não tenho medo / Se houver uma nuvem acima de nós / Vá em frente e deixe a chuva entrar
Tenho certeza de que nosso amor juntos suportaria um furacão / Oh meu amor, por favor, deixe-me amá-lo / e obter uma libertação desta terrível miséria.A última música que minha mãe - a minha mãe verdadeira - cantou para o meu pai. Ele vivia escutando essa música quando estava mal, e quando estava bem também. Só aí consegui entender o porquê. Aos poucos, percebi que fazia um tempo que eu não respirava direito, então respirei fundo.
O ar entrando em meus pulmões me causou um alívio físico, e a voz de Estelle me causou um alívio na alma.
Acho que elas não perceberam, mas Estelle e Alexa colocaram a cabeça no meu ombro ao mesmo tempo, e suas mãos se tocaram sob meu joelho. Fiquei feliz por ter involuntariamente ajudado Estelle em não ser odiada por Alexa, pelo menos não naquele momento e não explicitamente.Quando pensei que todos estavam dormindo, peguei uma lanterna e fui até o banheiro para lavar o rosto. Na verdade, isso era o que eu planejava fazer. Ao sentir o silêncio do ambiente fechado e a água gelada deslizando em meu rosto, o choro me sufocou novamente, mas dessa vez eu não poderia dar um motivo.
Talvez eu só fosse um bebê chorão que não ligava para os motivos, só precisava colocar tudo pra fora de alguma forma.
A porta se abriu e Alexa entrou devagar, quase me assustando.
- Você tá bem? - ela perguntou.
- Sim.
- Não parece.
- Então por que perguntou? - percebi que havia falado isso de uma forma mais ríspida do que realmente pretendia - Desculpa. Eu estou tensa, é só isso. Esse barulho não acaba nunca, não é?
- É, tudo bem. Parece que já vai acabar. Entendo que esteja tensa, é complicado. - ela se aproximava de mim lentamente, mas a única coisa que eu conseguia ver era um vulto com a sua silhueta desenhada.
- Eu só consigo pensar no meu pai e nos meus amigos. É claro, Angelo também. Mas ele não é o que mais me incomoda.
- Iris.
- Não é louco pensar que depois de tanto tempo, eu revi Estelle em uma situação como essa? Eu tinha falado com ela vindo pra cá. Você já imaginou que viveria algo assim? - eu falava cada vez mais freneticamente, minhas mãos estavam ficando geladas apesar de aquele banheiro estar ficando extremamente quente.
- Iris.
- Eu não. Nunca, em um milhão de anos eu imaginei que viveria isso. Será que estou sendo dramática? Desastres naturais acontecem o tempo todo, não é? Mas tinha que ser logo aqui, logo agora? Eu nem sei direito quais são os riscos! A gente está seguro agora, não sei quanto, mas teoricamente estamos. Então, o que vem depois? O que pode nos matar? O que me assusta tanto? A gente sobreviveu a porra de uma pandemia, eu não acredito que-
Quero deixar explícito que eu parei de falar apenas porque fui interrompida pelos braços de Alexa puxando os meus - que eu não sabia que estavam tão colados ao meu corpo até sentir o vazio que eles deixaram ao meu redor ser preenchido pelo corpo dela cada vez mais próximo ao meu. Uma de suas mãos ocupou a curva do meu pescoço, com o dedão posicionado em minha bochecha. Toda a névoa que tornava meus pensamentos confusos se dissipou quando seus lábios e os meus entraram em contato de forma eletrizante, me causando arrepios. De forma rápida, ela se afastou apenas o suficiente para conseguir falar:
- Imaginei que isso fosse te calar, mas também pode aliviar sua tensão.
Sem analisar muito a situação, apenas a beijei novamente. E não surpreendentemente, enquanto estávamos apenas nós duas no escuro com as mãos ocupadas -hora na cintura, hora no pescoço, hora na mão uma da outra -, foi difícil ligar para o barulho lá fora.
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O diário de Iris - A vida não é um clichê.
Fanfiction(short story) O que pode acontecer depois de uma aposta infantil? Em seu diário, Íris - já adulta - irá registrar sua infância e adolescência. Aqui, ela compartilhará todos seus medos, experiências e principalmente, descobertas e decepções. Iris irá...