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Querido diário, aquela foi a nossa primeira briga séria.

Caminhamos pelo campus por alguns minutos, sendo cortados pelo vento frio, me arrependi de ter deixado a jaqueta para trás.
- O que você quer conversar? - perguntei.
- Acho que você entendeu algo errado, olha...
- O que eu deveria entender, afinal? Você desapareceu por horas e apareceu com alguém , inclusive, vocês pareciam bem próximos.
- Ela é uma amiga, Iris.
- Nós também éramos amigos.
- Você entendeu o que eu quis dizer, e eu juro pra você que não tem nada demais. Não te respondi por que meu celular ficou sem sinal, você sabe que o sinal aqui é horrível. Precisa acreditar em mim.
Eu sabia que precisava acreditar nele, mas minha teimosia ardeu quando ouvi ele pedir aquilo.
- Isso não explica sua mão na cintura dela - argumentei.
- Você sabe que eu tenho essa mania - ele riu -, ou esqueceu de quando botei a mão na cintura de Estelle e ela quase quebrou meu nariz com uma cotovelada?

Era verdade, Estelle odiava ser tocada por qualquer pessoa que não fizessem parte do grupo que ela escolheu a dedo para permitir que encostasse nela. Eu estava nesse grupo de pessoas, Angelo não. Descobrimos isso enquanto Angelo estancava o sangue no nariz com várias bolas de algodão.
Me rendi. Não adiantava ficar brava com ele. O vento frio me fez tremer, ele percebeu isso e se aproximou de mim devagar, como se esperasse uma objeção.
- Desculpa - ele me abraçou.
- Tudo bem. É só que a gente tem estado meio... distante.
- Distante. - ele repetiu - É verdade, me desculpa por isso também. A gente pode tentar melhorar isso se você quiser.
Seus braços quentes ao meu redor causavam um choque térmico que me causava arrepios, que se intensificaram pela sua voz rouca. Encostei minha cabeça em seu peito e só encarei a grama verde, que brilhava pelas gotinhas de chuva isoladas que caiam.
- É.
- Você ainda parece chateada.
- Não estou. Só estou um pouco cansada.
- A música que você cantou, muito bem por sinal, tinha alguma coisa a ver com essa... situação?
- Acho melhor eu ir pro meu quarto, a gente se vê depois.
Tentei me virar para ir embora, mas ele segurou meu braço. A forma gentil com que ele me tocou me fez virar e encará-lo. Seus olhos me diziam que algo estava morrendo, algo estava apagando, mas ele me beijou. Seu beijo era gelado por causa do clima, e frio por culpa do que estava acontecendo entre a gente.
Ele me observou ir embora, embora eu sentisse que haviam milhares de coisas presas em sua garganta.

Voltei ao apartamento onde a festa acontecia para pegar minha jaqueta, e encontrei Alexa adormecida no sofá. Balancei seus ombros para acordá-la e ela murmurou alguma coisa enquanto abria os olhos.
- Você não acha melhor dormir na sua própria cama? - perguntei, e ela começou a chorar.
Fiquei confusa, ela se endireitou no sofá e começou a chorar mais ainda, com as mãos no rosto.
- Ei - sentei ao lado dela, colocando a mão em seu ombro -, o que aconteceu?
Ela só chorava mais e mais, e limpava o rosto como se estivesse envergonhada, igual uma criança. Prendi todo o cabelo cacheado que grudava na pele dela como se ela de fato fosse uma criança.
- O que houve? - perguntei, de novo.
- Não lembro o caminho do meu quarto - ela falou entre soluços, e eu me segurei para não rir.
- Alexa, eu estou indo pra lá agora. Quer vir comigo.
Ela concordou e levantou com dificuldade, mas eu já tinha percebido bem antes que ela estava completamente bêbada, então a ajudei.
- Você tá bem? - perguntei, enquanto cruzávamos o gramado do campo de futebol.
- Ótima. - ela conseguiu responder sem fungar - Aquele cara é seu namorado?
- Ele é.
- Acho que você merecia coisa melhor, ele é um babaca.
- Por que você acha isso?
- Eu sinto.
- Já viu ele fazendo alguma coisa?
- Não, mas não gosto dele.
- Ah, mas eu gosto.
- Você é estranha.
- Obrigada, você também.

Consegui levar ela até o quarto e colocá-la na cama com dificuldade. Quando eu estava quase na minha cama, ela começou a chorar de novo. "Ignora, ela está bêbada.", pensei. "Deve ser outra coisa que não faz nenhum sentido". Voltei até a cama dela.
- O que aconteceu agora?
- Eu... Eu tô com muita saudade de casa - ela voltou a soluçar, e eu senti dó. Para colocar em palavras mais bonitas, senti empatia. Sentei ao seu lado e ela apoiou a cabeça no meu colo. Pensei por um tempo sobre o que dizer, e nem sei por que fiz isso. Provavelmente no dia seguinte ela não lembraria de nada.
- Eu também sinto. Estar aqui é muito bom, acho que você também pensa isso. Mas estando aqui, não consigo ter certeza se o meu pai está bem. Sinto falta de Bertha, Ben e LaBelle me pedindo pra encobrir as besteiras que eles fazem, sinto falta de Anne repetindo conselhos pra mim e Gilbert me tratando como se eu não tivesse crescido. Aqui, eu e Angelo não somos o casalzinho perfeito que éramos em Avonlea. É como se todas essas coisas que nem sei definir o que são interferissem na nossa conexão.
Quando percebi, já havia desabafado metade da minha vida com ela. Minhas costas estavam apoiadas na cabeceira da cama, e a cabeça dela estava no meu colo. Eu conseguia ouvir sua respiração ecoar no quarto escuro e silencioso.
Eu havia acabado de desabafar com a minha colega de quarto que estava tão bêbada que não dava pra ter certeza se ela iria acordar no dia seguinte.

Mas eu acordei, e com um susto que permaneceu me apavorando até eu lembrar que era um sábado. Alexa ainda dormia, então eu saí da cama dela com cuidado, tomei um banho e fui para o refeitório. Fui de cara no celular, atualizando as redes sociais e me atualizando sobre o que acontecia no mundo. Vi um ou dois snaps que mostravam eu e Alexa cantando, e era engraçada a forma como não parecia que aquela era a primeira vez que conversávamos de verdade.

Li algumas mensagens do meu pai e procurei por alguma de Angelo. Não achei. Tentei engolir uma xícara de café que não tinha gosto de nada enquanto encarava o campus molhado através da janela de vidro. Não havia sol naquela manhã, e os cantos do vidro embaçavam devagar.
A rádio da universidade começou a sua programação, listando as notícias daquele dia. Geralmente, eu não prestava atenção porque nunca chegava no refeitório a tempo. Mas naquele dia eu estava ali, e bem na hora de ouvir o comunicado.

"O furacão que recebeu o nome de Luisa se aproxima do litoral da Ilha do Prince Edward com ventos de aproximadamente 130km/h. Até o momento, o que sabemos é que ele não tem tendências de chegar a ser um categoria 4, o que seria devastador para a ilha. Fiquem atentos ao site da faculdade para mais notícias, traremos atualizações em breve. Agora vamos para o horóscopo do dia!"

Alertas foram enviados para todos os celulares ainda naquela manhã, exigindo a presença de todos os alunos no auditório. Eu não conseguia encontrar Alexa ou Angelo em canto nenhum. Aquilo havia me assustado, como se a qualquer momento uma tempestade fosse desestabilizar o chão onde meus pés pisavam.
A reunião foi breve, e nem todos os alunos estavam presentes.
- Sei que é uma situação desesperadora, mas vocês não precisam entrar em pânico - disse a professora que foi escolhida para representar todo o corpo docente, apesar de tentar nos tranquilizar, ela andava de um lado para o outro e suava como se ela mesma fosse entrar em um colapso nervoso a qualquer instante. - Nossa estrutura é preparada para aguentar esse tipo de situação, teremos o suporte e as condições necessárias para nos mantermos seguros. A previsão é que o Luisa passe por nós na terça, então preparem-se até lá. Folhetos estão sendo distribuídos e links de sites especializados nisso serão enviados para todos vocês.

Eu estava morrendo de medo, e não havia ninguém em quem eu pudesse me apoiar ou desabar naquele momento.

O diário de Iris - A vida não é um clichê.Onde histórias criam vida. Descubra agora