- Ah, ele não era um bêbado qualquer - Suly saiu da sua posição se escorando no assento com os braços cruzados. - Não mesmo - sussurrou mais pra si do que para os outros, e então suspirou enquanto levantava a cabeça encarando os olhos escuros que a fitavam esperando uma resposta. - Eu tinha doze anos quando um cantor que eu gostava muito veio na minha cidade... Por ser um lugar relativamente pequeno artistas grandes não costumam fazer esse tipo de coisa, mas ele ainda estava em ascensão. Eu fazia parte de um fã clube, e como tais, achávamos que ele seria a próxima grande revelação musical do ano. O show foi um grande evento para comemorar a inauguração de um ginásio que tinha sido reformado. Hoje eu acho que foi pura lavagem de dinheiro já que ele não era tão famoso a ponto de ter um cachê daquele tamanho, mas obviamente na época nem me liguei nisso."
"Minha mãe me levou nesse evento... ela passou a gostar das músicas e até cantou algumas junto comigo e minhas amigas. Antes, quando ela me via escutando as músicas dele costumava dizer que não eram tão boas quanto eu argumentava serem - ela suspirou fazendo uma pausa. - Foi... um dia inesquecível... - sua expressão de alegria se fechou logo depois - Sim, inesquecível de várias formas"
"Quando o show acabou pedi minha mãe que esperasse mais um pouco para que eu tirasse uma foto com ele, então depois de relutar afirmando que precisava ir embora, acabou cedendo à minha insistência e me autorizou a ir. Sendo parte do fã-clube, acabei conseguindo uma pequena vantagem e assim que possível fomos para a fila esperar nossa vez. Não demorou muito, mas quando acabou já tinha anoitecido."
"Saímos de lá assim que possível, paramos por um momento e compramos um sorvete, e então no caminho pra casa... enfim, andávamos por uma rua tranquila quando minha mãe reclamou de alguma coisa. Desviei minha atenção do sorvete que estava tomando e enxerguei um homem barbudo e gordo, ele estava cambaleando e falando arrastado. Ele reclamou da batida, acusou minha mãe de ter feito aquilo de propósito e então agarrou sua blusa, ela começou a gritar e ele juntou as mãos em volta dela. Eu gritei, arremessei o sorvete na sua direção e quando avancei para bater nele ou fazer alguma coisa, qualquer coisa, ele me deu um chute no peito e eu acabei caindo de costas. Bati a cabeça no meio fio e fiquei tonta, enquanto isso escutava minha mãe gritando muito, bem alto, e sendo arrastada para dentro de um pátio escuro. Então os gritos ficaram muito muito mais baixos, quase não dava pra ouvir. Quando consegui me levantar fui atrás, mas não entrei pois o estranho tinha derrubado alguma coisa na frente da porta que era pesado demais para eu empurrar."
"Bati algumas vezes no material e tentei empurrar mesmo assim, mas como não estava fazendo efeito resolvi procurar ajuda. Corri pela rua gritando e olhando as janelas e portas na esperança de que alguém aparecesse. Por metros não houve ninguém, até que um porteiro saiu de dentro de um prédio olhando para os lados procurando a origem da gritaria."
"Lembro que mal consegui falar, só gesticulava dizendo 'minha mãe' e 'ajuda'. Ele deve ter entendido pois rapidamente me acompanhou até o local. Quando chegamos a porta que tinha me impedido de entrar não estava mais lá. Tentei correr para dentro mas o homem agarrou meu ombro, ele disse que iria entrar, e que eu deveria ficar parada ali e gritar se visse qualquer coisa. Segundos depois ele saiu de lá com minha mãe, ela andava devagar, ajeitando o cabelo. Seu cabelo estava bagunçado e várias manchas se barro se espalhavam peka sua blusa amassada. Corri até ela e a abracei desesperada, ela colocou as mãos em volta de mim e tentou me tranquilizar, depois agradeceu ao porteiro e me chamou para irmos embora."
"Naquela época não me passou pela cabeça o que tinha acontecido, talvez, não sei, o desespero e o trauma tivessem bloqueado meu raciocínio, evitando que eu pensasse nesse tipo de coisa."
"Minha mãe foi ao hospital no dia seguinte, sei disso porque ouvi ela conversando com uma amiga no telefone, provavelmente deveria achar que eu estava dormindo. Quando ela retornou para casa naquele dia disse que estava bem melhor, mas a verdade é que ela não estava, e nunca mais ficou, e percebi isso com o passar do tempo. Ela ficou doente, comia mal, dormia mal, andava sem se arrumar, chorava várias vezes. Tinha momentos em que voltava a ser mais ativa e até alegre, mas eram muito raros comparado ao resto do tempo."
"Quando me formei no ensino médio ela não foi me ver, quando terminei a faculdade de artes cênicas ela não apareceu na formatura porque, como eu acabaria descobrindo, tinha sido encontrada pela vizinha no chão da sala. Quando acordou disse que tinha se desequilibrado, o que se confirmou com o exame que indicou um alto nível de álcool no sangue. Ela tinha começado a beber meses depois do acontecido. Quando mais velha até a recomendei uma consulta com psicólogo, um grupo de apoio, mas ela parou de ir depois da terceira seção. Dizia que não estava fazendo efeito e que era pura perda de tempo."
"Segui meu sonho, virei atriz e quando comecei a ganhar meu próprio dinheiro foi o momento em que ela parou de trabalhar de vez. Parecia que empurrara essa tarefa até eu começar a ser a chefe da família, o que na verdade eu já estava sendo há um bom tempo já que frequentemente a responsabilidade por cozinhar e limpar era minha"
"Um bom tempo mais tarde aquela história me voltou a cabeça, então para acabar com a aflição procurei um desenhista e um detetive particular, precisava saber se conseguiria encontrá-lo descrevendo seu rosto, um rosto que nunca saiu da minha memória. Tive pesadelos com ele várias vezes, mesmo depois de adulta. Por isso seria fácil descrever aquela figura nojenta e desprezível que continuava me assombrando vez ou outra. Tinha também o fato de ele ter trabalhado em uma loja que ficava mais ou menos meia hora de distância da minha casa."
"Certa vez, uns dois anos depois do que houve, sem ter conhecimento desse fato já que o tinha visto apenas uma vez na vida, passei lá perto quando estava voltando do cursinho de inglês e ele me viu, corri tanto e tão desesperadamente que quando percebi estava minha rua, no portão de casa. Não me lembro de atravessar as ruas. Não me lembro de passar pelos sinais, não sei se andei no meio dos carros, nem quanto tempo demorei pra fazer esse percurso. Só sei que olhei pros lados antes de entrar, e passei um mês sem voltar no cursinho. Só retornei quando resolvi pegar outro caminho, um mais longo, mas aparentemente, mais seguro."
"A caçada foi certeira. Menos de um mês depois de contratar o detetive recebi a notícia que procurava, um arrepio se espalhou pelo meu corpo inteiro e minhas pernas bambearam ao ouvir o nome daquele que tinha destruído as nossas vidas: Inácio."
Dulce balbuciou um "Não" de fundo. Cada detalhe da vida de Suly, consequência direta das ações de Inácio, lhe causava uma mistura de sentimentos, dó dela, raiva dele, raiva dela por ter feito o que fez com Inácio, pena da vida que a mãe de Suly levou após esse trauma. Ela limpou as lágrimas, era realmente difícil de acreditar no que estava ouvindo. Talvez não tão difícil, ela sabia que o ex-marido era uma pessoa complicada que se metia em muitos problemas e confusões, mas não imaginava que ele fosse tão terrível.
Suly escutou o sussurro e no mesmo instante se virou na direção dela com um olhar tão afiado que Santos temeu se transformar em violência física se elas começassem a discutir. Se isso acontecesse haveria outra tragédia pois ele teria que usar sua arma já que duvidava muito que Suly levaria a sério um blefe e interromperia o ato. Ele pigarreou chamando sua atenção e depois de certa insistência ela se voltou para ele."
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Sangue No Carpete
RandomEm uma noite qualquer, Taís acorda para beber um copo d'água e desce para o andar de baixo da pensão de sua mãe. Ao chegar no saguão, o que ela vê a deixa assustada, em choque, paralisada no lugar. Ela grita, e passos são ouvidos. Todos os hóspedes...