A mulher em sua frente ajeitou sua postura novamente, não parecia interessada em ir por aquele caminho, então Santos se adiantou dizendo:
- Então depois de saber onde ele estava você dirigiu até aqui para dar um fim a tudo isso?
- Na verdade não. Eu o encontrei, ponderei sobre a situação e estava com muita raiva, então fui conversar com minha mãe sobre o que tinha descoberto. Ela estava em um daqueles dias mais leves, estava cozinhando quando cheguei, ela raramente cozinhou depois daquele dia.
"Exatamente por isso resolvi não conversar sobre esse assunto naquele momento. Comemos, conversamos, rimos muito e até assistimos alguns programas durante a tarde - um leve sorriso surgiu em seu rosto, mas logo depois foi transformado em uma expressão triste. - Mas então chegou a noite, pensei que ela tivesse mais firme então puxei o assunto. Deu muito errado, ela teve uma crise de choro, quis beber, e eu tentei convencê-la de que poderíamos resolver aquela situação, de que faríamos justiça."
- Não quero mexer nesse assunto Suly - ela falara entre as taças de vinho que bebia, era como ela pensava que poderia se acalmar e esquecer o que houve. - Não posso falar sobre isso de novo, não consigo nem pensar nisso, muito menos descrever o que houve naquela noite.
"Insisti mais um pouco e ela começou a chorar de forma descontrolada, então acabei desistindo daquela conversa. Por um momento me lembrei da tarde que tivemos, e então decidi que seria melhor aproveitar esses momentos bons, e não estragá-los como havia acabado de fazer. Por isso nunca mais toquei no assunto."
"Com isso em mente continuamos vivendo normalmente, ela foi em alguns eventos importantes da minha carreira, cozinhou mais vezes, tinha mais dias alegres, porém tudo isso ainda era pouco comparado ao resto do tempo em que ela ficava mal. O assunto tinha sido esquecido, até que um ano atrás ela pegou uma infecção e acabou falecendo, e desde o momento em que recebi a notícia, até dias depois do enterro nada mais me passava pela cabeça que não fosse o pensamento de que ela nunca teve justiça pelo que ocorreu. Decidi então que faria esse tal de Inácio pagar, e então o procurei. Fui no mercado em que ele trabalhava tomada pela raiva, não sabia exatamente o que iria fazer, só que deveria fazer algo. Estava tão descontrolada que só quando cheguei lá me dei lembrei que ele tinha se mudado."
"Voltei para casa frustrada e com ódio. Ele deveria pagar pelo que fez com ela, ele deveria pagar pelo que fez comigo já que afetou toda minha vida daquele dia em diante. Felizmente a derrota de não o encontrar evitou que eu fizesse alguma burrada, e então, tendo tempo de sobra consegui clarear minhas ideias, me preparei e peguei a estrada."
"Quando cheguei quase o esfaqueei aqui mesmo no saguão na frente de todo mundo. Aquele verme asqueroso tentou tocar no meu rosto, e me fez lembrar imediatamente do dia em que me deu aquele chute no peito. Tive que me segurar muito para não empurrar o canivete naquele momento, quando tudo se resolveu corri para o meu quarto tentando esquecer o que tinha acabado de acontecer, precisava me concentrar."
"Horas depois, quando todos já tinha chegado e o barulho da chuva estava alto o suficiente para disfarçar o rangido da porta se abrindo, saí do meu quarto e desci até aqui. Ele estava dormindo, mas assim que me aproximei do sofá ele acordou. Balbuciou algumas coisas sem sentido e então começou a ficar mais lúcido, ou eu achava que estava. Houve um momento em que eu relutei, mas então ele agarrou minha perna com aquela mão nojenta, e aí eu subi em cima dele tampando sua boca com um pano, ele deve ter pensado ser por outro motivo, o que só me deu mais nojo e mais disposição para cumpri meu objetivo."
"Teria perfurado mais, porém ouvi um barulho e então saí logo de cima dele e voltei para o meu quarto. Precisava me livrar daquele sangue pois minhas mãos tremiam e eu já não sabia mais se o desespero era pelo fato, pelo desbloqueio de todas as memórias, ou pela sensação de justiça pela minha mãe."
"Quanto ao resto da noite, sim, você acertou. Lucas descobriu uma mancha de sangue na minha blusa e começou a ter um ataque. E ainda que aquela mancha não tivesse nada a ver com a ocorrido isso iria complicar minha situação. Depois entrei no quarto do rapaz e escondi o canivete, onde ele deveria estar."
"Depois disso foi só moldar a percepção de todos com expressões de pavor e acusados direcionadas ao rapaz".
- E os símbolos na cozinha?
- Eu fiz laboratório para uma personagem policial certa vez, acabei pesquisando mais profundamente sobre o meio policial e com os tipos de situações que eles enfrentam, nisso descobri o grupo dos irmãos Lima. Então quando os vi aqui soube que seria ótimo se desviasse a atenção do ocorrido para os suspeitos mais prováveis.
- Sua mãe aprovaria essa sua atitude Suly? - Santos a perguntou, depois de um tempo em silêncio. - Ela se sentiria aliviada pelo rumo que as coisas tomaram?
- Não dá pra saber o que se passa na cabeça de uma pessoa, mesmo se passarmos a vida toda ao lado dela - Suly respondeu.
- Essa é sua desculpa para justificar sua consciência?
- De forma alguma. O que eu disse nada mais é do que um senso comum, mas sim, minha mãe não teria aprovado isso.
- Você não disse que tinha feito pela justiça da sua mãe?
- Eu disse que era pela "minha sensação" de justiça pela minha mãe.
- Então não se arrepende do que fez?
- Pareço arrependida? - ela sorriu.
- Coloque as algemas nela - Santos ordenou, seu amigo prontamente se adiantou e passou o objeto pelos pulsos de Suly que tinha estendido os braços por vontade própria.
- Não resista.
- Não vou. Ser pega já estava nos meus planos, se tivesse possibilidade de fuga eu teria aproveitado mas como não tem... nada fora do cronograma.
- Se você tivesse buscado ajuda profissional para lidar com esse seu trauma ele não seria tão grande, você teria aprendido a conviver com ele e quando um gatilho como a morte de sua mãe acontecesse você não teria se desesperado, mas como não fez acabou transbordando tudo de uma só vez.
- Talvez.
- Você discorda?
- Não.
- E está tranquila com isso?
- Estou.
- Espero que os bons anos que você vai passar na prisão depois de do que fez e de confessar isso sem o menor remorso mude sua opinião.
- Não vai - ela se levantou.
Santos se levantou também e se aproximou dela, encurtando bastante a distância entre ambos.
- Como você mesma disse, "Não dá pra saber o que se passa na cabeça de uma pessoa, mesmo se passarmos a vida toda ao lado dela" - ele levantou o dedo indicador e encostou na têmpora dela. - E isso também vale pra nossa própria.
O olhar confiante dela vacilou, ele sorriu e Bruno a empurrou porta à fora.
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Sangue No Carpete
RandomEm uma noite qualquer, Taís acorda para beber um copo d'água e desce para o andar de baixo da pensão de sua mãe. Ao chegar no saguão, o que ela vê a deixa assustada, em choque, paralisada no lugar. Ela grita, e passos são ouvidos. Todos os hóspedes...