Capítulo 4

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O plano era que o enterro do meu pai ocorresse sem grandes complicações. No dia em que ele completou três meses doente, pediu que minha tia já fosse atrás de saber qualquer papelada ou detalhe que fossem necessários.

— Eu não quero ninguém correndo de um lado para o outro resolvendo o que fazer. Quero vocês preparadas, Sarah, não sei o que vai ser da nossa mãe e da Maria Júlia quando finalmente acontecer. — Meu pai falou para a minha tia. Eu estava do lado de fora do quarto escutando escondido. Fui da escola direto para o hospital com a minha vó e, enquanto ela comprava um café, me adiantei e fui em direção ao quarto do meu pai. A porta estava aberta.

Eu deveria ter entrado, talvez tivesse sido melhor. Assim, eu não teria escutado o que escutei.

— João, mas o que você quer que eu faça? Ligue para o cemitério e peça para eles separarem uma cova com o seu nome? — A voz da minha tia soava histérica, nervosa. — A sua falta de fé me entristece.

— Não é falta de fé, Sarah. Eu piorei rápido demais, há quatro meses atrás eu era um homem saudável, hoje não posso mais andar. — Meu pai estava falando um pouco alto demais. — Como você acha que minha cabeça está? Estou deixando uma filha para trás que não tem muita coisa além de mim. — A voz do meu pai embargou.

— João, tenha fé, você nem...

— Fé? Sarah, pare de falar de fé! — Meu pai interrompeu. — Que Deus é esse que deixa um pai inútil com câncer em uma cama? Me diz, Sarah, que Deus é esse?  —  Ao dizer isso, ouvi algo caindo e se espatifando no chão. Quando dei um passo para entrar no quarto, uma mão segurou meu ombro.

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Seus olhos, normalmente tão brilhantes, agora estão embaçados, preenchidos pelas lágrimas. Ela não me repreende nem me lança um olhar de desaprovação, apenas pega a minha mão gentilmente e me leva de lá.

— Vamos. Deixe que eles conversem. — Ela sussurrou.

E eu fui.

"Me diz, Sarah, que Deus é esse?"

Um Deus ruim, imagino.

Depois que acordei junto com a minha avó no meu quarto, ela desceu para fazer café. Sua aparência não estava das melhores e não precisei me olhar no espelho para saber que a minha também não estava. Minha tia provavelmente estava na mesma.

Acho que é assim que ficamos quando perdemos alguém. Uma parte nossa vitalmente necessária se vai junto com a pessoa. Mesmo que nosso corpo se regenere fazendo uma casquinha sobre essa parte violentamente cortada, a falta continua lá. A dor pode parar, a casquinha pode não coçar mais, mas aquela parte nunca volta ser a mesma.

E nós aprendemos a conviver sem ela.

Tomamos café em silêncio. Nenhuma das três queria falar. Nenhuma das três precisava falar, na verdade.

Nosso silêncio e olhares já eram comunicativos o bastante.

Quando terminamos, já era 06:30. Enquanto minha avó guardava as coisas da mesa, minha tia pediu que eu subisse e me arrumasse.

— Ju, se arrume. Precisamos ir a alguns lugares hoje... — Minha tia disse com um tom de voz relutante.

Só balanço a cabeça e subo. Sei o que “alguns lugares” significa.

Meu pai já deixou tudo meio pronto para que não entrássemos em crise. Era só assinar.

O primeiro lugar foi o hospital. Minha tia e minha avó precisavam assinar alguns documentos, e enquanto eu estava apoiada no balcão, vi um uniforme verde claro vindo em minha direção.

Coração Que ChoveOnde histórias criam vida. Descubra agora