Eu não consigo. Não posso.
Como viver em um mundo no qual ele não existirá?
Como viver em um mundo sem meu pai?
Sem um pai?
Não é Deus falando comigo. Como pode ser? Ele não existe.
E se existe, como pode ter feito isso comigo?
Como espera que eu viva após ter tirado uma parte de mim?
"Me aceite dentro do seu coração e não o endureça."
Como posso controlar um coração amortecido e sufocado?
Estou beirando à loucura. Só pode ter sido meu cérebro tentando amenizar minha dor. Esses sonhos, essas sensações, essa presença...
Essa Voz.
Tudo passou de ilusões propostas pela minha própria cabeça.
Eu estou sozinha. Sozinha e caminhando cada vez mais para um cômodo escuro no qual não há portas para sair. Não há lâmpadas ao meu alcance. Tão pouco quero acendê-las.
Meu desejo é ficar sozinha no escuro até que ele me engula e me leve embora.
- Princesa, vamos tomar café da manhã? - A voz doce da minha avó entra pelos meus ouvidos.
Abro os olhos e percebo que eu estava dormindo. Não sei exatamente que horas minha cabeça me permitiu descanso, mas adormeci.
Sem sonho. Sem Sala Branca. Sem Voz. Sem sensação de abraço na minha alma quebrada.
Eu não deveria estar tão triste. Minha cabeça finalmente parou de delirar. Não era isso que eu queria?
- Vó, não estou com fome. - Respondo, me virando para o lado oposto da cama. Sinto meus olhos fundos e meu nariz sujo de catarro, mas não me importo em limpar.
- Você deveria se alimentar, ontem você já não comeu muito...
- Vó, eu já disse que não quero comer! Quero ficar sozinha! Me deixe sozinha! - Me levanto rapidamente e jogo essas palavras raivosas contra minha avó, que fixa um olhar machucado em mim.
- Eu estou cansada! A cada respiração que dou sem ele estar por perto é como milhares de espinhos entrando no meu pulmão e fazendo ele sangrar. Eu não quero respirar! Não mereço respirar. É ele quem deveria estar respirando! - Grito em meio às lágrimas. - Tudo aquilo que me disse ontem não passam de mentiras. Eu não quero ouvir nunca mais sobre esse Deus sádico e cruel que tirou meu pai de mim! - Quando digo isso, os olhos da minha avó se enchem de lágrimas. - Por favor, me deixe sozinha!
Ela não me diz nada, apenas sai como eu pedi.
E fico sozinha. Como assim pedi.
Sozinha.
Minhas lágrimas saem como pedaços de vidro que fazem meus olhos e minha pele se rasgarem. Meu próprio ar parece maléfico ao meu corpo. Me sinto tóxica.
Vó, me perdoe.
Por que eu não fui levada junto com ele? Ou no lugar dele?
Sinto uma mão no meu ombro e olho para quem ela pertence.
Tia Sarah.
Ela não espera que eu solte uma nova onda de ofensas com minha língua afiada. Apenas me coloca junto ao seu corpo e deixa que eu despeje tudo.
- Sabe, querida, ele te amava mais do que tudo nesse mundo. - Minha tia diz depois de um tempo. - Seu pai não era o ser humano mais fácil de lidar, mas ele cuidava bem da família, sempre a colocando em primeiro lugar. - Ela enxuga minhas lágrimas. - Ele foi um pai incrível, e depois que sua mãe se foi, ele me disse que faria de tudo para criar você da melhor forma. Você se tornou uma menina forte, independente, decidida e inteligente. Sua missão foi cumprida. - Minha tia olha no fundo dos meus olhos e uma lágrima solitária escorre de um deles. - Assim como você carrega sua mãe, o carregará também, para sempre. São parte de quem você é e não tem como mudar isso. Sei que você deve estar muito confusa agora, Maria, mas não ouse pensar que você está sozinha.
- Me desculpe... - Digo em meio às lágrimas.
- Não precisa se desculpar. Sua avó também a perdoa. - Tia Sarah me interrompe. - Você é muito amada. Não deixe que sua ira cegue seu coração e te diga o contrário.
Após dizer isso, ela me abraçou por um longo tempo.
Depois de alguns minutos, minha avó também entra no quarto e me abraça. Olho para o seu rosto e já sei que estou perdoada, pois não há mágoa alguma nele.
Decidi que iria catar os caquinhos do meu coração despedaçado. Não queria mais me afogar nas lágrimas vindas da chuva dentro de mim.
Mas eu precisava de tempo.
- Eu...preciso de um tempo da escola. - Falo no meio do abraço delas. - Preciso ficar um pouco sozinha.
Minha tia e minha avó desfazem o abraço e se entreolham com um olhar preocupado.
- Por favor...eu só preciso de alguns meses. Por favor...
- Maria, esse pedido nos preocupa muito. Não queremos que você prejudique seus estudos...
- Tia, por favor. Eu prometo que não será pra sempre! - Interrompo minha tia, que olha para a minha avó em busca de ajuda.
Minha avó apenas pega na mão da minha tia e balança a cabeça, consentindo.
- Acho importante você ter uma pausa para digerir seus próprios sentimentos. - Minha avó diz. - Permito, desde que você pegue o que precisar com a Marina e esteja por dentro das matérias. Daremos o tempo que você precisar.
- Obrigada, vó. Obrigada... - Digo, apertando suas mãos.
- Só nos prometa que você ficará bem, Maria. - Com um olhar profundo, minha avó me lança essa condição.
Não posso dar certeza. Mas se eu não der, terei que ir para a escola e encarar aqueles olhares de pena...
- Eu prometo. - Falo com convicção, a fim de me convencer também.
- Então...vamos comer? - Minha tia pergunta me levantando da cama.
Apenas balanço a cabeça e vou segurando sua mão. Minha avó vem logo atrás.
Quando me deitei para dormir, refleti sobre o que aconteceu.
Disse que não queria mais sonhar com aquela sala branca e com aquela Voz. Estava com medo de enlouquecer.
Contudo, não poderia deixar de pensar no quanto minha alma começou a ser tratada. No quanto amei ouvir e sentir aquilo dentro de mim.
Mas eu disse que não queria mais. E não estava disposta a passar por cima do meu orgulho. Queria silenciar minha cabeça conturbada. Queria que aquela dor parasse.
Quando fechei meus olhos para dormir, pensei nos sonhos e em seus ricos detalhes. Pensei no meu pai se despedindo e da Voz falando que meu coração não deveria ser endurecido. Pensei naquela experiência com a minha avó e no mal que encontrei no escuro antes de ser salva e enviada à Sala Branca.
Apenas coisas da minha cabeça. Nada foi real. Não há do que sentir falta.
O que eu não sabia, é que meu coração se enrugaria de saudade. Não apenas do meu pai.
Mas da voz poderosa que me chamou de filha.
Não sonhei com ela naquela noite. Nem nas noites que se sucederam.
Passei a sonhar com o vazio escuro e amedrontador no qual eu mesma me coloquei.
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Coração Que Chove
EspiritualMaria Júlia jamais imaginou que, com apenas 15 anos de idade, perderia uma das coisas mais preciosas de sua vida: seu pai. Além de enfrentar o luto, a jovem se vê dentro de sonhos enigmáticos que começaram logo após a partida dele. Nesses sonhos, um...