Capítulo 6

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Não pude deixar de soltar um suspiro aliviado quando finalmente chegamos em casa. Eu já estava cansada de receber abraços de pessoas que eu havia visto poucas vezes na vida, e,  pior, pessoas que não fizeram a mínima questão de fazerem companhia a ele no hospital.

— Vou sentir muita saudade dele, ele era um bom homem. — Uma mulher que se dizia colega de trabalho do meu pai disse, após me dar um abraço sem graça.

"Bom homem."

Bem, é assim que irão se lembrar dele? Apenas isso?

Fui direto para o banho. Minha cabeça estava me matando. Eu queria muito que a água quente que desceu pelo ralo levasse tudo que aconteceu nas últimas horas.

Queria ter o poder de viajar no tempo.

Saio do banho e me olho no espelho. Pareço um zumbi.

Sinto que uma parte minha realmente se foi.

Por não querer ficar sozinha, decido ir ao quarto da minha avó, mas quando chego a porta está fechada.

Encosto os ouvidos na porta. Nenhum som.

Abro a porta devagar para verificar se ela estava dormindo e a encontro de joelhos sobre o altar que ela fez no quarto, sussurrando algo que parecia uma oração.

É um altar cheio de esculturas de santos e uma foto de Jesus Cristo no centro. Quando eu era pequena, lembro que ficava admirando os santinhos, pois os achava lindos demais. Sempre me questionei quem era o homem representado na foto, eu apenas achava que ele era mais um entre as dezenas de santos.

Eu deveria ter fechado a porta, mas algo me prendeu.

Uma voz alta e clara falou dentro de mim e, por um momento, pensei ter sido coisa da minha cabeça.

Minha avó ainda sussurrava ajoelhada no altar.

"Ore."

Foi o que pensei ter ouvido.

Eu estou ficando louca?

Não consegui me mexer e algo me impulsionou adiante.

''Ore.''

Mas eu nunca fiz isso antes.

''Ore.''

Toco o ombro da minha avó, que levanta a cabeça e puxa a minha mão para que eu me ajoelhe também.

— Ele ouviu as minhas orações. Eu pedi que você viesse. — Ela diz quando me ajoelho ao lado dela.

— Ele quem, vó? — Sinto uma vontade imensa de chorar ao perguntar isso.

— Deus. O criador de tudo, o pai mais lindo, o ser mais misericordioso e amoroso que você conhecerá. — Ela diz, apertando minhas mãos.

Deus?

Começo a chorar como nunca havia chorado antes.

— Se ele é tão misericordioso assim, por que fez isso comigo? — É só o que consigo pensar.

Eu só queria saber o porquê.

Minha avó não responde, apenas balança a cabeça e volta a orar baixinho.

Deixo minha cabeça baixa e minhas lágrimas caem sobre o altar dela.

— Há coisas que você ainda não entende, mas entenderá em breve. — Há algo diferente na minha avó quando ela diz isso. — Não tenha medo, seja forte e corajosa. Não tema nem desanime. Sua dor será curada. — A frase é sussurrada delicadamente para mim.

Curada?

Novamente algo se mexe dentro de mim. Algo novo.

— Uma morte ao lado de Deus ainda é um tipo de vida. Por mais cético que seu pai se declarasse, ele sabia disso. — Minha avó sussurra, mas não parece mais ser pra mim. — Há uma jornada que precisará ser trilhada, nela há lágrimas e dor, mas também muita alegria e paz. — Ainda com os olhos fechados, ela pega minhas mãos e aperta, tremendo.

— Por favor, não desista. Vejo um mal à sua espreita, se grudando cada vez mais ao seu coração e o queimando com um fogo doente e ruim. — Não reconheço mais a minha avó. Apenas presto atenção em todas as palavras dela. — Confie no que for mostrado a você, não duvide.

Após dizer isso, ela para de tremer e seus olhos se abrem devagar. Estou chorando. Chorando pelas coisas que foram ditas, chorando de medo. Chorando por tudo.

O que foi isso?

— Você entendeu, minha amada? — Ela pergunta, ainda de joelhos.

Não.

— Sim, vó. — Respondo baixinho e ela me abraça.

— Agora vá. — Ela diz, fazendo o sinal de cruz em mim.

Me levanto e vou.

O que significa tudo isso?

Por que?

Me deito e demoro a pegar no sono. Minha cabeça está cheia e meu coração, vazio.

Quanta dor.

Quando penso que peguei no sono, ouço alguém me chamando.

Maria Júlia. — Parece vir do lado de fora do meu quarto, que está com a porta fechada.

Olho para a porta e vejo uma luz clara saindo da parte de baixo dela.

Não penso duas vezes antes de me levantar.

Abro a porta e saio. Dou de cara com um cenário já conhecido, porém há algo diferente das outras vezes.

Um altar na Sala Branca.

Olho para os lados e para trás. Não há como voltar.

Maria Júlia.

Ouço a voz pela qual meu coração se apaixonou. A voz que o faz bater, se agitar e viver. Ela não está próxima a mim, mas sua presença preenche a Sala.

Foi essa voz que me chamou.

Vou até o altar e me ajoelho sobre ele. Entrelaço minhas mãos da forma que vi minha avó fazer milhares de vezes e cubro meu rosto com elas.

Por favor, o traga de volta. — Peço para a voz.

Não, Maria Júlia. — Ela responde, ainda alta e distante.

Eu ainda tenho tantas perguntas. Por favor. — Suplico, ajoelhada com a cabeça no chão. — Por favor.

Não, filha. — A voz diz. Sinto algo perto de mim.

Filha? — Pergunto assustada, me levantando e abrindo os meus olhos. Não se parece nada com a voz do meu pai.

Olho ao redor. Nada.

Você sabe quem eu sou? — A pergunta foi feita dentro de mim. Não ao redor, não nos meus ouvidos. Dentro de mim.

Não. — Respondo, me ajoelhando novamente e me encolhendo no chão. O poder era demais para que eu pudesse suportar.

Você saberá. Me aceite dentro do seu coração e não o endureça. — A Voz diz a mim e sinto uma sensação extremamente reconfortante.

Uma sensação de abraço. De lar. De cura. De amor.

Não irei. — É só o que consigo dizer.

E acordo.

Era um sonho novamente, mas a sensação reconfortante ainda não saiu do meu peito.

"Filha."

Pai?

Ele é Deus. O criador de tudo, o pai mais lindo, o ser mais misericordioso e amoroso que você conhecerá — Um flashback da minha avó falando me invade.

"Ele é Deus. O pai mais lindo."

Deus?

Como?

Coração Que ChoveOnde histórias criam vida. Descubra agora