Não sei quantas horas fiquei olhando para o teto repassando cada detalhe. Só sabia que eu precisava entender o que estava acontecendo.
O que significa tudo isso?
Se não era o meu pai, então quem era?
O que uma sala branca tem a ver com isso?
Nunca fui uma pessoa muito espiritualizada. Minha avó e minha tia são católicas fervorosas, mas meu pai nunca foi. Por sempre ter morado junto com o meu pai na casa da minha avó, o pouco que conheço de religião veio dela e da minha tia, porém, nunca quis me aprofundar muito.
Tenho fortes motivos para acreditar nisso agora.
Sinto que há algo a mais nisso tudo.
Algo relacionado à vida e morte, talvez?
Talvez os sonhos somente reflitam os acontecimentos reais. A forma bruta e fria na qual tive meu coração arrancado de mim não ocorreu somente no pesadelo.
Meu pai realmente veio me ver ou foi uma ilusão da minha cabeça?
E quem pegaria um coração morto e o colocaria de novo em seu lugar? Quem olharia para alguém sem salvação alguma e reergueria? Quem daria direção para alguém perdido e enlouquecido de dor?
Eu preciso saber. Mesmo se for uma reflexão da minha cabeça, eu preciso entender.
Pai, o que eu faço? O senhor pode me escutar?
Eu sinto a sua falta.
As lágrimas descem pelos meus olhos lentamente. Meu pai sempre tinha uma solução. Ele era a minha solução.
— Faça isso, filha. Você vai voltar para mim e dizer que eu tinha razão.
E ele sempre tinha.
Sou tirada dos meus pensamentos e das minhas lágrimas quando sinto alguém tocando minha testa.
Vó.
Ela não fala, mas imagino que seja a hora de ir. Ao invés de me apressar, minha avó apenas senta ao meu lado e encosta minha cabeça em seu colo, passando a mão pelos meus cabelos. Enquanto faz isso, ela canta uma música baixinho que eu nunca havia escutado antes.
“...a Terra estremeceu,
sepulcro se abriu
E nada vencerá Teu grande amor.
Oh, morte, onde estás?
O Rei ressuscitou,
Ele venceu pra sempre...”Senti um remendo em um lugar muito profundo do meu ser. Não sei como e nem o porquê, mas a perspectiva de que a morte não significa “fim” moveu algo dentro de mim.
O que isso significa?
Ela esperou até que eu me acalmasse para se levantar. Foi até o meu armário, separou minha roupa e colocou na minha cama.
— Quando você estiver pronta. — Ela diz, me dando um beijo na testa. Antes de sair, ela olha para o relógio do meu pai em cima da minha mesinha e sorri para mim.
— Você deveria usar, Ju.
Olho para o relógio de couro preto e detalhes prata que pertenceu a ele. Uma vez, meu pai me contou que foi a minha mãe quem deu para ele, quando ainda eram adolescentes. Meu pai nunca tirava aquele relógio do pulso.
E agora ele é meu.
Tomo um banho quente e demorado, visto as roupas que minha avó separou e coloco o relógio.
Lindo.
Desço e vejo minha tia e minha avó prontas, tomando café da manhã. Dou um beijo na minha tia e abraço minha avó antes de me sentar.
As três estavam adiando o máximo de tempo possível.
— Hora de ir. — Minha tia diz após checar o celular. Seus olhos se encontraram com os meus.
Seja forte. Foi o que eles disseram.
Serei.
Saímos de casa e fomos ao local do velório. As pessoas foram chegando aos poucos. Me surpreendi com a quantidade de pessoas que apareceu.
Fora os familiares, muitos colegas de trabalho do meu pai vieram. Reconheci apenas um: o tio Rodrigo.
— Oi, princesa, sinto muito. — Ele disse, me abraçando. Ele foi o único que se esforçou ao máximo para visitar o meu pai e nos deu muita força durante o processo. Meu pai o conhecia há bastante tempo, então ele praticamente me viu crescer.
Além dele, ninguém mais o visitou.
Aonde estavam todas essas pessoas quando ele precisou? Por que tem tanta gente chorando por ele?
Apenas recebi todos os abraços e agradeci. Não precisei olhar para a minha tia e para a minha avó para saber que estavam pensando o mesmo.
— Amiga? — Ouço uma voz conhecida atrás de mim e quando me viro, vejo que é a Marina.
— Marina? Como você veio? — Pergunto, desconcertada. Meu celular estava desligado desde que visitei meu pai pela última vez. Eu precisava de um tempo e não queria mais falar com ninguém, nem com a minha amiga que me conhecia desde que me entendo por gente.
Minha cabeça estava cheia demais para lembrar do meu celular. Na verdade, eu nem sabia em que lugar ele estava.
— A sua tia me mandou mensagem ontem explicando tudo. Como você não respondeu mais, fui falar com ela... — Minha melhor amiga responde, já me abraçando. Ela foi a única pessoa que não disse “sinto muito” ou “meus pêsames”. Provavelmente ela já sabia que eu tinha escutado isso o dia todo.
Ela me abraça bem apertado e por bastante tempo. Choro no ombro dela e ela não reclama. Sempre foi assim com a Marina.
— Já sei que não devo dar detalhes pra ninguém. Pegue o tempo que você precisar, estarei aqui para você todos os dias. — Ela diz no meu ouvido. Não precisei nem pedir.
— Obrigada. — É só o que consigo dizer.
O dia foi longo e cansativo. Foi difícil não chorar quando o vi. Dei uma última olhada antes que ele se fosse totalmente. Ainda parecia ele.
— Tchau, papai. Pode descansar agora... — Eu disse baixinho.
Estava feito.
Não consegui dar adeus porque algo em mim sabia que ele não iria para sempre. Toco o meu relógio, o relógio dele, e sinto que o verei de novo.
De alguma forma.
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Coração Que Chove
SpiritualMaria Júlia jamais imaginou que, com apenas 15 anos de idade, perderia uma das coisas mais preciosas de sua vida: seu pai. Além de enfrentar o luto, a jovem se vê dentro de sonhos enigmáticos que começaram logo após a partida dele. Nesses sonhos, um...