À medida que ele se adentrava na floresta, a vegetação ficava mais densa, o ar mais sufocante. Tudo que ele menos queria era estar preso novamente. Ele tinha fome, sede e muito ódio. Queria descansar a todo custo, mas não podia. Sua existência fora sentenciada ao cansaço pela eternidade. Junto com ele havia centenas de outros, mas somente ele escapou de sua prisão.
O mar podia ser uma opção de fuga, mas aquilo que ele viu não era o mar. A ausência de forma enganava aos olhos. Ele sabia que o que parecia água era na verdade outra coisa. No fundo ainda teve a ideia de mergulhar e ter a chance de pelo menos ser extinto por completo para não sentir mais a fome, o desespero de vagar sem rumo, sem função, sem salvação ou até mesmo sem uma real condenação. Qualquer coisa era melhor do que existir como se não fizesse parte da existência em si.
Todas as almas um dia passariam pelo Tribunal, mas ele não. Até isso fora lhe negado. Antes um ser respeitado, temido e adorado; agora uma massa escura e vazia que se arrastava e que não poderia retornar a sua estrutura física. Abandonado pelos próprios pais, que em desobediência à regra dos Reinos, os fecundaram sem pensar nas consequências de criar um ser sem alma. Uma abominação.
— Cada centímetro deve ser vigiado! – Dizia Mihai tranquilo. Não sei o que estamos enfrentando, mas sabemos que está com fome e pode atacar se não estivermos atentos.
Os Dutah fizeram como ordenado e isolaram a floresta com um campo de força alimentado por suas próprias auras que impediria qualquer ser de entrar ou sair daquela redoma. A intenção era esperar que a criatura ficasse encurralada de forma que se rendesse saindo de seu esconderijo, porém aquela barreira não ia durar para sempre, então eles torciam para que a "coisa" saísse antes que a barreira cedesse.
Mihai, usando sua visão hiperfoco de distância, passou a verificar a região isolada em seus extensos quilômetros. Entretanto, a floresta era tão densa que nem os seus olhos não conseguiam detectar qualquer presença ali. Então deu ordem aos seus subordinados que não saíssem de seus postos. Mais cedo ou mais tarde o "ser" ia se manifestar.
***
Elrik estava furioso pela repreensão que sofrera por parte de Mihai. Eles não eram do mesmo cargo na hierarquia das almas superiores, mas o fato de serem colegas de longa data o deixou com raiva, pois ele sempre considerava seus semelhantes antes até de executar suas funções, já Mihai sempre colocava seu emprego em primeiro lugar.
— NICAAAA!! – Gritava o Supervisor enquanto batia na porta da sauna de consolo destinada somente às almas que morreram por agressões físicas.
A clínica de consolo possuía várias áreas diferentes. Tinha as salas de massagem para egos mutilados, salas de música terapêutica, salas de reflexão regressiva, salas de tratamento de aura facial (para aqueles que estavam mais abatidos), mas as salas mais usadas eram as saunas secas de relaxamento.
— NICAAAA! ABRA ESSA PORTA! — Continuava Elrik aos berros.
A porta se abriu e com desdém, a alma que ali estava, revirou os olhos virando de costas, deixando o Supervisor sozinho à porta:
— Entre logo para não vazar o calor. — Nica disse friamente.
— O QUE VOCÊ PENSA ESTAR FAZENDO!? NÃO É POR QUE VOCÊ É UMA ALMA JUSTIFICADA E COM PERMISSÃO PARA TRABALHAR QUE VOCÊ TAMBÉM POSSA FAZER O QUE "DÁ NA TELHA"!
— Eu estou cansado Elrik! A ponte ter caído me abalou muito. Preciso me recuperar. – Continuava Nica desdenhoso.
— Você só pode estar brincando comigo! Enquanto você, como uma alma velha que é, que já passou pela vida e só fez merda, está ai se deleitando em uma sauna que não é para seu uso, Mihai está lá fora em algum lugar planejando te tirar do seu cargo e por Yuhan no seu lugar. E pior: ME TIRAR DA SUPERVISÃO me rebaixando a ceifeiro de novo! – Argumentava Elrik colérico.
— Yuhan é só um moleque. Ele mal, mal entende da vida, como pode entender da morte para governar. – Respondia Nica relaxado. – Nenhuma alma que não passou pela vida pode governar neste reino.
— DE ONDE VOCÊ TIROU ISSO NICA!?? Almas penadas é que não trabalham! Apenas esperam até que o Tribunal esteja pronto para reativar suas funções novamente. – O Supervisor já estava querendo esganar aquela alma que ele havia treinado com tanto afinco.
— Existem outros como eu e você sabe que Jedan vai optar por alguém da minha categoria. Além disso, Mihai não tem jurisdição aqui. — Nica ainda não estava convencido de todo aquele estardalhaço do amigo.
— Você que pensa! – Retrucou o Supervisor. – Mihai está entre os Sete! Você sabe o que isso significa!? Acima dele estão apenas os Anciãos e Jedan.
— Aff. Aqueles velhos... – Murmurou Nica.
Elrik cresceu de tamanho com sua fúria, aquela era uma manifestação comum entre as almas, já que era um mecanismo de defesa, porém uma alma superior poderia manifestar outros poderes além de serem mais assustadores. Ele rompeu o telhado da sauna que era de madeira rústica.
— VOCÊ FOI LONGE DE MAIS! – Ele brandiu a voz grave.
Olhando para cima, Nica deu de ombros e saiu dos destroços do que sobrou do lugar. Ele não se abalou com aquela ameaça.
— Não acha que já estamos gastando muito com a reconstrução da ponte e da cidade? Não precisava destruir essa loja. – Ele continuava cínico. – Não sei por que tanto alvoroço Elrik...? Você teve a brilhante ideia de propositalmente causar uma confusão para que fosse promovido à alma superior e receber cargos mais altos. Se não houver problemas reais, como que você vai se tornar o herói quando solucionar as questões?
O Supervisor retornou ao seu tamanho rapidamente e tapou a boca de seu pupilo com uma expressão de fúria.
— Você ficou louco? – Sussurrou ele. – Alguém pode nos ouvir! Meu plano era sim derrubar a ponte. Isso eu consigo resolver! Mas entrou um ser que devora almas neste reino e eu não esperava por isso! Não esperava ver Mihai tomando a frente da situação. Agora ou eu e você entramos na linha dele ou voltaremos a ser ceifeiros. – Explicou Elrik.
Nica retirou a mão de Elrik de sua boca e ajeitou a toalha amassada a qual cobria apenas de sua cintura para baixo, deixando à mostra seu desnudo peito robusto e peludo.
— Não existem devoradores de alma, Elrik. – Ele afirmou mantendo sua postura sínica.
— Não sei o que é, mas de fato sumiram almas que aportaram nesse reino no dia em que a "alma errada" atravessou.
Os dois ficaram se entreolhando pensativos até que chegaram funcionários para fazer a inspeção da sauna que acabara de ser parcialmente destruída.
— A madeira já precisava ser trocada mesmo. Estava um lixo! – Disse o governador ao se justificar. – Levem a solicitação para um arquiteto mais moderno. Peça que faça algo rústico, mas não pré-histórico. E que seja sauna molhada! Não quero mais sauna seca. – Completou Nica.
Os funcionários anotaram rapidamente as solicitações e tiraram fotos da danificação saindo depois com pressa.
— Mihai vai ficar quanto tempo aqui, Elrik?
— Até capturar ointruso. – Concluiu o Supervisor.
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Além das Flores - CONCLUÍDO ( 44 de 46)
FantasyATENÇÃO: Esta obra é uma ficção baseada em VOZES DA MINHA CABEÇA, inspiradas por mitologias e crenças sem vínculo verídico religioso. Entretanto, contudo, porém, todavia(rsrs), é uma história com forte apego aos princípios cristãos. Não possui hot...