Capítulo 9 - Tehom

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O mar que banhava a cidade central do Reino dos Mortos não era tão belo quanto outros mares do Reino dos mortos, os que banhavam o litoral do Reino Eterno ou até mesmo o mar dos mortais, já que tudo que existe na Terra é reflexo do que há nos reinos espirituais. O oceano dali era formado por águas muito escuras e ameaçadoras. Suas ondas eram brancas, muitos espumosas devido alta energia espiritual concentrada na água. Parecia algo tóxico. Era um mar criado para que nenhum ser ou criatura pudesse nadar ou até habitar. Embora não destruísse imediatamente a alma de quem tivesse contato com aquelas águas, ainda assim, havia a proibição de mergulho. Yuná aprendeu que ali continha a essência de Tehom, um Ser oposto ao Supremo Jedan e como punição por sua ferocidade contra tudo que recebeu o Fôlego, foi aprisionado em águas que jamais poderiam conter a forma e a vida, assim ele não teria um corpo físico ou espiritual para manifestar sua existência e não faria mal aos que receberam a dádiva de compor o universo.

A vista do mar era limpa para o horizonte. Não havia ilhotas, barcos nem nuvens, mas havia vento que soprava o suficiente para desprender o penteado dos cabelos de Yuná.

Yuhan explicou que as ondas daquele mar eram geradas pela força de existência do ser que ali habitava preso. Se prestassem atenção àquela natureza, podia-se perceber uma sensação de vazio completo imperando naquele lugar. Era sabido que as almas que caíssem naquele mar (na parte funda) se perderiam sem descanso, mas nunca se soube o que de fato acontecia com elas.

A areia daquela praia era branca, espessa e machucava os pés ao se caminhar descalço, por isso Yuná desistiu de seguir a recomendação do atravessador e manteve os pés calçados. Já Yuhan, aparentemente sem se incomodar, andava com os pés livres.

— Eu já me acostumei. Não sinto nada a não ser comichões nos pés. – Ele dizia enquanto via Yuná pegar uma porção de areia com as mãos e deixar cair os grãos lentamente pelas fendas de seus dedos.

— É meio triste não acha? – Ela perguntava meio decepcionada ao encarar o grande oceano escuro e vazio.

— Não sei o que é tristeza. A gente... quer dizer, as almas que não escolheram nascer, como eu, não sentem essas coisas. Depois de muitos anos de existência nossa essência se esfria. Sentimentos são bem raros surgir. – Respondeu firme olhando na mesma direção que Yuná olhava.

— Mentiroso! – Ela riu debochando enquanto voltava a caminhar.

— EU? – Ele perguntou achando a acusação dela engraçada.

— É! Disse que não tem sentimentos, mas olha só você com raiva de não poder trabalhar. Isso é um sentimento. – Ela justificou.

— Esse é um sentimento mecânico! É um reflexo! Fui provocado. Eu não fico parado filosofando e refletindo sobre a vida ou buscando sentir coisas e me satisfazer com isso. – Ele explicou sério.

Yuná dando de ombros, resolveu sentar em um montante de areia onde várias pedrinhas porosas e pretas se destacavam em meio aos grãos branquíssimos como sal.

— Então, você é o cara responsável por atravessar todas essas almas de pessoas que morreram... Que coisa... Por que nunca ouvi falar disso na escola pré-vida? – Ela indagou enquanto brincava com uma pedrinha entre os dedos.

Yuhan sentou-se ao seu lado e pensou duas vezes antes de responder, pois ele sabia que algumas coisas eram ocultadas na escola já que as almas deveriam descobrir o sentido da vida e da morte sozinhas enquanto fossem seres humanos.

— Bem... eu acredito que seja por que você não pode saber como é a experiência da morte, caso contrário todos os nascidos viveriam sem preocupações, sem medo de morrer. – Tentou explicar sem dar muitos detalhes, mas não se preocupou tanto por que lembrou que as memórias dela seriam afetadas no nascimento e acabaria por se esquecer do que sabe do mundo espiritual.

— Mas isso não seria bom? Penso que deve ser horrível temer a morte. Já que é algo natural e pelo que vi aqui não é um lugar tão ruim assim... — Ela refletiu observando a pedrinha que continuava em sua mão.

— Se os humanos não temerem a morte eles não valorizarão a vida. – Ele disse enquanto olhava para os detalhes no rosto de Yuná involuntariamente. Reparou que além de seus olhos serem azuis, como os tons que emanavam de sua aura, era possível ter um breve vislumbre de uma constelação estelar.

Que lindo. — Pensou. Ele não conseguia controlar o impulso de encará-la mesmo quando o assunto não estava tão agradável quanto gostaria.

Sem notar que Yuhan a encarava, Yuná absorveu a resposta em silêncio. Apenas percebeu quando ele desviou o rosto bruscamente. Vendo que ele estava sem graça, pensou que o assunto deveria ser delicado de se mencionar.

— Eu não me importo. Enquanto os humanos perdem tempo com coisas físicas, eles acabam perdendo o conhecimento de tudo do que existe fora daquele planetinha. Não fazem ideia do tamanho do universo. Ainda perdem as memórias daqui por que suas mentes se limitam apenas ao que podem ver, ouvir, sentir e aprender. Vocês saem do mundo espiritual quase que completos ou perfeitos para buscar algo e alguém que os complete, tem que aceitar que são imperfeitos em um corpo que envelhece; que adoece. Muitos se tornam maus nesse processo, fazem coisas odiosas ou se tornam vítimas de outros humanos ruins e quando retornam ao mundo espiritual como almas penadas, ficam vagando em arrependimentos, relembrando das coisas em vida que foram tristes. Nós temos todo o trabalho de consolar esse povo para que eles transcendam e voltem a ser quem eram antes do mundo mortal. Essas almas precisam reconhecer que o tempo como seres humanos foram apenas mais uma parte do aprendizado de suas existências. Se você não escolhe nascer evita todo esse desgaste e está tudo bem por que ainda assim nós existimos e acabamos aprendendo sobre tudo apenas de maneira espiritual.

Yuná só escutava o que Yuhan dizia e sentiu um peso nas costas dele. Ela só conheceu almas que ansiavam pela experiência de vida humana, de poder ver a criação lá fora. De tocar, cheirar, sentir, amar e viver anseios que apenas na Terra eram possíveis de se realizar de maneira concreta. No mundo espiritual, todas as experiências eram metafísicas e jamais poderiam ser sentidas de verdade pelas almas de nível comum. No entanto, ela não quis discutir. Ela acabara de o conhecer e nem sabia o motivo real dele decidir permanecer como um não nascido. Tinha consciência de que cada um deve escolher o próprio caminho.

Se levantando da areia, se sentindo meio pesada, triste, não gostou muito do passeio no fim das contas, disse:

— Vamos embora... Eu até gostei de ver mais de perto o mar, mas tem alguma coisa faltando que não me agrada. A primeira vez que vi, lá na ponte, eu fiquei empolgada porque foi a primeira vez, mas acho que criei expectativas demais. Eu esperava ver algo mais bonito, ver outras almas caminhando por aqui, ou que sentiria algum cheiro agradável. Praticamente não tem nada.

Yuhan se levantou e limpou a areia de suas roupas. Afirmando com a cabeça ele completou:

— É. Pensando bem foi uma péssima ideia vir aqui. O Reino dos Mortos tem alguns lugares sombrios. O nosso mar é um deles. Não há vida nessas águas e por isso você se sente assim, mas existem lugares menos sombrios. Temos lojas de incenso que acalmam, saunas reconfortantes, casas de massagem, temos funcionários treinados para ouvir os oprimidos e temos os parques com jardins de consolo que são muito bonitos. Talvez queira conhecer depois.

Yuná fez que sim coma cabeça e limpou sua roupa do mesmo modo que seu acompanhante fizera. Jogou apedrinha porosa, que ela brincava na mão, de volta ao seu lugar, mas nãoreparou que sua aparência havia mudado.

Além das Flores - CONCLUÍDO ( 44 de 46)Onde histórias criam vida. Descubra agora