— Ei você! Chegamos! — Disse a voz grossa familiar e ríspida.
A brilhante alma abriu os olhos, ainda sentindo a cabeça pesada do cochilo e ouviu o motorista barbado de aura marrom resmungar:
— Essa morreu dormindo, só pode! — Ele xingava.
Então ela olhou ao redor e sentiu uma luz pálida tocar seu rosto. Era uma luz distante, triste, fria. Não era o que ela esperava do lugar onde ela partiria para o nascimento.
Da janela do ônibus ela viu outra alma olhando para ela do lado de fora. Encarava-a com uma expressão séria, fria, entediada, mas curiosa ao mesmo tempo.
Em todos os reinos ela já havia se acostumado a ver almas de seres belos, mas aquele em específico chamou sua atenção. Diferente das outras almas, este quase não emanava brilho. Parecia ter um corpo bem formado como se estivesse vivo no mundo mortal. Seu cabelo liso, curto e bagunçado era tão preto quanto a escuridão do universo, tinha a pele branca como mármore e usava um sobretudo preto combinando com o cabelo, com seus olhos e com aquela paisagem.
— Você tem que descer, ôoh alma! Senão eles vão te prender por desobediência. Você não vai querer atravessar a ponte com aquele Grifo, te dou certeza disso. — O motorista continuava impaciente.
— Grifo? Oi? — Ela continuava confusa. — Ah sim. Já estou descendo. Desculpa. Acho que peguei no sono. Todos já desceram?? — Ela começava a brilhar alegremente mesmo sentindo vergonha pelo incomodo que causava. Estava tão ansiosa para sua aventura no mundo mortal que não conseguia deixar de agir meio desastrada.
— Ahhh! Você era cega em vida? Só falta você! Anda, Anda! Desce logo! — O motorista a empurrava enquanto ela cedia sem entender muito bem as coisas que ele estava falando.
Então ela desceu as escadas do ônibus e ficou de frente para o cara que ela vira antes pela janela.
— Você... — Ele começou. — Você veio ao lugar certo? — Ele perguntou meio confuso olhando-a de cima até embaixo.
— Ah sim! Estou ansiosa por isso aqui. Acho que estava tão agitada que acabei dormindo de cansaço durante a viagem! — Dizia ela radiante. — Tome! Aqui estão meus documentos. É só atravessar é isso?
O motorista olhou para o atravessador e para a moça de novo e deu de ombros:
— Talvez ela morreu feliz. — Ele cochichou tapando a lateral do rosto com a mão para que somente o Atravessador ouvisse.
O responsável pela travessia deu de ombros. Pegou a documentação sem prestar muita atenção, pois já estava cansado daquele dia. Apenas dispensou o motorista e pediu para que a brilhante alma o acompanhasse.
— Puxa! Achei que aqui era mais claro. Esperava ver algo que combinasse mais com a vida. — Dizia a alma radiante enquanto olhava tudo a volta. Quanto mais ela explorava, mais brilho saia de si.
— Muitas almas pensam isso quando chegam aqui. É a famosa ilusão da vida após a morte. Acham que tudo é branco. — Dizia o atravessador que não resistia contemplar o brilho daquela alma.
— Vida após a morte? — Ela ainda não entendia.
— Vejo que você não está tendo problemas para aceitar sua nova vida aqui. – O atravessador estava surpreso.
— Esperei muito por isso aqui. Quero experimentar cada novidade. Será que vai demorar muito até achar um corpo para mim?
— Aammm... — O atravessador concluiu que aquela alma ainda não tinha compreendido a própria morte, o que era bem comum já que várias almas recém-residentes não possuem consciência de que morreram e aos poucos elas vão se recordando da vida humana e obviamente se dão conta de que morreram depois.
— Pense no que te fez mais feliz e vai encontrar o descanso mais rápido. — Ele sugeriu.
A alma brilhante seguiu o conselho daquele atravessador e imaginando como seria sua nova vida ficou feliz, tão feliz que radiou forte formando uma aurora iluminando aqueles céus, toda a extensão da ponte, do mar até na ilha. O lugar ficou lindo com o toque de sua aura. Em toda existência como atravessador ele nunca tinha visto algo igual. Como se estivesse sob encantamento, por um momento, desejou tocar naquela alma para sentir aquela energia.
Após caminhar lentamente, admirando aquela presença que destoava das demais, o atravessador parou, pois a brilhante alma se aproximou do guarda— corpo da ponte e parecia fixar o olhar no escuro mar.
— Nem pense em pular! — Alertou o atravessador retornando à sua compostura vigilante, fria e séria.
— Ah não se preocupe. Eu não quero pular. Só queria ver. Eu nunca vi o mar. — Ela olhava com tanto amor para aquela imensidão de água que parecia encher de vida um lugar onde só habitavam mortos.
O atravessador ficou observando quieto e por um tempo permitiu que aquela alma permanecesse ali realizando sua vontade.
— Que alma estranha. — Ele pensou resolvendo perguntar:
— Como você se chamou? Você se recorda?
A alma que brilhava se voltou para ele e coçou brevemente a cabeça.
— Bem... Eu nunca tive nome. Na escola me chamavam de Brilhante por causa dessa minha luz, mas eu sei que era um jeito de zombar de mim, então não considero bem um nome.
— Hum... Então você não se lembra. – Ele falou baixo para si mesmo. — Nunca vi ninguém aqui assim. Por aqui todos eles são tons de cinza, marrons, beges ou verdes — Pensou novamente. — Mas então quer dizer que não gosta de ser chamada de Brilhante? — Yuhan parecia gostar da interação que quebrava sua monotonia.
— Ah não muito. Gostaria de receber o nome dos meus pais biológicos.
O atravessador sentiu pena por pensar que ela não se recordava de sua vida humana ainda.
— Yuná. — Ele disse pensativo olhando para o mesmo ponto no mar que a moça olhava antes.
— Oi?
— Delicada... É o que significa esse nome. — Ele informou. — Gostaria de ser chamada assim? — Ele deixou um sorriso (há muito tempo não usado) escapar.
— Mas por que usar esse nome? — Ela estranhou.
— Ah! É curto, simples, fácil de lembrar, tem um belo significado, é... Bonita... Quero dizer, é um nome bonito. — Ele a olhava sem entender porque se sentia meio aéreo. Ela o encarou de volta por um momento. Diferente das almas da escola, ela percebeu algo bom emanar dele. Ele não estava debochando dela nem a subestimando. Algo dentro dela a fazia sentir segurança, ele era diferente, por isso alguns tons rosados começaram a emanar mais fortes em sua aura já colorida.
— Gostei. Então, serei Yuná. E você é? — Perguntou feliz aceitando a sugestão. Pela primeira vez ela tinha um nome.
— Muito prazer. Eusou Yuhan, o atravessador.
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Além das Flores - CONCLUÍDO ( 44 de 46)
FantasíaATENÇÃO: Esta obra é uma ficção baseada em VOZES DA MINHA CABEÇA, inspiradas por mitologias e crenças sem vínculo verídico religioso. Entretanto, contudo, porém, todavia(rsrs), é uma história com forte apego aos princípios cristãos. Não possui hot...