O Forasteiro

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Foi por acaso que me veio esta lembrança. Alguém na fila do supermercado comentou algo a respeito dos quinze minutos de fama tão almejados nos dias de hoje e, sem que me desse conta, fui conduzido por Mnemonize de volta à minha cidade  de origem e a um episódio nela ocorrido.

Foi o caixeiro viajante, e não os correios, quem trouxe a noticia. Ele era o pai das noticias e sempre que retornava de suas andanças era o bem mais precioso que trazia. Não é a toa que tinha lá sua influência. O que dizia era tido como verdade absoluta, mesmo porque o povo não tinha muita vontade de questionar essas verdades.

Ele chegou com o sorriso no rosto e dizendo a quem quisesse ouvir que desta vez a nossa cidade iria aparecer no mapa. Logo, juntou gente para saber do que ele falava e sem pausas nem para respirar ele pronunciou:

- O ator principal da novela das oito declarou que fará uma visita a nossa cidade no próximo feriado.

Nem bem ele acabou de pronunciar aquelas palavras, os ouvintes saíram para contar a novidade, como se eles próprios a tivessem escutado da boca do galã. É verdade que, para uns, aquilo entrou por um ouvido e saiu pelo outro, mas a grande maioria fez daquilo o ponto mais alto de suas pacatas existências.

- Atrás deste ator virá uma parafernália incrível e homens com charutos fedorentos! Daí adeus sossego, adeus tranquilidade! - bradou o Manolo, descendente de espanhóis e dono do único boteco da cidade, com seu pessimismo característico, mesmo porque duvidava que gente como aquela gente saberia apreciar seu estabelecimento.

Mas, foi o único. O restante saiu a comemorar e se preparar para a vinda do ator.

O excelentíssimo senhor prefeito, orgulhoso com o acontecimento, refez todo o seu vestuário...Verdade que não explicou de onde surgiu a renda para tal extravagância...O certo é que deveria estar a altura do visitante; afinal, não queria aparentar um homem atrasado nas questões de moda e bom gosto: mandou copiar os modelos de terno que vira o ator usar em um de seus filmes. Nem atentou para o fato de se tratar de uma comédia, com um figurino um tanto exagerado e extravagante.

- O forasteiro trará progresso e modernidade... Fora o mundo de gente que vira nos visitar ao saber que ele esteve por aqui... - repetia sem parar, como criança diante de um brinquedo novo.

Flora - como não me lembrar dela? – conseguiu ficar ainda mais bonita, desfilando todas as roupas caras que eu mesmo havia lhe presenteado um dia. Em pensar que eu lhe devolvi todos os presentes que me dera! A verdade é que até mesmo o colar de pérolas, que me custara dois meses de mesada,  já estava programado para brilhar em seu pescoço no dia em que o ator chegasse.

De repente, todo mundo começou a agir de modo estranho, pensando no feriado que se aproximava.

A sociedade das senhoras do bom costume, modo carinhoso que o pessoal do colégio apelidava as matronas defensoras da moral e das tradições, quase se desfez. As nossas censoras estavam mais preocupadas em casar suas filhas com o excelente partido, do que em fiscalizar os namoros mais ousados na praça central. Nunca mais vi tanta moça bonita debruçada na janela como naqueles dias, nunca vi tanto casal na praça.

A dona Rita, velha de posses, e que sempre colocara a sua filha em uma redoma de vidro, longe dos espertinhos da cidade, exibia um sorriso vitorioso, como se dissesse:

- Minha Carla há de encantar o ator, mesmo porque com o dote que receberá, acho difícil não levá-la junto, quando voltar para a cidade grande.

Meu amigo Aldo, um entregador de jornais, entenda-se da única gazeta da cidade, passou a fazer aulas de canto para melhorar o seu timbre de voz:

-Um ator deve ter boa voz. Quem sabe ele não me descubra.

-Mas, desde quando quer ser ator? Não me disse que iríamos embora daqui para cursar jornalismo? – quis saber.

Ele deu de ombros e repetiu-me uma palavra que aprendera há poucos dias atrás: versatilidade.

Fora os descrentes, como eu, todos se agarram a esta visita como se fosse a solução milagrosa para todos os males.

Os dias se passaram e, com a aproximação do feriado, alguém teve a brilhante ideia de preparar uma festa de recepção. Novamente o nosso pequeno orçamento fez milagre, pois se planejou uma festa tão grandiosa que um semestre seria pouco para refazer o rombo nos cofres públicos. Teria de tudo: bandeiras, barracas, banda, palanque improvisado, queima de fogos programada, a chave da cidade e até um tapete vermelho de veludo.

O feriado finalmente chegou e todo povo eufórico e ansioso foi ás ruas. Um repórter da gazeta entrevistava até criança para saber a quantas andava a expectativa. E o fazia de maneira ímpar, feliz com a exclusividade da notícia, que havia sido garantida em acordo a portas fechadas com o prefeito. Mas, afinal, ele iria perder a entrevista para quem, se em nossa cidade só havia um jornal e nenhum outro veículo quis noticiar o acontecimento? Vai entender...

As horas passavam. Nunca mais vi tanto sorriso em minha vida. O povo driblava a fome, já que o banquete mesmo só em presença do ilustre visitante, e como não podia comer, só restava sorrir.

Novamente minha descrença convenceu o meu estômago que,  por mais bela que fosse aquela imagem de pessoas felizes, nada melhor do que o conteúdo de minha boa e velha geladeira.

Eu almoçando – uma hora; Aldo esperando – duas horas; Carla na janela – três horas.

Ás cinco horas, ninguém mais reparava na bela Flora, que havia monopolizado todos os olhares ate então, nesta altura só a mesa dos petiscos atraía os interesses. Ainda assim, o prefeito ordenou que a banda tocasse, que os fogos fossem estourados, que a festa se fizesse grande e bela como fora planejada. Afinal, não podiam ser pegos desprevenidos, se o ator surgisse do nada.

Lá pelas tantas: Um carro: uma falsa esperança. Ele chegou até a entrada da cidade e deu meia volta dali mesmo, num distinto cavalo de pau. Nem chegou a revelar o motorista, mas levou com ele todos os sorrisos que haviam sobrevivido e a respiração que estava presa pôde ser solta, quando ele sumiu.

O povo pensou em se dispersar após tamanha frustração. Mas, isto ficou no terreno das ideias, e como se tivesse sido combinado, transformaram a mesa do banquete em estrela principal da historia. Comeram e beberam, como se fosse festa de fim de ano.

Fim de festa. O ator nunca pisou na cidade que, obrigada a voltar ao seu curso normal, jamais foi a mesma.

O Manolo mudou-se. Não de cidade, mas sim de profissão. Deixou de ser dono de bar, virou político, afinal, foi o único que não queria a vinda do tal ator e o único a quem o povo escutou ao constatar que ele não viria. Flora casou-se com ele num período curtíssimo de tempo: assim que ficou claro nas pesquisas que ganharia a eleição para prefeito.

O caixeiro, pobre, desacreditado, quase perdeu todos os clientes. Isso não aconteceu, apenas por conta de seu novo sócio: o prefeito. Ele fez com que o caixeiro levasse todos aqueles ternos para longe e os vendesse a peso de ouro, dizendo que haviam sido usados pelo próprio galã. Era uma pequena mentira, não faria mal. A parceria deu certo, o que significava dar lucro.

Carla, para desespero de sua mãe, fugiu com Aldo, para destino desconhecido.

Eu vim para São Paulo para ingressar na faculdade de jornalismo e não mais retornei para aquele lugar onde vivi os anos mais despretensiosos de minha vida. Hoje tenho uma coluna em um jornal de tiragem estadual.

Quanto ao ator? Encontrei-me com ele por acaso, voltando de uma viagem, e resolvi tirar a dúvida. Sem revelar que vivi aquele episódio e o que ele representou para aquela cidadezinha, perguntei-lhe, mascarando a curiosidade como jornalística, se era verdade que pretendeu, em alguma época de sua vida, visitar aquela cidade.

Fez um esforço para lembrar-se e depois me respondeu com ar de tédio:

- Pretendi sim. Queria um lugar calmo em que pudesse descansar, sem badalações.

- Soube que não foi. O que aconteceu, então?

- Enganei-me na pesquisa. Quando estava próximo da cidade, pedi para minha noiva, que seguia em outro carro, que fosse verificar se  o lugar era mesmo calmo e se havia uma pousada ou coisa do tipo onde pudéssemos ficar e curtir um feriado em paz. Ela nem chegou a entrar na cidade. Parou diante de uma balbúrdia tão grande, de uma barulheira tão incrível, que resolveu dar a meia volta dali mesmo. Infelizmente não era o lugar que imaginei, definitivamente não era o lugar que queria para mim.

FugazOnde histórias criam vida. Descubra agora