O barulho dos saltos nas escadas chamou a atenção de todos que estavam no camarim. Alguns apostaram que se tratasse de alguma atriz atrasada que, para compensar o tempo perdido, promovia um som parecido ao sapateado, para estar pronta até o início do espetáculo.
Assim, quando a jornalista entrou ofegante na parte reservada aos artistas, os olhares se cruzaram, interpelando-se o que ela fazia ali. Júlia Lemos era a namorada do diretor, mas jamais entrara ali, podendo ver algum ator ou atriz em plena troca de roupa, já que faltavam menos de dez minutos para as cortinas subirem e a peça iniciar.
Passada a surpresa, todos perceberam as gotinhas de suor em sua testa. Diretor e também escritor da peça, Edgard deu um passo na direção dela, que havia parado bem em frente ao cartaz "A arte é livre", que estava ali desde que a companhia passara a se apresentar ali.
- Vai tirar o pai da forca, Júlia? – Edgard brincou – Poderia ter esperado as cortinas subirem e baixarem para nos dar os parabéns.
- Não foi para dar-lhes os parabéns que estou aqui - ela revezou o o olhar entre o namorado e os atores e as atrizes de quem havia ganhado a atenção.
- O que, além disso, faria com que subisse correndo as escadas, querida? – Marisa, a nossa atriz principal perguntou sem esconder a sua antipatia com a jornalista.
- Vocês têm que cancelar o espetáculo, Ed, ou mudar o conteúdo – comunicou aflita.
- Do que está falando, Júlia? Sabe que tanto uma coisa quanto a outra é impossível.
- Vai ter gente deles assistindo – ela andou até o espelho, onde Marisa minutos antes se maquiava, e apoiou-se, cansada.
- E como você sabe? O que os traria aqui? – Edgard disse sério pela primeira vez.
- Sei porque tenho ouvido e porque andaram canetando algumas matérias no jornal, cortaram todas as palavras que acharam subversivas.
- Mas a arte é livre – André, o ator principal da peça, indignado apontou o cartaz.
- A arte pode ser, mas se vocês quiserem continuar assim, ouçam o que estou dizendo. As palavras "mordaça" e "cegueira" chamaram a atenção deles. Haverá alguém na plateia e, se acharem que estão tentando passar alguma mensagem subliminar, todos vocês irão em cana. E sabe-se lá o que virá depois, porque tem gente sumindo.
- Sumindo? Está exagerando, Julinha – Helga, a atriz mais experiente da companhia duvidou – Em meus quarenta anos, nunca ouvi sandice parecida – diante de sua fala, Júlia ergueu uma das sobrancelhas, pensando: Só se fossem quarenta anos de carreira.
- Por favor, Ed, me escute... – Júlia a ignorou e olhou dentro dos olhos do namorado.
Edgard andou de um lado para o outro, não podia demorar muito para se decidir e confiava demais naquela mulher para ignorar-lhe o aviso
– Cirano de Bergerác – ele disse, de repente.- O que? – o som foi uníssono entre os atores e atrizes da companhia.
-Vamos encenar Cyrano! Todos sabem a peça de cor.
- Mas... – André disse inconformado – Isso é totalmente injusto. Tanto ensaio...
- Eu sei, mas é o mais seguro – Edgard deu de ombros, impotente diante da situação.
Naquela noite, quando as cortinas subiram, a peça que retratava um jovem tomando emprestado a eloquência de outro para conquistar a mulher amada foi encenada, causando grande frustração em todos que esperavam uma peça original que denunciava os mandos e desmandos do governo recém-empossado.
Apenas um homem sorriu na plateia, anotando num papel a seguinte informação: Prestar mais atenção. A peça retrata um jovem repetindo um discurso que não é seu. Pode se tratar de alguma metáfora contra o regime.
No fim da página, assinou seu nome, num rabisco incompreensível, e, ao lado, colocou a sigla do departamento que representava, o DCDP - Divisão de Censura de Diversões Públicas. Para completar, pensou um pouco para se lembrar de que dia era aquele e rabiscou no papel a data: 7 de abril, de 1964.
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Fugaz
Short StoryO que é o conto, além de um retrato fugaz da realidade? Um momento apenas, congelado no tempo que corre. Reúno aqui alguns contos, uns breves, outros nem tanto, que já fizeram parte de outras coletâneas. Um modo de passar o tempo e pelo tempo, faze...