Do Amor uma história

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Pedro Malaquias amava Eurídice.

Eurídice amava quem quisesse e, principalmente, quem lhe conviesse.

Quis o destino a vizinhança de ambos. Pedro no andar de baixo, Eurídice no de cima. Cruzaram-se, certa feita, na escada.

Pedro quedou-se enfeitiçado e, desse dia em diante, tudo o que fora morreu nos olhos da bela mulher: perdera a pouca sanidade que possuía. Não o viu, Eurídice. Antes, reparou em suas mãos grosseiras, em suas roupas surradas. Não enxergando nele ambição, julgou não ter visto nada. Para ela, foi apenas mais uma dessas figuras sem expressão e que cansam a vista.

Das poucas vezes que ela pensara nele, foi por conta de torneiras e chuveiros que careciam serem consertados; coisas que exigiam força bruta.

Pedro, por sua vez, viu-a tantas vezes, mesmo quando ela estivera ausente. Fez dela sua obsessão mais doce, seu projeto mais almejado, sua alucinação necessária.

Estava, a moça, sempre ocupada ou acompanhada. Tantos eram os homens que se não distinguiam os tolos moços dos distintos senhores. E Pedro sofria uma vida inteira em suas noites insones. O seu céu ficava apenas a um andar acima.

Eurídice sabia da estranha fascinação que causava. No fundo, aprovava aquele doce desespero. Procurava o elogio como o ladrão, a fraude. E seguia consentindo com todas as loucuras feitas em seu nome e sorria da fragilidade de tantos homens. Duros homens! Moldava-lhes para o lado que quisesse, na hora que em entendesse.

Nas poucas entrevistas concedidas a Pedro, apareceu-lhe vestida feito beata. De Eurídice ele não tinha nada além dos ombros. Ainda assim, em sua ambição de apaixonado, imaginava e imaculava aquele corpo; santificava todas as sandices de Eurídice, todos os seus erros perdoava.

Mas, Pedro não interessava para a moça. Ele a irritava. Seus tantos cuidados, seu jeito sem jeito, tudo lhe era motivo de bocejo. E ele a cercava –  ela o driblava –  sem  perceber que era só repulsa o que a moça lhe nutria. Chegando ao auge de sua irritação, ela lhe disse certo dia:

- Quero que não me procure mais. Nem me ligue... A partir de hoje não haverá mais torneiras para serem arrumadas! Não sou para você não, Pedro! Acredito que algum dia entre por aquela porta aquele a quem sempre esperei e que me fará feliz, como mereço ser.

- Ah, Eurídice! Um dia...

- Sinto muito, Pedro. Mas, para nós nunca haverá esse dia.

E Pedro saiu e aceitou a decisão. As horas ficaram lentas, os dias todos escuros, a vidinha medíocre, sem nenhuma suspeita de felicidade.

Conheceu, por este tempo, na farmácia em que trabalhava, a jovem Manuela. Não tão bonita, não tão alta, nem tão sedutora. Vendo-a inúmeras vezes, não a enxergou em nenhuma delas. A recíproca não foi verdadeira.

O tal homem esperado por Eurídice também apareceu. Pedro encontrou-o na escada, certa vez. E achou-o pequeno, dono de olhos estranhos, incapazes de transmitir qualquer coisa.

Mas, Eurídice agradeceu aos céus pelo bem recebido. Rendendo-se, assim a um misterioso homem: além de dizer-lhe apenas o sobrenome, só aparecia uma vez por mês, sumindo o restante dos dias.

E o homem logo implicou com a vida que a mulher levava e feito dono, exigiu-lhe exclusividade sobre o corpo. Afastou-se ela de todos os outros, tomou-lhe o ar independente. De repente, mudou, murchou. Ria só o riso do homem, só queria o querer dele. Vitimou-se de um veneno que estava acostumada a destilar. Sem o mesmo brilho, nem o mesmo brio, aprendeu a ser sombra.

E estando tudo nos trilhos, descarrilou o trem da vida.

Certa noite, Pedro foi despertado por desesperadas batidas à sua porta. Levantou-se prontamente e prontamente se viu assustado. Era ela. Eurídice! Feito anjo que caíra, pedia sua ajuda. Que impacto causou aquela descida! Vinha triste, frágil e chorava. O homem havia passado e em seu rastro apenas miséria, dor e doença. Sem dizer palavra solicitou abrigo, Pedro sem dar-lhe resposta, ofereceu-lhe o ombro amigo.

Ele a acolheu, melhor, a socorreu. Fraca, desidratada e com uma doença mundana estava. Levou-a ao médico e pagou seu tratamento. Façanha conseguida com a melhoria de seu emprego. Foi seu companheiro e enfermeiro de todas as horas. Deu-lhe almoço, jantar e banho. Findo o mistério sobre aquele corpo almejado: mas já não era o mesmo a que tantas vezes tinha imaginado.

Tratou-a com fidelidade. Não com mãos de escultor, mas sim de restaurador. E deitou-se na mesma cama que ela, sem tocá-la. E comeu no mesmo prato e bebeu no mesmo copo, não cogitou ser ou não contagiosa a tal doença.

Eurídice foi, então, recuperando as formas, o brilho dos olhos e a habitual firmeza. O humor veio aos poucos. Quando menos se esperou, formosamente de volta ela estava.

Foi quando olhou Pedro pela primeira vez. Envergonhou-se do passado, não só grata, mas impressionada também. Reconheceu toda a sua dedicação, ofuscou seus defeitos e amou a todas as qualidades que ele possuía. Principalmente, a insistência. Reconheceu nele, também, o endereço de suas vontades, o antídoto para todos os seus males.

Lindíssima e recuperada, aguardou a volta de Pedro do trabalho. Acariciou-lhe o rosto, afrouxou-lhe a gravata, olhou-o nos olhos, oferecendo a boca, o beijo, tudo enfim. Hipnotizada declarou o que Pedro sempre quisera ouvir:

- Sim!

Mostrou finalmente ter alcançado um querer sem interesse, sem luxúria, sublime. Ofereceu toda sua ternura, devoção, emoção realmente paixão. E, ao beijá-lo, no fim, não foi só o corpo que ofereceu, mas a alma, a promessa de amor eterno.

E Pedro Malaquias, abrindo os olhos, afastou-se calmamente. Não é o mal dos homens descontentar-se com o que possui? Tentou querê-la, amá-la como fora um dia e tê-la como sempre quisera. Era tarde, sua felicidade possuía já outro nome: Manuela.

FugazOnde histórias criam vida. Descubra agora