Tempestade

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     Deixaram minha muda á sombra de duas grandes árvores. Sem saber nem como, nem porque, essas árvores – que eu maravilhado olhava, pensando se algum dia as alcançaria em altura e beleza –, fizeram-me seu protegido.

    Inexplicavelmente, se acontecia alguma tempestade, aquela árvore mais velha absorvia todo o impacto provocado pela força da água e o que me atingiam eram gostas quase que poéticas e aquilo que deveria me fazer mal, tornava-se motivo de minha admiração. Era como se, a cada chuva, esta árvore esticasse seus galhos sobre mim, filtrando-a, tomando para si todos os duros golpes.

     A outra árvore, um pouco mais nova, de folhas verdejantes e caule macio, ajudava nesse processo de proteção. Enquanto eu não crescia, ela apanhava para si todos os ventos fortes, como para evitar que me atingissem com toda a sua potência. Se o vento mudava de lado, começando por onde eu me encontrava, então era impressionante. Esta árvore, com suas longas raízes subterrâneas, segurava-me com tanta força que vento algum era capaz de me mover.

     O tempo foi passando. Graças a uma e a outra, fui crescendo com vigor. Não temendo a nada, nem a ninguém. É que os homens andavam por aqui com suas ideias de progresso e sua trilha de destruição.

    As duas árvores ainda eram meu grande exemplo e motivo de orgulho. Aliás, eram meu objetivo: queria herdar delas os grandes ensinamentos e a valiosa coragem. Olhando-as, tinha certeza de que qualquer outra árvore daquela floresta poderia sucumbir aos duros golpes da natureza ou da lâmina de um machado, menos elas.

    Porém, estando eu a ver nascer meus primeiros galhos, com folhas ainda pequenas, sem a beleza verde da vida; tendo o meu caule ainda aquela cor esbranquiçada e, em nada o tamanho ideal; conheci a pior tempestade de minha existência.

     O dia amanheceu como outro qualquer. Sem novidades, o sol tocou-nos e o maravilhoso cheiro de mato e de flores inebriou o ar. O canto dos pássaros, tantos e tão belos, tocou a doce sinfonia, uma harmoniosa conversa com Deus. Nem mesmo os passos dos homens e a barulheira de suas serras elétricas foram ouvidos. Com segurança, pôde circular todo tipo de animal, já que a grande fera ausentava-se.

     Ao meio dia, o sol espalhou seu grande calor por todos e iluminou, uma a uma, todas as árvores. E, nesse momento, tive a visão do que achei perfeita para o resto da vida: olhando a sombra daquelas duas árvores, percebi que formavam uma só imagem. Percebi que, na verdade era uma só, mas que Deus, criador de tudo e de todos, fizera-as separadas para que pudessem, a seu modo, compartilhar suas sombras com outras criaturas como eu.

     Ao cair da tarde, a sinfonia emudeceu e todo colorido deu lugar  a um nuvem cinzenta que, formando-se rapidamente, escureceu toda a região.

     Os animais correram para suas tocas e se prepararam para sobreviver. As formigas e outros tantos insetos entraram para seus esconderijos: galerias subterrâneas, troncos, esconderijos, colmeias. Todos pareciam adivinhar que o melhor a fazer era se proteger.

    O vento começou fraquinho como se fosse um leve chiado. Depois, enfurecendo-se cresceu, chicoteando, assoprando com força; feroz e arrasador. Assim, aumentando de proporção e causando estragos: arbustos arrancados, galhos quebrados, ninho destruídos. Temia, pela primeira vez, sentia medo. Via as coisas voando e passando desordenadamente em minha frente.

    Já possuía minhas próprias raízes, ainda que fossem fracas e imaturas, segurava-me, enquanto o vento espatifava-se em meus galhos. Vi árvores pequenas serem arrancadas da terra com raiz e tudo, ou então, outras perderem suas folhas ou grandes galhos. A nós, árvores, não nos era dada a possibilidade de abrigo, estávamos a céu aberto, era essa a nossa natureza.

   Não bastasse o vento, a tempestade. Gostam que caíam feito chicotes. Pingos que feriam feito machado; aqui, ali, sempre, sem parar. Pareciam pequenas bombas, eficientes em minar nossa resistência.

      Foi quando aconteceu o pior.

     Inesperadamente, um raio formou-se no céu e atravessando-o com velocidade assustadora, veio em nossa direção. Senti um arrepio quando ele passou às minhas costas, antes tivesse me atingido. Aquele impiedoso raio encontrou-se com o tronco daquela árvore mais antiga e sem que tivesse tempo para qualquer coisa, a árvore tombou inerte. Ao pé de mim, estava aquela que sempre havia me protegido.

     Após acontecimento tão triste, a chuva foi cessando e o vento acalmou-se. Como num passe de mágica, o céu abriu e seria possível até contemplar as estrelas, se minha atenção não estivesse presa ao solo. A lua iluminou a minha dor.

     O mundo já não era mais o mesmo. Sucumbiu aquela que eu achava eterna. A outra árvore, mais nova, também sentiu o golpe. Foi como se tombasse um pouco, como se estivesse também próxima da queda. Teria que aprender a ser metade.

     Homens apareceram no dia seguinte e, felizes com o trabalho na natureza, removeram todas as árvores caídas. Não esconderam a alegria evidente diante de tanta madeira.

      Senti que a outra árvore desejou que, a duros golpes de machado, fosse levada também. Mas eles, os homens, estavam satisfeitos. Depois da tempestade,  o machado não tocaria em ninguém por um bom tempo. Eles se foram e a vida permaneceu triste.

     No entanto, necessitava crescer, continuar. E embora não quisesse, era como tinha que ser. De repente, vi aquela árvore restante fazer o papel de duas, protegendo as novas mudas da chuva e do vento. Vi também que aquela era a sua razão para continuar.  E o tempo passou.

      E quando esta árvore, agora com folhas já amareladas pelo tempo, quis desistir e tombar, foi a minha vez de ampará-la com meus galhos. Afinal, havia me tornado uma grande árvore, superando-a em altura e vitalidade. Era a minha vez de protegê-la.

   Sem perceber, essa foi a herança deixada pela árvore que havíamos perdido. Havia aprendido e talvez, à minha sombra, cresceriam outras que, um dia, tomariam o meu lugar. Cumprindo, assim, a lei da natureza, num verdadeiro ciclo de amor. 

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