Alice
Não pense. Não sinta. Esqueça. Esse era meu algoritmo para sobreviver aos meus pais, ou melhor, a falta deles. Fechei os olhos e deixei o vento congelante desse inverno que passava beijar meu rosto com lábios tão gelados que doíam, a dor era uma boa distração. Eu parei de me importar a muito tempo e eles também, então porque aparecer e fingir que se importam? Com uma briga ainda por cima, por motivos idiotas. São como mosquitos, pensei, a gente esquece que existe até sentir uma coceira e um caroço feio aparecer na nossa pele. Sim... eles são como mosquitos.
A fumaça fedida que anunciava a chegada do ônibus infestou minhas narinas e fiz uma careta. Onde já se viu? Uma menina rica, herdeira de uma grande empresa, de uma família poderosa e ainda por cima tão bonita, ter que pegar um ônibus. Não é como se o motorista ainda não pudesse trabalhar, era apenas um resfriado, ele não ia cortar cana! Não é como se ele importasse. Olhei para as sacolas de compras em minhas mãos, as marcas mais caras que eu pude achar exibiam seu valor nas estampas das sacolas e nos números do meu cartão, quanto eu tinha gastado? Me sentia muito melhor, afinal estava o fazendo pagar. Eu seria escoltada e me sentiria mal de novo... uma terapia seria mais barato?
Sentei rapidamente no primeiro lugar que eu vi, não era minha primeira vez pegando um ônibus e eu tinha aprendido a não escolher lugar enquanto o ônibus anda, da pior forma possível. Não pude deixar de notar a garota ao meu lado, em meio a tantos rostos cansados e aparências nada mais que comuns, sem graças e até degradantes, seus cabelos ruivos e ondulados, junto a uma pele levemente bronzeada, como um caramelo, sim... ela parecia um belo caramelo. Seu único defeito era suas roupas, aquilo que era alarmante, ela usava apenas uma calça cinza e folgada de moletom, seus tênis surrados provavelmente tinham sido brancos um dia e um moletom fino e grande demais para ela. Me perguntei se ela tinha esquecido de tirar o pijama antes de sair de casa, e me perguntei sem realmente ligar para isso, se ela estava com frio.
O apito que anunciava que alguém desceria apitou e a menina se levantou, nossos olhos se encontraram por um segundo, ao contraio do que pensei ela não parecia com frio, ela tinha um rosto bonito, mas seus olhos castanhos carregavam certo desprezo ao me olhar, apertei os olhos. Propositalmente ela pisa no meu pé ao passar por mim, senti meus músculos se contraírem, meu pé, castigado pelos saltos que tanto insisti em usar carregavam múltiplos calos e pequenos cortes, e inchados contra o tecido de outro salto que eu uso agora, doíam mais ainda. Baixei meus olhos, a marca do tênis com uma substancia duvidosa estava escancarado no claro couro do meu salto favorito. Isso vai sair?! Foi o olho da cara!
- Ei! Você está cega?! Pisou no meu pé! Você tem ideia de quanto foi esse salto?
- Calma princesa é só um salto - A ruiva respondeu tentando em vão esconder um sorriso satisfeito, seus olhos zombavam de mim.
- Não é só um salto! Com o preço que eu paguei nele eu poderia comprar milhares desses seus tênis velhos e sujos que você usa - Cutuquei seus tênis com uma cara de nojo, mas ela pareceu não se importar, e deu uns passos para a porta antes de se virar pra mim uma última vez.
- Não precisa. Use esse dinheiro pra comprar remédios para esse pé seu. Eu sei que doeu.
Me peguei comprando remédios para dor em meus pés naquela noite, e me entupi deles, tentando desesperadamente parar aquela dor em meus pés que hoje parecia pior. Antes de desmaiar de sono eu joguei aqueles saltos no lixo. Por mas que eu tentasse, aquela mancha não saia de jeito nenhum.
Pov Marina
Desci do ônibus com um gostinho de vitória, é claro que eu tinha feito de proposito, eu geralmente sou uma boa pessoa, mas até pessoas como eu precisam de algo para no que se descontar a dor, e pessoas como ela são os meus alvos preferidos. No momento em que ela sentou do meu lado eu só pude notar o tanto de sacolas que ela carregava, com pedaços de pano que os preços absurdos poderiam solucionar boa parte dos meus problemas.
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Quando as Cigarras Choram
Teen FictionA cidade nem era tão grande e as duas nunca haviam se encontrado. Claro, Alice e Marina viviam em realidades opostas, tudo nelas era oposto. A primeira impressão é a que fica e a delas não poderia ser pior, mas não importava, aperto de mão e o trato...