capítulo quatro: astronauta

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"As coisas têm vida própria. Tudo é questão de despertar a sua alma."

Gabriel García Márquez

[Passado/Louis]

Meu corpo inteiro dói.

Passei a semana trabalhando na colheita da lavoura de milho dos Finglers, e estou exausto, como a muito tempo não me sentia. Os calos das minhas mãos estão quase em carne viva, e por pouco não consigo me levantar desistindo de ir para a escola, mas faço um esforço por saber que se eu ficar em casa pela manhã terei que lidar com meu pai.

Tomo um banho rápido e me visto, passando pela sala onde a pequena televisão de tubo está ligada em um volume estrondoso. Ele está jogado no sofá velho coberto por garrafas de cerveja e algumas garrafas de plástico de cachaça. Seu ronco alto me causa repulsa, mas pelo menos está em casa ㅡ já que várias vezes eu tive que buscá-lo nas vielas, porque tinha bebido tanto que desmaiou no caminho de casa.

Aproveitei a colheita, e trouxe alguns milhos para casa, para alimentar a Margarida, minha galinha de estimação.

Achei Margarida perdida nos cafezais há alguns meses. Era apenas um pintinho, e eu fiquei com dó e a trouxe para casa. Desde então, a crio com carinho. Não possuímos outros animais, já que não temos condições e nem tempo para criarmos.

Margarida dorme na minha janela, e me acorda todos os dias. Parei de comer carne por causa dela, e não me arrependo nenhum dia sequer da minha decisão.

Aproveito a brasa ainda acesa para esquentar a água do café. Muitas vezes, vou para a escola sem ter o que comer, já que o dinheiro é precário, mas agradeço por sempre ter o que comer na escola e quando trabalho. A maioria das fazendas onde eu presto os meus serviços servem o almoço ou um lanche da tarde, e apesar de ser pouco, eu aprecio cada mordida.

Guardo dinheiro para sempre jantar, já que é a noite que a fome dói mais.

Lembro saudoso da minha mãe e em como era a nossa vida quando ela ainda estava aqui. Sei que ela jamais me permitiria viver da maneira que eu vivo hoje, e todos os dias eu imploro para voltar no tempo ou por um milagre... mesmo sendo em vão.

Lembro de uma das últimas noites comigo, que ela me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, e eu respondi: astronauta.

Hoje percebo que a minha resposta foi coerente, já que a terra é um lugar angustiante e doloroso de se viver. Quisera eu me mudar para a lua para ficar longe de tanta hipocrisia e mesquinharia.

Chego na escola, e me encontro com Liam na porta. Desde que soubemos que não estudávamos mais na mesma sala, os únicos horários que conseguimos conversar é antes de entrar para a aula, ou no intervalo, ja que Liam sempre precisa sair às pressas da escola para ajudar o pai no pequeno armazém de laticínios da família.

Tenho me sentido mais sozinho ultimamente, mas desde que eu me lembro, no fundo, eu sempre me senti assim... então não faz tanta diferença.

Sento na minha carteira bem ao fundo como de costume, mas, Sra Blair, que dá aula de história no último horário, entra nos pedindo para alinhar as carteiras em um círculo.

Percebo que as duas carteiras ao meu lado estão vazias, e finjo que isso não me abala, mesmo me abalando profundamente.

Antes que eu note, percebo um par de olhos verdes me encarando enquanto puxa a cadeira ao meu lado para se sentar.

ENTERNECEROnde histórias criam vida. Descubra agora