Capítulo 4: Tortuguita

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Seguro as lágrimas o máximo possível quando entro na biblioteca para pegar minhas coisas na salinha.

— Ela tá bem? — Heytor perguntar levantando o rosto rapidamente.

— Sim. — é a única sílaba que consigo pronunciar e mesmo assim a voz vacila.

Empilho as coisas de qualquer jeito e saio, coloco tudo dentro da bolsa e vou até um canto da escola que é mais escondido, atrás da jaqueira.

Sento-me na grama e dou vazão pra toda a água, Mateus me conhece desde o 5º ano e viu toda minha adolescência, viu como eu me comparava com todas as garotas e como eu comecei a usar meu esforço nos estudos pra preencher meus gritos internos por não me achar bonita o suficiente, como eu escondo meus sentimentos me afundando em livros e cursos, como eu escondo meu corpo atrás das "roupas de uma nerd", afinal, não é estranho se combina com a personalidade, como eu preferi ser olhada pelos garotos como "a menina que pode me ajudar no trabalho" ao invés da "estranha que eu posso zoar", como vencer o Heytor se tornou tão importante pra provar pra minha mãe que eu mereço estar nessa escola e ter a viagem de formatura. Eu sei de tudo isso, ele sabe de tudo isso, mas é algo muito sensível para se tocar desse jeito.

Pensamentos tortuosos e lágrimas quentes fazem uma redoma ao meu redor.

Aquele vazio estava lá, o vazio que eu venho há anos preenchendo com o ódio, com aquela guerra, com qualquer coisa que preenchesse minha mente por tempo suficiente. Ele parecia ser do tamanho do mundo agora, algo infinitamente maior do que qualquer coisa que eu pudesse buscar ou fingir ser.

Cada pensamento ruim puxava um pior ainda e no fim nem era mais pela fala de Mateus que eu estava chorando, era pelo medo de não passar nos vestibulares, pela sensação de estar sozinha, pela vontade de ser normal.

— Moça — ouço uma voz masculina fina chegar misturada de passos vacilantes.

Levanto a cabeça sabendo que devo estar parecendo um panda.

— O que foi, garoto? — tento formular sem soluçar.

— Um menino falou pra eu trazer pra você — ele me entrega duas tortuguitas e um post-it.

— Quem foi? — Encaro o menino que deve estar no 1ºano com seus longos fios dourados e óculos redondo, nunca o vi pelos corredores.

— Se eu falar, não vou receber o dinheiro — ele quase sussurra.

— Tudo bem, obrigada — sorrio de canto.

— Magina e melhoras ai. — ele diz e sai.

Abro o pequeno papel adesivo azul e leio a mensagem "nem as tartarugas nem eu nos afogaríamos no oceano de seus olhos, mas sei que precisa de espaço... aproveita o chocolate, espero que fique bem".

Aquilo me faz chorar mais ainda. A caligrafia era com certeza feminina, seria impossível saber o autor misterioso de tais palavras poéticas. Abri as embalagens e comi o chocolate delicadamente seguindo a ordem universal. Guardo o papel no meio do caderno de geografia.

Fiquei lá quieta chorando por mais vinte ou trinta minutos até que estivesse totalmente calma novamente. 

Visto mentalmente minha armadura intelectual de novo, levanto e passo no banheiro pra lavar o rosto antes de pedir um uber e ir para casa.

//

— Filha, sai do quarto pra jantar — ouço minha mãe gritar da cozinha.

Levanto da cama com a cabeça pesando uma tonelada, calço os chinelos, abro a porta e caminho na mesma velocidade que um zumbi até a sala de jantar.

— O que foi, filha? Parece que um caminhão passou por cima de você. — Meu pai pergunta enquanto pega uma concha de feijão.

— Talvez tenha passado, carregado de pensamentos — eu não tava com fome, mas sabia que precisava comer pelo menos um pouquinho.

— Mas tá tudo bem na escola, flor? — Eles se preocupavam bastante.

— Está sim, é só que agora que começam os vestibulares vai ficando tudo mais cansativo e estressante, só isso.

Eu não queria dar motivo pra eles se preocuparem comigo, já são cheios dos problemas de adultos e tudo mais.

— Entendo, lembro de quando foi minha vez — Ela serve farofa pra todos — mas tenta relaxar sempre que der, você é a melhor e tenho certeza que se sairá muito bem. — recebo um beijo na testa.

— Obrigada — sorrio ainda com os olhos pesados e levemente ardentes.

— Podemos comer — papai anuncia após todos estarem com os pratos completos.

Dou algumas garfadas na comida e começo a lembrar de Pyetra, preciso mandar uma mensagem pra ver como ela está.

— Mãe, eu vou na casa da Cho Mina depois de amanhã, tudo bem pra você?

— Tudo, filha, vai fazer trabalho com o heytorzinho? — ela afina a voz ao falar dele.

— Mãe! Ele já tem 18 anos — lembro e todos gargalhamos.

— Perfeito, é a sua idade! — ela exclama animada.

— E nós nos odiamos — lembro-a mais uma vez.

— Você poderia odiar alguém feio, burro ou mal-educado, né — ela toma um gole de suco — seria mais fácil pra eu entender...

— Veja pelo lado bom, são só mais três meses e ele some da minha escola.

— Tudo bem, eu parei — ela desiste — mas seu pai concorda comigo.

— Não me coloca no meio dessa briga, não — papai se defende.

— Só vamos comer vai.

Os três riem e mudam de assunto.

//

Ligo o led azul virado pro teto e lembro do bilhete de hoje mais cedo, tartarugas parecem flutuar sobre minha cabeça. Será que aos 45 do segundo tempo algum menino começou a me notar? Sorrio pensando na ideia boba de alguém se apaixonar por mim depois de tanto tempo, mas deixo a ideia de lado. Isso com certeza não é o início de uma história de romance, preciso parar de dar tanta atenção aos resumos dos livros que Emilly lê. 


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