7. O leão dourado

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🌻 Capítulo 7 🌻

Ana caminhou até a trilha se estender ao topo de uma das colinas. Daquele ponto, ela viu uma impressionante montanha em formato triangular, cercada por colinas, planaltos e bosques; distante demais para que ela pudesse constatar seu verdadeiro tamanho. Ela ficou por algum tempo ali, contemplando a montanha e pensando se deveria seguir aquele caminho — até que ouviu as vozes trazidas pelo vento. Duas delas eram um tanto agudas, e a outra, grave e rouca. Ana se escondeu atrás de uma árvore e espiou para além dela, curiosa.

Ela viu, então, um leão e outros dois animaizinhos acompanhando-o — um pequeno macaco e um camundongo. O felino mancava, parecendo estar bastante machucado. Ana ficou paralisada, sem conseguir tirar os olhos dos três animais. A menina nunca havia visto um leão tão de perto, e por um momento temeu que o grande animal notasse sua presença e a atacasse. Mas ele parecia muito gentil com os outros dois animais; que ficavam ainda mais pequenos perto dele.

O felino deitou-se com dificuldade sob uma árvore, aproveitando a sombra, e o macaco e o camundongo vieram ao seu auxílio. Ana agora conseguia entender o que suas vozes diziam. O macaquinho, particularmente, parecia um tanto irritado.

— Deveria tê-los matado! — ele exclamou. — Como ousam fazer isso com vossa majestade?

— Já lhe disse, pequeno primata — o leão disse. — Era a única forma que tinham para se defender.

— Sem querer ofender o senhor — o camundongo também estava indignado. — Mas deveria ter lhes dado uma patada. Ao menos um rugido! O senhor é um leão ou um rato?

— Não se rebaixe tanto, amigo — o leão continuou. Ana observou o macaquinho analisar uma das patas do felino, arrancando grandes ferrões com rapidez e cuidado. O leão recolheu uma das patas em um movimento involuntário. A menina fez uma careta, imaginando o que havia acontecido com o pobre leão. Mas o camundongo logo esclareceu suas dúvidas em seguida:

— Malditos porcos-espinhos — murmurou o roedor, circundando as patas traseiras do leão. Ana pôde ver seus pelos cinzentos, o longo rabo cor-de-rosa e os miúdos olhos pretos. Ansiando vê-los melhor, Ana inclinou o corpo para frente e não viu a raiz que se sobrepunha à terra próxima aos seus pés. A menina cambaleou, caindo com o traseiro no chão. Ela estava prestes a voltar para trás da árvore, mas percebeu que era tarde demais quando os olhos do leão — e os pequenos olhos do macaco e o camundongo — já estavam sobre ela.

Ana ficou paralisada por um momento, sem saber como reagir. Após um longo silêncio, o leão mexeu as orelhas e disse:

— Não é mais preciso se esconder, criança. Todos aqui somos amigos.

A menina continuou sentada na relva, sem conseguir parar de olhar para o leão. Lembrou-se que, desde que conhecera aquele mundo, estava constantemente se escondendo; mas sua curiosidade e sua vontade de ajudar o homem era maior que sua hesitação.

— Menos os porcos-espinhos! — murmurou o macaco.

— Eles também são nossos amigos — afirmou o leão. Ana se levantou, aproximando-se devagar das três figuras falantes; que, tal como a cisne, não abriam a boca. A menina observou os áureos olhos do leão, tão inteligentes e bondosos. Tal como suas íris, seus pelos e a juba também eram dourados.

— E o que é isso? Uma humana? — o camundongo apoiou-se nas patas traseiras, farejando o ar. Suas orelhas se ergueram, confirmando suas suspeitas. — Uma humana! Isso não é bom, senhor! O que uma humana faz aqui?

— É só um filhote, seu rato — o macaquinho disse, ocupado demais analisando as patas machucadas do leão, que sangravam um pouco. — É uma categoria menos ameaçadora da espécie. Pelo menos, não quando estão soltando água pelos olhos.

O leão riu, majestoso, e Ana impressionou-se com a elegância de sua postura e a delicadeza para com os animais que tentavam ajudá-lo. O macaco e o roedor continuaram seu trabalho de retirar os espinhos. Ana queria ajudar, mas o camundongo ainda parecia desconfiado com a presença dela.

— Junte-se a nós — o felino convidou. — Meus pequenos amigos espinhosos atrasaram o meu encontro com o nascer do sol, mas ele ainda está aqui para contemplá-lo.

Ana se sentou junto ao leão, aproveitando a sombra da árvore também. O tempo estava mais quente e algumas flores do campo nasciam ao redor da árvore. Quando se ajeitou ao lado do animal, se viu rodeada delas; e todas pareciam se inclinar em direção ao Sol.

— Você sabe onde está o coração do homem? — Ana foi direto ao ponto. Tal como a cisne, o leão parecia muito sábio. — Ele quer ouro pois deseja ser rico e construir um castelo, mas eu não sei onde tem ouro. Também não sei onde está o coração dele, mas deve estar em algum lugar. Será que o senhor sabe se algum animal o comeu?

O leão olhava para o Sol, que escondia-se por entre as nuvens naquele momento.

— Se o procura, ainda não foi devorado. — o leão garantiu. — Mas deve se apressar. São quase meio-dia. Não posso dizer-lhe onde está, pois não posso fazer seu caminho. Fale-me, menina, o que ofereceu ao homem?

— Nada — Ana murchou os ombros. — Eu não tenho muitas coisas.

— Não pense assim! Você tem a compreensão. Senão, não estaria tentando ajudá-lo, não é mesmo?

— Sim — Ana concordou. — Eu fiquei com pena dele naquela cela tão escura, apesar de confortável. As folhas que cresceram pelas grades não deixam ele tomar sol. Aprendi na escola que o Sol é importante, pois tem vitamina D. E se o homem ficar doente?

— É uma pena que ele não possa contemplar esse belo astro, como fazemos neste momento — o bondoso leão começou a lamber uma das patas, já sem espinhos. — Obrigado, meus caros amigos. Sinto-me melhor. — ele se voltou para Ana, e sua juba roçou levemente em sem ombro. — Você ofereceu-lhe a compreensão, não se importando com seus insultos. Os seres só podem oferecer o que possuem. Devemos ser compreensivos.

— Está falando dos porcos-espinhos? — Ana perguntou.

— Inclusive! Afinal, são porcos-espinhos. Seres tão indefesos... Estavam assustados e com medo. Por que eu deveria matá-los? Se eu os atacasse, talvez meu focinho e meus olhos fossem cobertos pelos espinhos, e os pobrezinhos também estariam machucados. Talvez não sobrevivessem à fúria de um animal do meu porte. Então, prefiro sentir o incômodo dos espinhos em minhas patas. Sorte a minha ter amigos tão cuidadosos.

— É uma honra, senhor. Mas, na próxima vez, eu mesmo irei mordê-los — o macaco disse.

— Amigo, você não teria chances...

— ...e faria seus espinhos de travesseiro!

O leão voltou seus olhos gentis para Ana.

— Parece que o nosso amigo não escutou a nossa conversa.

A menina assentiu, refletindo sobre o que havia sido dito. Ela pensou no prisioneiro, lembrando-se da hostilidade de suas palavras e comportamento. Compreendeu, por fim, que aquele homem era como um porco-espinho; pois sentia-se tão indefeso quanto aqueles que haviam atacado o leão.

Quando os dois animaizinhos concluíram o trabalho de retirar os espinhos, deitaram-se, exaustos, sobre as costas do leão. Logo estavam dormindo, o camundongo quase desaparecendo sob a juba do felino. Enquanto isso, Ana e o leão continuaram a observar o céu que tanto a intrigava.

— Senhor leão, o que tem no céu? — ela perguntou de repente.

O animal cruzou as patas, estreitando levemente a vista quando o Sol reapareceu por trás das nuvens.

— Antes de compreender o que há no céu, escute o que a terra tem a dizer. — ele disse, abrindo a enorme boca em um bocejo. — Está na hora de ir, garotinha. Em breve o Sol estará em seu ápice.

O leão deitou a cabeça sobre suas duas patas, já quase totalmente curadas, e adormeceu. Ana levantou-se devagar para não acordá-lo. Ao contrário daqueles animais, ela não tinha tempo para tirar um cochilo — não até escutar o que a terra tinha para lhe dizer.

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